SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Duas peças em cartaz em São Paulo levam a plateia para lá de Teerã indo só um pouco para o leste do polo cultural da capital. "Pérsia", do grupo Sobreventos, se aproxima do final de uma longa temporada, enquanto "O Mar", em cartaz no Teatro Arthur Azevedo, acaba de estrear.

Essencialmente diferentes, as duas encenações têm pontos de contato. Ambas partem de um Oriente Médio em que a secura da areia é umedecida por taças, lágrimas e sonhos compartilhados, em que os ritos formam um oásis em meio à aridez do entorno. Chamam a atenção para a necessidade de reconhecer humanidade no outro e advertem contra os avanços da intolerância, que deve permanecer estrangeira.

"O Mar" se passa inteira no escritório da advogada israelense Dania, interpretada por Yael Pecarovich, que precisa interromper uma ligação quando Adila, uma senhora vivida por Bete Dorgam, entra em seu escritório pedindo que ela cometa o mesmo crime que encarcerou suas clientes: levar uma mulher palestina, sua neta paralítica Farida, papel de Laura La Padula, para ver o mar.

A peça, essencialmente feminina, se constrói na interação entre as três mulheres e, assombrada pela guerra, assume discussões filosóficas inesperadas conforme avança para o fim.

O texto do uruguaio Federico Roca chegou ao Brasil por meio da atriz Yael Pecarovich, que angariou as colegas Bete Dorgam e Laura La Padula, com quem trabalhou na peça "Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu". Fernando Nitsch, que também esteve com elas na peça anterior, foi convidado para a direção.

Não sem algum receio, já que, para Yael, a peça deveria ser dirigida por uma mulher. Mas o grupo acabou concluindo que Nitsch traria a presença masculina da guerra, que traria um contraponto desejável ao núcleo feminino. O resultado emocionou Roca, que veio ao Brasil com seu marido assistir à encenação.

A atriz Yael Pecarovich acredita que, além de retratar o conflito entre Israel e Palestina, a peça fala sobre a convivência entre diferentes ?e, por isso, ressoa muito com o Brasil.

"De alguma forma, a gente vive aqui também uma guerra entre diferentes grupos, maiorias e minorias. A gente vê, todo dia, o lado mais forte se sobrepondo ao mais fraco", afirma. "A humanidade precisa entender que, entre as diferenças, a gente precisa se dar a mão para viver."

"Pérsia" também se constrói, ainda mais, de paralelos entre conflitos do Oriente Médio e brasileiros. A plateia senta numa arquibancada que circula o palco redondo e coberto de areia, atravessado pela sombra de uma árvore seca que, disposta no centro da cena, é iluminada por uma meia-luz amarela.

O texto, todo fragmentado, parte de relatos reais de imigrantes iranianos que vieram para o Brasil. Os depoimentos se misturam ao som de instrumentos típicos do Brasil e do Irã e às danças dos dois países.

O trabalho surge a partir de uma pesquisa do grupo Sobrevento, consolidada equipe com quase 40 anos de história, com o teatro de objetos, método narrativo que tece seus contos a partir das histórias que os itens cotidianos carregam.

Durante a construção da peça, no entanto, o grupo percebeu que muitos imigrantes são obrigados a deixar tudo que têm para trás. Começaram a coletar, então, também as histórias das várias casas por onde passaram e que precisaram deixar para trás.

No Sobrevento, a arte é um processo contínuo de experimentações, que se alonga no tempo. Antes da extensa temporada que começou em 2022 e que acaba neste domingo (30), os artistas da Mooca já trabalhavam há anos na peça.

O projeto nasceu quando o grupo viajou para o Irã em 2010 para participar do Fajr Theatre Festival, um dos maiores de teatro do mundo, que acontece na capital Teerã.

Nas terras persas, se surpreenderam ao encontrar um país diferente do que imaginavam a partir dos relatos de jornais, com uma arte viva e pulsante, de um povo que resistia ao fundamentalismo, muito mais próximo do Brasil do que imaginavam.

"Nós ficamos muito impressionados com a vida cultural muito forte, com um teatro e um cinema profundamente elaborados e poéticos", diz Sandra Vargas, atriz e uma das fundadoras do Sobreventos.

