SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há filmes que se equilibram o tempo todo numa espécie de corda bamba, em que qualquer deslize pode ser fatal. Se cai para um lado, corre o risco de mergulhar na chantagem sentimental. Se cai para o outro, pode soar falsamente introvertido e alheio às emoções.
Os filmes que se arriscam no melodrama, cada vez mais raros, estão sempre prestes a passar --ou ficar aquém-- da estreita faixa de leitura que separa o pouco empolgante do piegas. Isso também acontece com um tipo de filme que investe, por curiosidade ou por necessidade existencial, numa investigação familiar incerta, cheia de espinhos e fadada a certo sofrimento.
É o caso do surpreendente "Bem-Vindos de Novo", longa-metragem de estreia de Marcos Yoshi. É um documentário que registra uniões e reuniões familiares espaçadas no tempo e, de quebra, o envelhecimento ou mesmo o desaparecimento de pessoas próximas.
O próprio Yoshi relata que seus pais prosperaram economicamente nos anos 1990, quando ele e suas irmãs eram adolescentes. Com a instalação do câmbio flutuante no final da década, a prosperidade já não estava mais no horizonte.
Seus pais foram então para o Japão, em 1999, visando juntar dinheiro durante dois anos para dar uma boa educação aos filhos, que deixaram aos cuidados dos avós, em Jales, no interior de São Paulo. Ficaram, porém, 13 anos distantes. No retorno, Marcos já era adulto, formado em cinema pela USP, a Universidade de São Paulo.
"Bem-Vindos de Novo" é uma investigação pessoal que funciona como sessões de psicanálise. O filmar para descobrir o lugar que se tem no mundo, no cinema, na família.
A ausência dos pais é explicada já nos primeiros minutos, embora estejam presentes quase o tempo todo no filme, numa opção muito acertada do diretor. Por isso, as imagens antigas, com os pais ainda jovens, tornam-se muito tocantes.
Parecem fantasmas que deram lugar a versões envelhecidas e desencantadas deles mesmos. O próprio Marcos diz, logo no início, que se sentia órfão de pais vivos. A ideia de abandono é forte, como é forte a constatação de que depois de uma certa idade o mercado de trabalho se fecha no Brasil, mas não no Japão.
As imagens antigas fazem com que os pais, então jovens, fiquem distantes, meio fantasmagóricos, pela própria pobreza na textura do vídeo, enquanto nas imagens recentes, muito mais numerosas e já com um digital mais avançado, eles parecem mais próximos, mais vivos, mais reais.
É um filme cheio de momentos emotivos, com algo de melodrama muito bem colocado na inteligente estrutura que dribla a cronologia dos eventos para se submeter a uma curiosa cronologia de afetos, estranhamentos, vulnerabilidades e ausências.
E que não se esquiva do humor, como no trecho em que Marcos descobre os dedinhos levantados do pai em gestos corriqueiros como no segurar de um copo ou de um celular.
É também um filme consciente da realidade modificada pela presença da câmera. As pessoas são reais, dizem o que pensam, mas a câmera as transforma inevitavelmente em atores e atrizes de uma encenação.
O "filmar o real", tão corrente no cinema contemporâneo, é retorcido e distorcido pela própria natureza do documentário, que não chega a ser uma lavagem de roupa suja em público, tampouco um reality show, mas um questionamento sobre o quanto os personagens de uma obra podem ser ou estar próximos de seu criador.
Ao se abrir a confissões que a maior parte das pessoas tende a esconder, sejam reais de fato ou só durante o filme, "Bem-Vindos de Novo" tem a salutar qualidade de escancarar o real e, ao mesmo tempo, celebrar a impossibilidade de dar conta dele totalmente.
O desafio está posto a Marcos Yoshi. Será um diretor capaz de dar vazão novamente ao seu imaginário, tendo este forte documentário servido para expurgar suas questões familiares, ou estaria destinado a filmar o real e suas diversas armadilhas por toda a carreira?
A estrutura deste belo filme investigativo indica a primeira hipótese, sem abalar a dimensão do desafio em qualquer caminho que resolva trilhar.
BEM-VINDOS DE NOVO
Onde: Em cartaz nos cinemas
Classificação: Não indicada
Produção: Brasil, 2021
Direção: Marcos Yoshi
Avaliação: Muito bom
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