SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em Franco da Rocha, no interior de São Paulo, uma pequena ponte sobre um riacho divide o resto da cidade do Complexo Hospitalar do Juqueri. Longos gramados verdes comportam construções do século passado, entre elas um edifício projetado por Ramos de Azevedo, mesmo arquiteto responsável pelo Theatro Municipal de São Paulo.
O local idílico, porém, foi destino de milhares de pacientes do século 19 até o fim da ditadura militar. Muitos deles doentes psiquiátricos, deficientes físicos e idosos --e tantos outros que tinham comportamentos considerados desviantes para as normas sociais vigentes, em especial mulheres, negros, perseguidos políticos do Estado Novo e da ditadura militar e até presidiários considerados insanos pelas delegacias.
Inaugurado em 1898, não demoraria para que, já em 1910, o local começasse a enfrentar a superlotação, problema que persistiria até 1980. Além das terapias vigentes nos manicômios do século 20, como lobotomia e eletrochoque, o excesso de pacientes levou a condições precárias de cuidados, disseminação de doenças entre internos e a proliferação de mortes.
Foi no Hospital Psiquiátrico do Juqueri que viveram artistas Aurora Cursino e Ubirajara Ferreira Braga, ambos com trabalhos expostos na Bienal de São Paulo. Com pinceladas aflitas, Cursino pintou a violência e boemia das noites cariocas e paulistas, lembranças da época em que foi trabalhadora do sexo após sair de um casamento frustrado. No Juqueri, seu prontuário registrava "personalidade psicopática amoral" como diagnóstico.
Já as telas de Ubirajara, quase 3.000 pintadas no Juqueri, retratam vultos e cenas que parecem sonhos. Pintor antes de ser internado, sua ficha diagnóstica o descrevia como um "morador calmo, consciente".
Ambos os artistas desenvolveram a pintura na Escola Livre de Artes Plásticas, fundada na década de 1940 na colônia pelo psiquiatra Osório César --considerada um refúgio de tratamento humanizado em um ambiente predominantemente hostil.
César, casado com Tarsila do Amaral, era contra terapias invasivas e acreditava na arte como recurso terapêutico, assim como a renomada psiquiatra Nise da Silveira. Ambos, porém, seguiam abordagens diferentes. Ele analisava os trabalhos pela qualidade estética e tinha como objetivo principal o desenvolvimento de um ofício pelos pacientes e, em 1954, expôs as obras dos internos no Masp.
"Osório Cesar tinha a pretensão da reabilitação, impensável na época. Ele queria que os internos fossem capazes de expor e ganhar dinheiro com seu trabalho artístico", diz a psicanalista Ana Carolina Vasarhelyi de Paula Santos. A Escola seria encerrada na década de 1970.
Segundo a psicanalista, o recurso artístico favorece o acesso ao inconsciente, que se melhor compreendido tem mais chances de ser tratado. "A valorização da construção da subjetividade dos internos fazia toda a diferença, por não trabalhar os pacientes como alienados, mas como indivíduos", diz.
No campo das artes, as obras ganham prestígio a medida em que aglutinam elementos psicológicos que podem ou não ser identificados, mas que tocam o espectador de alguma forma. "A intensidade simbólica dessas obras impactará cada um de um jeito, porque há uma identidade muito forte com o inconsciente, que também pode ser coletivo."
No começo da década de 1980, no período de redemocratização do país, a pesquisadora Maria Heloisa Corrêa de Toledo Ferraz, professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP, decidiu pesquisar sobre a Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri e organizar as obras encontradas. "Eram muitas esculturas e desenhos, tudo misturado, muita coisa quebrada", lembra.
Ela procedeu com a organização de mais de 2.250 obras, expostas no MAM em 1987 -a recepção, porém, não foi como o esperado. "Eu ouvia de várias pessoas que aquele não era lugar para obra de louco. A visão era bastante preconceituosa."
No mesmo ano, Ferraz inaugurou o Museu Osório César no complexo do Juqueri, com obras dos internos, entre elas, peças assinadas por Albino Braz e Aurora Cursino. Um ateliê passou a funcionar na mesma época. Foi então que Ferraz conheceu Ubirajara Ferreira Braga, mais assíduo dos frequentadores, com produções contínuas que a pesquisadora chama de "compulsão criadora."
"Ubirajara dizia que queria ser artista e que não queria que suas obras ficassem na gaveta. Seu trabalho era a sua relação com a realidade e seu corpo. Mas não dá para dizer que os símbolos que vemos nos trabalhos são facilmente decifrados."
Para Manuel Borja-Villel, um dos curadores da Bienal de Arte de São Paulo, as obras de Aurora e Ubirajara têm semelhanças formais entre si na medida em que os artistas transformam suas dores e inquietações em arte. "Esses artistas cuja obra se relaciona com eles próprios servem para curar a sociedade", diz.
Não há separação entre arte e saúde mental, segundo o curador. "As disciplinas são uma invenção europeia, moderna, e servem para controlar. Determinar o que é ou não arte para mim, é uma divisão ocidental."
"Ubirajara faz observações apuradas da realidade, tanto em termos sociais quanto políticos e rompe com o estereótipo do interno alienado. Ele se via como artista e queria ser reconhecido como tal", diz Michelle Louise Guimarães, museóloga do Museu de Arte Osório César e pesquisadora da UFRJ sobre a obra de Ubirajara. "A arte foi além da função de terapia, para ele foi um caminho pelo qual se descobriu artista."
Com a vigência da Lei Antimanicomial a partir de 2002, após a mobilização de movimentos da saúde e acadêmicos, o isolamento de pessoas em grandes hospitais e terapias violentas deixaram de ser a norma.
Mas, segundo Vasarhelyi, a psiquiatra, "apesar de todo o acompanhamento, não só psicológico mas também assistencial, o que se faz com os 'indesejáveis' ainda não é tratar. [Eles] são escondidos ou dispersos, como é o caso da cracolândia", diz. No caso do Juqueri, os últimos internos foram transferidos em 2021.
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