Ela lamenta o cenário que tomou o país após a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2010, que levou o povo iraniano para as ruas para encontrar uma dura repressão do governo. Segundo a atriz, a situação só piorou para cá. Neste ano, o Sobreventos negou um novo convite para visitar o país por considerar que não seria seguro.

E não é só no Irã que Vargas vê que as coisas pioraram. Nascida no Chile, vive no Brasil há quatro décadas e nunca se sentiu tão imigrante quanto a partir da véspera de 2018, quando, segundo ela, o conservadorismo começou a avançar de maneira inédita.

"Ele avançou associado a uma ideia de nacionalismo que rejeita o estrangeiro. Então eu não poderia nem me manifestar politicamente, porque, quando eu começava a falar, a pergunta era: ?De onde você é? Cale a boca, quem é você para falar do meu país??", afirma.

"Eu não tinha sentido isso nunca. Comecei a sentir em 2016, quando as pessoas não tinham mais vergonha de manifestar seus preconceitos abertamente."

Vargas vê um contraste entre a rejeição ao estrangeiro que avança nas ruas e uma política de estado do Brasil que acolhe os imigrantes. "Tenho uma tia que decidiu vir ao Brasil aos 84 anos, em plena pandemia. Em pouco tempo ela tinha CPF e estava sendo tratada num posto de saúde com todos os direitos", conta.

Segundo o relatório mais recente do Portal de Imigração, 151.155 imigrantes vieram para o Brasil entre 2011 e 2021. 59% dos pedidos de refúgio nesse período foram de venezuelanos e 13,3% de haitianos, os dois grupos mais numerosos.

Se é verdade que o Brasil tem uma política de acolhimento que vêm se estruturando desde 1997, casos como o do recente surto de sarna entre imigrantes afegãos que acampavam no aeroporto de Guarulhos comprometem a imagem acolhedora do país.

"Pérsia" e "O Mar", cada qual ao seu estilo, partem da crença de que a arte é potente para mudar o comportamento da sociedade, mas que não deve, para isso, carregar o que Fernando Nitsch define como "ranço pedagógico". Fazendo arte essencialmente política, não abrem mão da poesia e da boa narrativa em nome de um didatismo panfletário.

"Às vezes o nosso teatro atual se perde nesse lugar em que a gente entra para dar palestra e esquece a estética, a poesia e o poder de uma história. Mas ?O Mar? é sim uma história política, e muito relevante", afirma o diretor.

Na mesma linha, a atriz Laura La Padula recupera Shakespeare para defender o poder de uma boa história. Como Hamlet encena o assassinato de seu pai por seu tio na sua frente para desafiá-lo, a arte encenaria os pecados e as virtudes humanas na busca de inspirar a plateia a se reinventar.

Bete Dorgam considera urgente criar uma nova mentalidade para a sociedade. "Estamos deixando de herança um mundo tóxico, de lixo até aqui, de conflito até aqui, de exaustão da natureza até aqui. Ou nós nos realinhamos juntos, juntas, juntes, ou não tem escapatória", diz.

"Eu acho que é sobre isso que o Federico está falando, sobre a necessidade humana de união, de respeito, de escuta, de diálogo, de aceitação. Tudo isso parece muito babaca, utópico, mas ou a gente faz isso, ou não faz nada."

PÉRSIA

Quando Sex., às 20h30; sáb. e dom., às 18h e às 20h30. Até 30/7

Onde Espaço Sobrevento - r. Coronel Albino Bairão, 42, São Paulo, sobrevento.com.br.

Preço Gratuito. Reservas de ingressos pelo e-mail info@sobrevento.com.br e pelo WhatsApp 11 966258215, ou ainda através da bilheteria, que abre com 1h de antecedência

Classificação 14 anos

Elenco Sandra Vargas, Luiz André Cherubini, Maurício Santana, Thais Pimpão, Liana Yuri e Daniel Viana

Direção Sandra Vargas e Luiz André Cherubini

O MAR

Quando Sex. e sáb., às 20h; dom, às 18h. Até 6/8.

Onde Teatro Arthur Azevedo - av. Paes de Barros, 955, São Paulo

Preço R$10 a R$ 20, em sympla.com.br ou 1h antes na bilheteria

Classificação 12 anos

Elenco Bete Dorgam, Laura La Padula e Yael Pecarovich

Direção Fernando Nitsch


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