Entrevista com o pianista Lulu Martin

Nome do Colunista Daniela Aragão 6/09/2019

Daniela Aragão:  Como começou a descoberta do som na sua vida?

Lulu Martin: O som entrou em minha vida na forma de músicas organizadas. Meu pai era pianista de jazz amador e minha mãe gostava de ver meu pai tocar. Cresci num ambiente positivo em relação à música. Eu comecei a escutar os discos de meu pai. Depois, na adolescência, entrei mais no mundo da música através dos meus primos e dos amigos. Foi a época do rock. Alguns desses amigos também levavam discos de música brasileira. Assim, meus contatos iniciais com o som, vieram através do jazz, do rock e alguma mpb. O som veio à minha vida através de músicas organizadas.

Daniela Aragão:  Numa memória longínqua, quais foram suas primeiras audições?

Lulu Martin: Minha primeiras audições? Vou entender isso como primeiras introduções. Meu primeiro professor de piano foi meu primo mais velho, Octávio Britto. Ele que apresentava as novidades do mundo do rock para os amigos. Tornou-se meu primeiro parceiro de tocar música, juntamente com o irmão dele, meu outro primo, o Pita, que estudava violão. A primeira música ensaiada por nós se chamava “Up Jumped Spring”. É um clássico do jazz mais recente. Depois dessa época fomos para os EUA. Ainda no Brasil, me lembro de que assistia o grupo de rock, Vímana ensaiar. Fui a shows do saxofonista de jazz, Vitor Assis Brasil. Até assisti ao show do trompetista, Miles Davis, no teatro Municipal, em 1974. Muito marcante foi quando meu pai me levou para ver um show de jazz, com 4 pianistas americanos, que teve no Country Clube do Rio de Janeiro. Eles eram o Earl Hines,  o Teddy Wlinson, a Marian MacPortland e o Elis Larking. Foram a própria história do jazz no piano. Eral Hines foi um dos construtores do jazz, parceiro de Louis Armstrong e o Teddy Wilson ficou famoso tocando com o clarinetista, Benny Goodman, chamado de “O Rei do swing”. Nos Estados Unidos pude ver muitos shows, do rock ao pop, até o jazz de vanguarda.

Daniela Aragão:  Sua formação revela um legado rico com formação em Berklee. Essa experiência certamente te proporcionou um olhar amplo. O que a vivência nos EUA lhe trouxe de contribuições?   

Lulu Martin: Alguns amigos estudavam no Berklee College of Music, e eu fui conhecendo a escola de longe. Os Estados Unidos me trouxe a possibilidade de assistir à muitos shows de música. Boston tem uma vida cultural intensa e diversificada. Cada show que eu assistia me dava mais vontade de ser músico. Eu achava fascinante ser um instrumenista. Assisti a grandes e pequenos shows. Frank Zappa; Retourn To Forever; Eagles; Weather Report; Crosby, Stills, Nash; Bill Evans; Mcoy Tyner; Keith Jarret; Oregon. As artes são vistas nos EUA como positivas, necessárias à educação completa do indivíduo. Essa é uma diferença entre aqui e lá. Eles possuem muitos recursos e assim podem comprar o acesso aos bens culturais. Podem se planejar de forma antecipada para irem a um show ou um evento. No Brasil isso não existe. O público brasileiro aparece no show na última hora. Dessa forma, nenhuma produção consegue se organizar direito. A escola Berklee me deu um estoque de conhecimentos musicais muito sólido. Eu pude me desenvolver com o que aprendi nesse curto período de estudos. É uma grande escola, sempre foi.  

Daniela Aragão:  Voce como pianista acompanhou artistas do quilate de Luis Melodia, Angela Roro, Ney Matogrosso. Como é lidar com a singularidade de cada cantor sendo você um pianista com uma assinatura própria?

Lulu Martin: Eu tive uma formação jazzística. A escola era pragmática e voltada para resultados, mas a linguagem central dela era o jazz. E minha vida de trabalho na música sempre foi direcionada para a música popular brasileira, tocando com pessoas de estilos diferentes. Eu sempre tive que me adaptar para poder trabalhar. Tive que me anular um pouco para poder trabalhar com estilos tão diferentes quanto Lulu Santos, Zezé Motta, Luis Melodia, Moreira da Silva, Rio Jazz orquestra, Carmen Costa, Jane Duboc, Tunai, Ed Motta. Essa foi a minha solução encontrada, tocar para a música. Fora isso, tive vários conselhos de amigos, músicos da situação, que falavam para eu tocar assim ou assado, para não tocar dessa ou daquela maneira. Hoje em dia penso que eu sempre tive que baixar um pouco o meu nível musical para poder trabalhar e conhecer pessoas. Outras vezes também tive que me esforçar para elevar o nível das minhas capacidades, para poder tocar na gig do momento. A palavra "gig" significa compromisso de trabalho. Essa expressão veio pro Brasil através de amigos que estudaram por lá.  

