Entrevista com o baterista José Francisco

Daniela Aragão Daniela Aragão 10/06/2019

Daniela Aragão : Como começou a música em sua vida?

Zé Francisco: Meu pai me levava para ver a escola de samba desfilar e eu me lembro bem da “Turunas do Riachuelo”. Na hora em que passava a bateria eu sentia como se estivéssemos saindo do chão. Eu experimentava a intensa vibração dos tambores. Acho que daí que começou minha história, por volta de meus cinco, seis anos de idade.

Daniela Aragão: Você percebeu justamente o som do ritmo dos tambores.

Zé Francisco: Eu sentia o balanço e vibrava com aquilo. Depois, um pouco mais velho, minha mãe me deu de presente um tamborim de couro. Ela ouvia a música na rádio e eu ficava batucando. Acho que músico já nasce músico. Por exemplo, divisão e afinação, não tem como você ensinar para uma pessoa. Ou seja, pra cantar afinado você tem que fazer o que? Eu comecei a tocar garoto. Eu ouvia o Lúcio Alves cantando, o pessoal antigo.

Daniela Aragão: Quando você começa a tocar bateria ?

Zé Francisco:  Tinha um conjunto aqui em Juiz de Fora chamado “Tropical ritmos”, era o Luden que tocava bateria no Raffa”s. Ele falou que eu tinha jeito para ritmo e me comunicou que estava saindo de seu trabalho no Raffa”s. Lá tinha gente mais velha, eu entrei então nesse lugar e nunca mais parei.

Daniela Aragão: O que costumava ouvir quando pequeno, além da influência do ritmo da escola de samba e o Lúcio Alves?

Zé Francisco: Eu sempre gostei de ouvir música instrumental desde garoto. Havia na escola de Inglês “Brasil Estados Unidos” alguns lps importados. Como eu era de família humilde, não tinha vitrola em casa e corria para o “Brasil Estados Unidos”, para ouvir som da melhor qualidade. Por lá ouvi pela primeira vez Astor Piazzolla e as big bands americanas. Eu gostava muito de ouvir os bateristas tocando com arranjo. Eu ficava endoidecido. Eu não entendia bem para explicar aquele som que estava acontecendo, mas ficava vidrado.

Daniela Aragão: Imagino o frisson que Piazzolla te provocou.

Zé Francisco: Piazzolla dinamizou o tango. Fez o tango moderno introduzindo as dissonâncias. Ele era muito sofisticado, criador fabuloso, pioneiro.

Mais adiante entrei no grupo “Tropical Ritmos”, encaminhado pelo José de Oliveira, que era maestro e trompetista. Ele trabalhava também no departamento de saúde. José me apadrinhou e me levou para a roda dos músicos. Toquei também na última formação do “Conjunto Meia Noite”, aqui em Juiz de Fora.

Daniela Aragão: E você passou a ficar atento aos criadores da bateria, a exemplo de Edson Machado...

Zé Francisco: Com certeza. O Edson Machado, o Miltinho. Vi o Edson Machado quando veio a Juiz de Fora tocar. Eu ouvia Gene Krupa, um dos grandes bateristas de big band. Eu ia tentando experimentar uns ataques juntos. Primeiro na verdade comecei a tocar bongô, depois é que comprei uma bateria usada e fui embora. “Conjunto Primus”, tocávamos na década de setenta no Tupi, todos os domingos de 7:30 até 11:30. Wilmar na guitarra, Zé Carlos na viola, Paulinho no teclado, Euzébio no contrabaixo. Miguel no Trompete e Lucas no trombone.  O pessoal chamava o conjunto de Bamba.

Daniela Aragão: A sua formação é autodidata?

Zé Francisco: Completamente. Se o baterista tiver bom gosto e boa musicalidade, ele pode tocar sem partitura. Bolero, bossa nova, Fox, jazz, baião. Ele faz a condução e se conhecer os arranjos, pode arriscar algumas audácias. Se não souber, treina na linha “right” e vamos em frente. O baterista quanto menos aparecer melhor fica. A bateria é para dar o clima, dar o calor, o feeling da música. Mais é menos sempre. Certa vez toquei num bar em Santa Luzia e a dona do local me chamou e falou “-Zé, até parece que não tem bateria”. Esse foi um grande elogio que recebi. Baterista tem que ser igual a juiz de futebol, você vê os caras jogando, o juiz tá ali, mas você não o percebe. O baterista é esse Juiz da música.

Daniela Aragão: E você é um apreciador de um baterista de assinatura própria como o Edson Machado.

