Joyce moreno em hora de aurora

Daniela Aragão Daniela Aragão 6/07/2018

De tênis, calça jeans e camiseta despojada, Joyce chega ao teatro do Sesc, em Tiradentes acompanhada por Tutty Moreno, companheiro de música e de vida há décadas. Com um misto de timidez e imensa satisfação, eu aguardava, ávida a vinda da artista homenageada do festival, para a passagem do som da apresentação que aconteceria na noite do mesmo dia.

Na entrada o casal me cumprimenta, afetuosamente, e segue caminho subindo a escada que os conduzira ao teatro. Não posso deixar de perceber o carinho e cumplicidade que os recobre. Parada no balcão os observo um pouco à distância percorrer de mãos dadas e com olhos contemplativos o lindo jardim, que envolve a entrada do teatro. Certamente são incontáveis os palcos e cenários que encontram durante as inumeráveis travessias musicais, contudo como era bonita a maneira, com que tocavam com ternura cada filigrana do espaço que os receberia. Trata-se de dois artistas de fato.

“Palavra e som” celebra quarenta e nove anos de carreira de Joyce Moreno, a começar pelo registro de sua primeira gravação. O título do álbum aponta para os dois pilares condutores do trabalho, dessa que é indubitavelmente uma dama do nosso cancioneiro, que permanece com um selo de qualidade imbatível e jamais devassado pelos apelos das estratégias aniquiladoras da indústria midiática.

“Palavra e som” é um álbum muito belo da primeira a última faixa, cuja canção homônima só aparece no derradeiro momento de escuta, quando a artista e o naipe sublime de músicos já viajaram por muitas nuances, texturas, cores, sensações e sentimentos. A chave de escuta é fornecida ao ouvinte, que no transcurso acompanha o traçado rico em inventividade sonora.

Som que busca palavra, palavra que se acopla ao som quando o casamento se faz pleno. Palavra que saltita como uma criança serelepe de satisfação, na boca do cantor que a faz explodir de beleza: “Se na boca do cantor toda palavra escrita / Fica muito mais bonita porque alguém cantou/Foi navegador / Um astronauta, explorador / De um continente perdido. Um grão / canção”. 

A palavra é “uma criança pro compositor”, nas mãos que toca o violão e nos ouvidos de Joyce, que me contou em recente entrevista, que se controla para que sua profusão de sons internos não a faça compor uma música por dia. E a palavra descansa, hiberna o tempo que for necessário, para que Joyce, por si mesma, se faça letrista e parceira de sua invenção sonora ou escolha um dentre seus tantos amigos parceiros de som.

Parcerias que transcendem os limites do tempo e inusitadamente vivem na dimensão do agora pulsando de vida, como quer a belíssima “O poeta nasce feito”, resultante de versos inéditos deixados pelo poeta Torquato Neto em espera aguda de entendimento auditivo : “O poeta nasce feito / Assim como dois mais dois / Se por aqui me deleito / É por questão de depois”. 

A música e seus mistérios, que ultrapassam os falsos limites do tempo. Tempo de comungar com a serenidade da sabedoria, que só o tempo vivido traz em suas intempéries e maravilhas. “Humaitá” é dedicada a este bairro tão famoso do Rio, pouco reverenciado no cenário idílico da cidade de Jobim, Noel, Aldir Blanc, Martinho da Vila. Humaitá é o espaço refúgio da criadora, que vislumbra calmaria e substrato de vida para prosseguir.  O desempenho da bateria de Tutty Moreno marca sua assinatura inconfundível no instante em que anuncia a expansão do cenário edênico: “Meu jardim secreto / Meu canto dileto / Silêncio no verde se faz / Só quem vive sabe / Que aqui em cima cabe / O que se imagina como paz”.

A poética da natureza, que pode ser vislumbrada nos recônditos do jardim secreto da compositora se prolonga em “Dia Lindo”, parceria com João Cavalcanti, que ganha a força da interpretação de registro grave do compositor e arranjador Dori Caymmi. Joyce e Dori são parceiros de muitos palcos e canções na estrada da vida e juntos gravaram o precioso “Rio Bahia”.

A lua é aqui musa de muitas inspirações a iluminar o amor madurado de carinho, que a compositora já cantou em outras tão belas composições em discos anteriores. Bate-me uma vontade de aconchegar o coração em “Valsa do pequeno amor” e na atual “Mar e lua”: “E há peixes dentro da lua / E há feixes de luz no ar / O mar namorando a lua / A lua beijando o mar”. No entanto, o amor também pode ser chama, que irá se apagar num emaranhado de exigências. Essa mulher então proclama o amor maior em “O amor é lobo do amor”, isento de redomas: “O amor sem servidão / Sem pressa e sem prisão / Amor que é libertador / Amor que não diz não / Amor que é água e pão / O amor destino do amor”. 

O amor na verdade figura em sua amplitude incomensurável, por meio da reverência que Joyce Moreno traça ao celebrar suas preciosas influências musicais. Permito-me fazer uma associação com o clássico texto de TS Elliot “Tradição e talento individual”, cujo poeta reflete sobre a importância da tradição “o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura desde Homero, e nela incluída, toda a literatura de seu próprio país tem uma existência simultânea”.

Joyce firma seus pilares guias, “palavra e som”, na comunhão sábia com seus grandes mestres, Charles Mingus, John Coltrane, Tom Jobim e Noel Rosa: “Tudo de harmonia que aprendi com o Tom / Samba de Noel, tanto balanço bom / Foi liquidificando, misturado ao jazz / Rola um improviso, que isso é bom demais / Foi assim que o samba, que sempre foi meu / Namorou o jazz, e quando percebeu / Displicentemente, foi um samba-jazz que nasceu”. Cheio de swing e arrojadíssimo este samba-jazz, que traz o solo impecável da guitarra de Lula Galvão.

Joyce Moreno é aquariana e suas notáveis características são o frescor, leveza e jovialidade, que contemplam sua performance cênica e seu feeling. Dialoga com a maestrina e precursora Chiquinha Gonzaga e brinca, com suavidade, no passeio sonoro pelo vasto e indecifrável universo das meninas mulheres. Tema recorrente em sua obra, contudo jamais panfletário. Dancemos e cantemos com “Feminina”, “Mulheres do Brasil” e a nova “Forrobodó das meninas”: “Lindas, tão lindas meninas / Tem de ser lindas, e só / Tudo o que as meninas fazem / Sempre dá forrobodó”.

Joyce Moreno é conhecida e reverenciada muito além da terra brasilis, mas jamais deixará de expressar sua força singular de artista brasileira. A menina mulher, que cantou o país em tempos sombrios no tão delicado “Passarinho urbano”, volta a refletir com consciência e lucidez sobre o Brasil em “Samba do apocalipse” em que como também dizia Oswald “é a prova dos nove”: “Se a nossa alegria é que dança / Que traz esperança / Que contrabalança / E que nos pode salvar / Vamos sambar”. Em sua hora de aurora Joyce Moreno é ímpar.

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