(FOLHAPRESS) - A montagem da peça "Papa Highirte" pelo Grupo Tapa é um exercício teatral formidável. O palco está quase vazio. Sem grandes efeitos de encenação, as atuações é que sobressaem. Não o brilho individual de um ou outro ator, mas o andamento coletivo.
Em tempos de individualismo desmedido, na vida e na arte, o Tapa faz resistir a ideia antiga de que o teatro acontece mesmo é no espaço intermediário entre os atores. Durante vários momentos do espetáculo, notamos a importância dos olhares, das reações e dos comentários silenciosos das personagens que escutam. É onde aparecem as contradições do discurso, a condição patética das figuras ou impasses do jogo político sobre o qual se debruça a peça.
Além disso, as velozes alterações de tempo e de espaço são sugeridas por pequenas inflexões coletivas de gesto, voz ou iluminação. Tudo muito simples, preciso e sensível.
Quando Oduvaldo Vianna Filho escreveu a peça, em 1968, ele acumulava anos de vivência num ambiente de atmosfera coletiva e trabalho de equipe. Desde muito jovem, ele participou de algumas das mais importantes experiências de teatro político no Brasil, como o Teatro de Arena em São Paulo e o Centro Popular de Cultura, um enorme movimento de democratização das artes, que se multiplicou pelo país todo até ser interrompido pela ditadura.
Foram movimentos que fizeram da urgência de atuação política o combustível para a invenção estética e o desenvolvimento de formas coletivas e democráticas de criação.
Por um lado, "Papa Highirte" resulta dessa trajetória estética e política da vida do autor. Por outro, foi escrita num momento de refluxo histórico, repressão e fechamento político. Em 1968, as condições de trabalho artístico já se deterioravam --a peça foi censurada pouco após ser escrita--, e a alta voltagem das experiências engajadas do pré-1964 eram cada vez mais distantes.
O quadro pintado em cena é melancólico -um ditador destituído, Highirte, vive isolado, no exílio, imaginando formas de retomar a gestão de seu país. Mas o apoio de militares, industriais e dos americanos é errático e incerto.
Eles percebem que o velho caudilho não serve mais aos seus interesses. Highirte é descartado, sem que isso signifique um esmorecimento do domínio conservador no país.
"Papa Highirte" reflete os ciclos reacionários que se repetem na América Latina, um ponto sublinhado na montagem do Tapa, que estreou ainda no governo Bolsonaro. Mas a peça não é só sobre a recorrência do conservadorismo.
Vianna assume também um ponto de vista alinhado às teses defendidas pelo Partido Comunista Brasileiro, o PCB, pouco após o golpe no Brasil. Para o PCB, a reviravolta drástica de 1964 decorreu dos "excessos" de grupos de esquerda que teriam tensionado demais o jogo político e levado à ação violenta dos militares.
A consolidação da tese veio no processo de exclusão arbitrária de quadros populares do partido que defendiam o enfrentamento da ditadura. Exemplo notável foi Carlos Marighella, expulso em 1967.
Fiel às teses do Partido, do qual foi sempre integrante, Vianna cria, em "Papa Highirte", vários momentos de espelhamento entre a figura do ex- caudilho e a do líder guerrilheiro assassinado. Não são só as forças reacionárias o alvo da crítica da peça; o autor ataca os arroubos individuais de heroísmo revolucionário.
A escolha do Tapa em retomar o material mostra disposição de refletir sobre as veias abertas da história do país num momento de incerteza. As conexões entre os ciclos autoritários da peça e as oscilações políticas atuais no Brasil são identificáveis. Já o debate sobre luta armada não encontra terreno. Fica como um fio solto, uma crítica antiga a um radicalismo guerrilheiro do qual não há nem sombra.
PAPA HIGHIRTE
Avaliação Ótimo
Quando Qui. a sáb., às 20h; dom., às 18h. Até 1/10
Onde Teatro Aliança Francesa - r. Gal. Jardim, 182, São Paulo
Preço R$ 60
Classificação 14 anos
Elenco Adriano Bedin, Bia Bologna e Bruno Barchesi
Direção Eduardo Tolentino de Araújo
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