Zé Francisco: Ele fazia solos. Um baterista para solar tem que ter muita técnica. Eu reconheço que não sou um baterista técnico, não costumo fazer virtuosismo, exibição nenhuma. Certa vez o grande pianista Tony Oliveira falou: “- Zé, você não precisa de técnica, você toca a música”. Se o cara for um virtuosista e fizer um solo, não sou contra, mas prefiro não me atrever. Eu faço aquilo que tenho absoluta confiança e maleabilidade.

Daniela Aragão:  Quase a totalidade dos músicos que entrevistei ao longo dos anos colocaram o João Gilberto como uma espécie de “divisor de águas”. Ele foi importante pra você?

Zé Francisco: Não há dúvida. O João foi o master naquela batida de violão. Uma divisão de tirar o fôlego, adianta dois, três tempos na música. Tem gente que acha que ele está atravessando. Que nada, João Gilberto sabe tudo.

Gosto de ressaltar que acima de tudo fui muito tomado pelos músicos americanos das big bands, como o Gene Krupa. Eu ouvia muito o “Modern jazz Quartet”, ouvia os caras de joelhos em estado de êxtase. Ficava atento a tudo o que a música comunicava em cada mínima sonoridade.

Daniela Aragão: Juiz de Fora é um berço de grandes músicos. Goianá, Toninho Oliveira, Márcio Hallack, Big Charles, Helio Quirino...

Zé Francisco: Sou um pouquinho mais novo. Toquei muito com o Goianá, um mestre do piano. Luiz Fernando, João Cameloto. Aqui tem uma plêiade de músicos. Fico quietinho. Eu toco muito pra mim. Certa vez perguntaram para o Johnny Mathis para quem ele cantava, ele respondeu que primeiramente era para si próprio. Se eu estiver feliz, posso passar a minha felicidade por meio de meu som para outra pessoa. Eu penso exatamente como disse o Johnny Mathis. Então, se estou tocando bem pertinho do ouvinte, não preciso tocar alto, esgarçar minha bateria. Me elogiam por eu ser um baterista suave.

Daniela Aragão: Você é muito querido pelas cantoras por ser um baterista softy.

Zé Francisco: Exatamente. O pessoal fala isso. E outra coisa, se eu estiver dirigindo um carro, podem confiar,  pois não bebo.

Daniela Aragão: Você tocou no Vitrô?

Zè Francisco: O Vitrô é inesquecível. Duty, Big Charles. O pessoal da pesada da época passou por lá. Fiz algumas apresentações com a cantora Fátima. Toquei também no Barroco, que funcionava no Granbery e pertencia a família Tabet. Confesso que fiz uma faculdade paralela de música em Juiz de Fora, sem diploma. Juiz de Fora tinha música de altíssima qualidade.

A música é uma mensagem. Você toca um tema e está contando uma história através do som. Vou aproveitar para dizer uma coisa a respeito do sertanejo. O sertanejo que proclamam por aí não tem nada de verdade, nada de sertanejo. Essa história de “sertanejo universitário”, como se precisasse de usar esse termo para legitimar uma imensa pobreza. Para tirar com essa aura o estigma de brega. Não tem nenhuma autenticidade. Bomba de fumaça, raio laser,  gelo seco, palco com produção de cinema de última categoria. Música pop.

Daniela Aragão: Como você vê hoje o espaço para o músico em Juiz de Fora?

Zé Francisco: Empobreceu muito. Por exemplo,  tem um barzinho com música ao vivo numa área residencial. Se um vizinho reclamar, ele faz a queixa, a prefeitura notifica e a música acaba ali. Então mais um espaço que se fecha. Há alguns lugares bons e que resistem, como o “Bar da Fábrica”, localizado no centro da cidade. A programação interessante. Tem o Brazador com música de alta qualidade sempre as segundas.  Gostei muito de tocar lá, um ótimo espaço para a música instrumental. Segunda feira um dia atípico e fica lotado. Nem tudo está perdido .

Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida ?

Zé Francisco: É a minha religião. Passei momento de grande turbulência emocional e se eu não fosse músico estaria perdido. A música me salvou. A música é uma terapia que não tem preço. Você de repente está tocando e entra naquele universo de notas. A música é mágica. Quem tem esse dom, por menor que seja, por mais humilde. É uma benção. Tudo é música, a música está no universo e o universo tem uma frequência. O universo vibra numa certa frequência. Nós somos um universo. Música é o ar que eu respiro.

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