Daniela Aragão Daniela Aragão 20/08/2016

O sol não adivinha

Meu pai passava horas conversando comigo sobre as canções brasileiras que ele considerava mais belas. Embora fosse fã absoluto de Chico Buarque, Fernando Lobo (o pai de Edu), era a seu ver o dono dos versos mais majestosos do nosso cancioneiro, com a inspirada Chuvas de verão: “Podemos ser amigos simplesmente/Coisas do amor nunca mais/Amores do passado no presente/ Revelam velhos temas tão banais/ Ressentimentos passam como o vento/ São coisas de momento/São chuvas de verão/ Trazer uma aflição dentro do peito/ É dar vida a um defeito/ Que se extingue com a razão...”. Em segundo lugar, papai elencava a magistral Juventude Transviada, de Luis Melodia, música que ele jamais cansava de cantarolar, com encantamento, e destacar a força poética da imagem construída pelo compositor: “Lava roupa todo dia, que agonia/ Na quebrada da soleira, que chovia/ Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada/ Uma mulher não deve vacilar”.  

Projeto seis e meia, Theatro 4 de Setembro lotado, plateia ávida. Na ausência de poltrona vazia, escolho me sentar no chão, bem próxima ao palco, para não perder nenhuma respiração do “Negro Gato” e do seu parceiro musical, o exímio violonista piauiense Roberto Piau. Luiz Melodia entra em cena com leveza, sensualidade e malícia, elevados atributos que lhe concede o apelido que faz jus. De calça e camiseta, brancas, e um chapéu recobrindo os longos dreads que, quando soltos, escorrem pelos ombros. Aconchega-se, despojadamente, num banquinho e canta a canção que acabara de compor em parceria com Piau.

Luiz Melodia é titular de uma das vozes mais lindas e singulares que já ouvi. O timbre grave e aveludado passeia pelo legado do samba carioca malandro, mas relido por sua performance elegante, condutora de perspicácias, plenas de sutilezas sedutoras. A curvatura do canto, que traz a assinatura Melodia, em suas finalizações de frases, evoca um diálogo com a herança dos negros jazzistas. O “Negro Gato” brinca com Farrapo humano e hipnotiza o público :“Eu viro um farrapo tento um suicídio/ com caco de telha com caco de vidro”.

Passaria longas páginas, aqui, discorrendo sobre a riqueza e atemporalidade do trabalho de Luiz Melodia, que atravessa décadas com seu vigor contemporâneo, original, lírico, iconoclasta, avant garde. Seus discos lançados na década de setenta, Pérola Negra e Maravilhas Contemporâneas, consistem em digníssimas obras primas. Se algum jovem conheceu este artista na plateia pela primeira vez, clamo para que vasculhe e ouça estes álbuns, realizados com arranjos primorosos. Pérola Negra traz como faixa inaugural Estácio, eu e você, cuja voz, acompanhada apenas pela flauta de Altamiro Carrilho, é para se ouvir em estado de comunhão. As composições de Pérola Negra percorrem gêneros como soul, blues, rock, baião, samba e foxtrot, sem jamais perder uma unidade lírica que as alinhava da primeira a última faixa. Com apenas vinte e dois anos, em 1973, tornou-se impossível o negro morador do morro de São Carlos não causar impacto, com sua densidade lírico-musical.

O caráter plástico destacável na criação de Melodia se revela desde a concepção arrojada das capas dos discos. Na década de setenta, a onda psicodélica foi motivadora de criações plásticas muito inventivas. Em Pérola Negra, o negro gato é tesouro negro, pérola, farrapo humano, longilíneo homem deitado sobre uma banheira branca, com um globo entre os braços, enquanto ao redor o circundam nacos de madeira e grãos de feijão. Invenção de Rubens Maia.

Voltando ao palco do Theatro 4 de Setembro: o figurino do artista se altera com os dreads entrelaçados no alto da cabeça e, como um toque na composição,“oculozinhos” de hastes carameladas, que sugere um ar de senhor do seu tempo e espaço. O teatro se rende aos holofotes e gelatinas multicolores que projetam sobre o tórax desnudo de Luiz, lances de vermelho, rosa, azul, branco e negro. Muhammad Ali, Mahatma Gandhi, Mandela, Grande Otelo... e outros deuses reencarnam na saudação/evocação de Luiz Melodia.
O sol adivinha que alguns artistas se fazem sois e estrelas, pois vieram pra iluminar o mundo, salve Luiz Melodia. 


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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