SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "O cinema e o judô respondem às mesmas perguntas, as perguntas mais fundamentais da vida: quem sou eu? E quem são os outros", me diz Thierry Frémaux, 63 anos, em uma conversa de quase uma hora e meia por Zoom nesta sexta-feira.

Ele veio ao Rio de Janeiro lançar o livro "Judoca", editado pela Fósforo, em uma cerimônia que juntará o escritor e jovens judocas do Instituto Britto da Rocinha, uma das maiores comunidades cariocas, em uma apresentação do esporte na Estação NET Rio, no bairro de Botafogo.

Frémaux não vinha ao Brasil há quase seis anos, maior intervalo de tempo que ficou sem visitar o país desde que o conheceu, 40 anos atrás, no verão de 1983. Nessa época, era como uma outra pessoa.

Ou, melhor, era outra versão de Thierry Frémaux, o intelectual e grande entusiasta da preservação da história do cinema e diretor de sua maior vitrine, o Festival de Cannes. E é essa versão que ele apresenta em "Judoca".

Nascido em Lyon, a terceira maior cidade da França, distante quase 500 quilômetros de Paris, e, coincidentemente, a mesma em que os irmãos Lumière, Auguste e Louis, inventaram o cinematógrafo em 1895, o pontapé inicial da história do cinema, Thierry conheceu o judô aos nove anos, por iniciativa dos pais. Sabe aquela história "criança agitada? bota no judô"? Foi exatamente isso.

O primeiro contato do garoto com o tatame e o quimono branco se deu junto de seus três irmãos, uma irmã mais velha e dois mais novos, em um ginásio estadual de sua cidade. O que se seguiu a esse primeiro encontro é uma grande história de amor, de descoberta pessoal, de disciplina, de aprendizado, de treino e de felicidade plena.

"O livro em si é uma viagem ao meu passado e ao passado do judô. E às ligações que talvez só eu possa fazer, muito humildemente, entre o judô e o cinema de Kurosawa, o judô e o cinema de Tarantino, o judô e o Festival de Cannes", afirma. "Eu volto ao tatame depois de muitos anos longe dele para começar essa viagem. Como Marcel Proust e sua madeleine. Minha madeleine é meu quimono."

O reencontro de Frémaux com o tatame é descrito num dos capítulos finais do livro, tem um desfecho tragicômico que não convêm revelar aqui, e um dos grandes insights dessa jornada em busca de pontos comuns entre o judô, que lhe deu instrumentos essenciais para sua formação, e o cinema, que lhe abriu janelas para o mundo ao mesmo tempo em que revelou sua missão de vida.

Tanto o esporte, uma arte marcial cheia de regras e extrema disciplina, quanto o cinema são invenções do século 19 que seduziram o mundo todo muito rapidamente. O judô foi criado por Jigoro Kano (1860-1938) um ex-lutador de boxe considerado muito frágil para o esporte, que percebeu que, com alguma malícia, podia usar a força do oponente a seu favor. Então, repensou as regras do jujutso, uma luta tradicional japonesa, e inventou um novo esporte, o judô.

A primeira delas é que a queda não é sinônimo de derrota, como no boxe, e não deve ser evitada, e sim como que oferecida ao seu oponente. O oponente também não é visto no esporte como um inimigo, e sim como um parceiro. É uma competição e um dos dois será o vencedor, mas o respeito mútuo é uma exigência fundamental. Assim como a humildade, a devoção aos mestres e a diligência.

"Eu quis explorar profundamente a invenção do judô, a vida de Jigoro Kano, o espírito do Japão, e não fazer apenas um livro sobre um esporte que fosse cheio de lendas, resultados, competições", diz Frémaux, que de fato fez um livro muito singular. São três biografias em uma só, a sua, a do mestre criador do judô e a do judô.

Mas não só. Há um tanto de sua filosofia pessoal, de história e, sim, de passagens envolvendo acontecimentos e celebridades nos tapetes vermelhos de Cannes, evento assistido pelo mundo inteiro em tempo real e que virou palco de protestos recentes em meio às roupas mais elegantes vestidas pelas pessoas mais atraentes.