Eu sempre quis ter estilo próprio, mais do que possuir técnica. Sempre admirei os artistas que desenvolveram sua própria voz. Isso eu consegui, apesar de eu saber por quem fui influenciado. Eu saberia identificar e dizer, escutando meus trabalhos antigos gravados, quem seriam minhas influências na época.   

Daniela Aragão: No ofício de professor e exímio executor de seu instrumento você lançou 2 livros. O que o motivou a construir o livro “O Som dos Acordes”?            

Lulu Martin: O que me motivou a escrever “O Som dos Acordes” foi que percebi que na cultura brasileira não existia muito a padronização. Fiz faculdade de administração e li muitos livros, quase todos traduções de estrangeiros. Na música era uma situação parecida. Eu já tinha as páginas dos exercícios em folhas isoladas, páginas dos assuntos do livro. Ficou mais fácil fazer algo com a ajuda da tecnologia, produzir pequenas coisas com a ajuda do computador. Tudo ficou mais facilitado. O livro é uma organização. E assim comecei a querer escrever o livro. Ele ensina a fazer e pensar em escalas, acordes e a construir dissonâncias. Dissonância significa instabilidade. O livro ensina através de conceitos e regras. Como não temos uma padronização na música brasileira, não temos muito a continuidade das criações. Temos uma sensibilidade que funciona nas artes brasileiras. Assim, damos um jeito. Fazemos da nossa maneira. Mas, acaba que ficamos mais no individualismo de cada um. Sem padronização ficamos como se cada indivíduo da música falasse seu próprio dialeto. O livro é um método que ensina sobre escalas, acordes e inversões. Ensina regras musicais que padronizam o tocar piano. Foram essas oportunidades que enxerguei para fazer o livro.

Daniela Aragão: Certamente seu livro é de considerável importância para auxiliar não só o músico de formação clássica, tradicional, ou seja, aquele que passa pra conservatório, faculdade de música. É valioso sobretudo para o músico que constrói sua carreira de maneira autônoma.

Lulu Martin: Sou a favor sempre de se frequentar escola de música. O comum é que você tenha vocação e seja educado pela escola de música. Depois terá a vida toda para se desenvolver na prática. O livro foi feito fora dos requisitos acadêmicos brasileiros, porque no Brasil ainda estamos nos iniciando no mundo das escolas de música popular. Um diferencial do livro é que ele mostra a origem do que ensina. De onde vieram aqueles acordes? Foram extraídos de tais escalas. Eu acho que o livro é positivo para quem quer aprender a estudar acordes. Serve para pianistas, outros instrumentistas e arranjadores. Mas os livros não são música, mas são livros de harmonia, um dos elementos da música. Ele seria importante para alunos que desejam conhecer melhor a harmonia e os acordes de jazz mais dissonantes.        

Daniela Aragão: Você compõe?        

Lulu Martin: Minha obra de composição musical ficou mais restrita à música instrumental. Fiz trilhas musicais para propagandas veiculadas em tv e rádio e alguns poucos filmes e canções. No grupo que fiz com o Leoni, “Heróis da Resistência”, a nossa primeira parceria, Double de Corpo  toca nas rádios até hoje. As músicas Double e Só pro meu prazer entraram para a programação das emissoras brasileiras. Gosto muito de um filme para o qual fiz a música. É um filme de computação gráfica, chamado Um Apólogo. Foi um trabalho feito para a TV Escola. Sinto que fui mais original nesses trabalhos feitos em estúdio.

Eu sempre fui mais músico acompanhante do que solista. Nos meus shows eu não inventei quase nada. Eu já sabia tudo o que está neles. Apenas repassei o conhecimento organizado que já tinha na mente para os livros. Mas, sinto que os livros são o meu trabalho mais significativo. Minha obra assinada com minha personalidade musical. E sou a favor da transmissão do conhecimento. E como só pude estudar oficialmente depois de mais velho, posso dizer que os livros são muito bem organizados, porque dentro da bibliografia deles estaria o espírito de toda a faculdade de administração que fiz.        

Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?

Lulu Martin: Não sou mais espiritualista como fui quando jovem. Me acho mais materialista que utópico, nos termos de Karl Marx. Acho que a sobrevivência material é a nossa primeira necessidade e assim eu tenho tocado piano para poder sobreviver.  Na cultura brasileira não existe a possibilidade de você entrar em transe para se conectar com o divino e ser um canal de energia tocando música  divina. Isso coisa pra países desenvolvidos e ricos. Nós somos limitados na parte técnica e em comparação com a cultura norte americana, diria que eles se desenvolvem o máximo possível e depois apelam para o substrato religioso para mais desenvolvimento.

Temos uma sensibilidade que funciona na música, não sei nas outras artes. Mas no geral, falta educação para saber apreciar, falta riqueza para aprendermos a comprar bens culturais. Então, acho que a música ainda não é um caminho de vida estruturado. No entanto a música foi meu estruturante mais firme na vida. A música é boa, nós é que somos imperfeitos. Então, a música para mim foi um caminho de vida.

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