Daniela Aragao Daniela Aragão 28/11/2014

Tu me acostumbraste

Noite de sexta, noite de sábado, ele chegava com a sacolinha de plástico do botequim da esquina cheia de latinhas de cerveja. Eu já o aguardava com minha Coca light na geladeira e os discos empilhados sobre a mesinha do centro e a velha "arca de Noé", como gostava de dizer meu irmão. Vítima de inúmeras reformas, a ancestral "arca de Noé" resistiu até seus derradeiros dias na versão laqueada em tom de branco, que já passara por madeira natural, amarelo, vinho, preto, enfim, em quase trinta anos o móvel foi alternando todas as possibilidades cromáticas e suportando todos os pesos que sobre ele se sustentavam.

Tom e ElisHavia um disco que obrigatoriamente abria ou encerrava ritualisticamente nossas noites, que muitas vezes varavam altas madrugadas. "Tom e Elis", segundo ele, era um dos maiores LPs do mundo, por reunir a magnitude da música de Tom Jobim, a grandeza dos versos de Vinícius de Moraes e a densidade e beleza da interpretação de Elis Regina. Papai gostava de repetir com orgulho que havia desgastado de tanto uso quatro vinis de "Tom e Elis" e que se precisasse faria o mesmo com a versão em CD. João Gilberto também era imprescindível em nossas audições, ele adorava ficar me chamando a atenção para a singularidade do canto de João que se sobrepunha único aos seus acordes dissonantes e a batida do violão. Chico Buarque então nem se fala, era sua absoluta paixão. Quando completei doze anos, papai jogou sobre meu colo cerca de uns dez vinis do Chico e passou umas três semanas me apresentando ao grande compositor.Diariamente conversávamos sobre minhas audições intensificando a intimidade com aquela obra tão rica e repleta de inexploráveis caminhos a serem percorridos. Papai aguçava Franciscomeus sentidos preparando-me para o momento sublime, que aconteceu com nossa ida ao show de divulgação do disco "Francisco". Criação altamente inspiradora do compositor, que reuniu naquela safra a obra prima "Todo sentimento", em parceria com Cristovão Bastos, ao lado de composições de um lirismo perturbador de delicadeza e candura, como "Minhas meninas", dedicada a suas três filhas: "Olha as minhas meninas/As minhas meninas/Pra onde é que elas vão/Se já saem sozinhas/ As notas da minha canção/Vão as minhas meninas/ Levando destinos/Tão iluminados de sim/Passam por mim/E embaraçam as linhas/Da minha mão/As meninas são minhas/Só minhas na minha ilusão/Na canção cristalina/Da mina da imaginação/Pode o tempo/Marcar seus caminhos/Nas faces/Com as linhas/Das noites de não/E a solidão/Maltratar as meninas/As minhas não/As meninas são minhas/Só minhas/As minhas meninas/Do meu coração".

Chico Buarque marcava sua presença fiel aconchegado entre a pilha de discos espalhados sobre a ancestral "Arca de Noé". Conversa vai, conversa vem, dependendo da noite o assunto começava nas questões domésticas, passava por política, trabalho e terminava invariavelmente em arte, que podia ser cinema, mas Nanaquase sempre a música fechava com alta categoria. Revelo para os incrédulos que conseguíamos manter incrivelmente um semelhante equilíbrio atmosférico após as minhas cinco, seis, sete taças de coca light e papai já por volta de sua nona ou décima latinha de cerveja. Ele ia simplesmente se tornando um pouco mais efusivo e o pescoço às vezes tendia a ficar mais relaxado, digamos que reclinava um pouco para frente no movimento típico dos ébrios. Quando então a noite se agravava e já havíamos possivelmente passado até por Chet Baker, era o momento dele pedir: "Coloca a Nana Caymmi com a voz mais linda do planeta cantando os boleros pra fechar a noite arrasando meu coração". Apesar dessa solicitação ser corriqueira nas noites mais gravemente prolongadas, era engraçada a maneira como papai arriscava o espanhol e saía cantando "Tú me acostumbraste/A todas esas cosas/Y tu me ensenaste/Que son maravillosas". Dependendo do balanço do instante e da calibragem (dele), a princípio caíamos numa suave gargalhada e mais adiante deixávamos escorrer algumas lágrimas de emoção, aprofundadas pelo nível do assunto compartilhado e contornado pela voz de Nana. O disco rolava da primeira a última faixa inundando a sala com sua sonoridade aconchegante e altamente convidativa ao bailado. Chet BakerNão raras vezes, papai ia empolgando e aumentando o volume a cada goladinha de cerveja e chamava mamãe (que poderia estar deitada em seu décimo quinto sono) para dançar. Mas o latin lover conseguia ser irresistível: "Jorge só uma, mas abaixa esse som que os vizinhos daqui a pouco vão bater na porta". O cavalheiro e a dama bailavam no apertado espaço ao som de "Frenesi", "La puerta", "Cuando vuelva a tu lado" ou "Sabe de mim", uma das músicas de Sueli Costa a qual papai se detinha sempre com encantamento "sabe de mim mas parece que bebe". Fade out para minhas retinas que se fatigaram nesse desvelar emotivo. Nana Caymmi, com certeza a dona de uma das mais lindas vozes do planeta, volta para embalar meu coração.


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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