Na estreia mundial de "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho, em maio de 2016, a protagonista, Sônia Braga, liderou um protesto no tapete vermelho contra o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, afastada do cargo em agosto daquele ano. O elenco, o diretor e a produtora do filme, a francesa Emilie Leclaux, levantaram cartazes escritos em francês e inglês dizendo que o Brasil estava sofrendo um golpe de Estado.

No mesmo ano, a atriz Julia Roberts, que foi apresentar o filme "Jogo do Dinheiro", de Jodie Foster, tirou o sapato de salto e subiu descalça as escadas do Palais des Festivals, a suntuosa sede inaugurada em 1982, construída onde antes ficava um cassino, na Boulevard de la Croisette.

O gesto era um protesto silencioso e de apoio a um grupo de mulheres que, no ano anterior, foi proibido de entrar na première do filme "Carol", de Todd Haynes, com Cate Blanchett e Rooney Mara, por não estarem de salto alto. Algumas delas alegaram que não usavam salto alto por motivo de saúde, mas nem assim conseguiram entrar na sessão.

"Eu amo rituais", diz Frémaux. "E temos nossas tradições. Uma delas é a sessão de gala, para a qual nos preparamos, vestidos roupas especiais, para mostrar nosso respeito pelo trabalho dos artistas. Cannes está a serviço da arte, dos profissionais, dos críticos, dos espectadores. Durante duas semanas, todos os anos, Cannes coloca o cinema no centro das atenções", conclui.

"É bom ter discordância, gosto dessas manifestações, elas nos fazem pensar. É por isso que Cannes é Cannes". Uma década atrás, o festival foi duramente criticado por só ter filmes de diretores homens concorrendo à Palma de Ouro. Frémaux conta que ficou muito surpreso com o ataque, porque os filmes da competição são sempre escolhidos levando em conta a qualidade do que está na tela.

"Na época, eu disse que isso era uma consequência do cinema que estava sendo produzido. Não tínhamos filmes de diretoras porque não havia diretoras suficientes no cinema. Mas, desde então, as coisas mudaram. Paramos para pensar e hoje em dia temos sempre o mesmo número de homens e mulheres no comitê de seleção e nos júris, o que naturalmente faz com que a seleção dos filmes dirigidos por mulheres seja maior."

Pergunto se ele tem alguma dica aos nossos cineastas, que não trazem para o cinema brasileiro uma Palma de Ouro desde que "O Pagador de Promessas" venceu o festival. Em 1962!

"Cannes é um jogo, e você poderia dizer que esse é um jogo muito estranho, que faz filmes que não têm nada a ver um com o outro competirem entre si, e esse é um argumento justo", diz Frémaux. "Não tenho como ajudar, escolho o júri do festival, mas, depois disso, eles têm liberdade total para tomar todas as decisões, que muitas vezes me surpreendem, aliás."

"Continuem tentando", ele provoca. Pergunto se ele pode dar algum spoiler a respeito do festival do ano que vem, o nome do diretor do júri ou de algum filme que já tenha sido escolhido. Tento um acordo, dizendo que, em troca de alguma informação sobre o festival de 2024, posso não dar nenhum spoiler do livro que ele veio lançar neste texto. Não tenho sucesso. E ele é faixa preta de judô, melhor não insistir.

"Não, não, apenas não. E não só porque ainda está muito cedo e não tenho nenhuma informação para dar. Mesmo que soubesse, não diria nada. Uma das coisas que faz Cannes ser um festival precioso é a tradição que temos de manter nossos segredos."

JUDOCA

Quando Lançamento neste sáb. (2), às 11h30

Onde Estação Net Rio - r. Voluntários da Pátria, 35, Rio de Janeiro

Preço R$ 89,90 (272 págs.); R$ 69,90 (ebook)

Autoria Thierry Frémaux

Editora Fósforo

Tradução Eloísa Araújo Ribeiro


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