Sem Fantasia

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Sem Fantasia

A foto foi saindo em formato retangular vagarosamente da máquina de impressão. Pouco afeita a tantas modernidades, acho que minha expressão era de menina encantada. O funcionário da loja colocou num plástico minha Nara Leão, que em breve se transformará num quadrinho na parede ao lado de minhas inspirações sonoras. Se minha casa fosse tão grande como o amplo e saudoso restaurante Faizão, se transformaria certamente numa galeria de músicos.

Não pude deixar de olhar para os olhos do Zé Kodak, sem que ele percebesse minha indiscrição “Acabou nosso carnaval ninguém ouve cantar canções”. Um dos maiores entusiastas do carnaval de Juiz de Fora devia guardar por dentro uma singela saudade. O “Caminho pra felicidade”, uma marchinha de Toinho Gomes a qual me apropriei, foi registrada por mim e uma turma super astral  de músicos, para comemorar o carnaval de São João Nepomuceno. Todos eles em conformidade com os pré-requisitos necessários para o baile dos mascarados, eu o bendito fruto com o brinde da ausência da cobertura Jeannie el gênio. Fizemos todo o registro quase um mês antes da data oficial do carnaval,  para que na terça feira saíssemos com sensação de calor da hora.

Muito se tem falado sobre as lives de Teresa Cristina e os encontros tão bonitos proporcionados por Mônica Salmaso no “Ô de casas”. Há um outro souvenir de encantamento que hoje me toca os sentidos na ressaca pós carnaval cibernético. A intérprete Leila Pinheiro tem iluminado minhas noites de sábado e a de tantos ouvintes desde o início da pandemia. Presumo que a artista já contabilize por volta de trinta e um encontros, sem colocar no repertório as lives fechadas,  que tem feito para os que desejam assisti-la com exclusividade.

A elegância e a sobriedade fina flor são uma das marcas da intérprete Leila Pinheiro. Inteiramente trajada de preto, a alusão a sua “mangueiridade”  despontava sutilmente  com duas echarpes carnavalescas, uma verde e outra Rosa. O espectador atento também podia notar num cantinho da estante branca duas lindas cartolinhas, uma rosa, outra verde. Leila acompanha-se ao piano com uma intimidade simbiótica e transforma composições outrora banais em jóia rara. Para ela eu gostaria de utilizar o termo “escavadora de canções”. É cada vez mais agudo seu dom de tirar as películas preciosas da palavra e do som. 

“Bloco do prazer” de Moraes Moreira e Fausto Nilo ganha em dimensão lírica no modo como a criadora passeia por cada frase: “Pra libertar meu coração /Eu quero muito mais/Que o som da marcha lenta/Eu quero um novo balancê/O bloco do prazer/Que a multidão comenta/Não quero oito nem oitenta/Eu quero o bloco do prazer”.  A forma como Leila divide e imprime sua dinâmica interpretativa me parece ser o grande trunfo de sua ânima criadora. O piano que ela toca cada vez melhor, conforme disse Roberto Menescal, é minimalista e apenas atua como suporte para que sua performance traga a maior verdade possível de cada canção.

Prefiro assisti-la na tela toda, mas vez em quando dou uma olhada de soslaio nos comentários efusivos da vasta plateia que a assiste. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, já cantava Bituca. Com um trabalho marcado pela qualidade sem concessões, Leila Pinheiro comunica com a plateia com uma intimidade comovente. Se a canção não pode ser tocada no calor da hora, a artista leva o pedido como tarefa da semana e no encontro seguinte presenteia o ouvinte com sua versão para alguma composição de outro criador, ou uma releitura de alguma música de seu repertório dos quarenta anos de carreira.

Ruy Guerra a meu ver é um dos maiores cineastas letristas, vide “Olho d’água”, “Bodas”, “Bárbara”, “Você vai me seguir”. Bonita demais a interpretação de Leila para “Entrudo”, que fora gravada por Elis Regina com aparente assinatura definitiva. Leila segue com sua singular sabedoria de escafandrista lírico-sonora. Passeia pelos versos de Ruy Guerra com a beleza de seu canto.

“Passistas”, composição primorosa que abre o disco “Livros” de Caetano Veloso, despida da base rítmica que a revestiu na gravação original do cantor, ganha com a interprete uma beleza transcendente em sua magnitude de poesia cantada: “Vem/Eu vou botar a mão no teu quadril/Multiplicar-te o céu por muitos mil/Fita o céu rosa /Roda/A dor/Define nossa vida toda/Mas estes passos lançam moda /E dirão ao mundo por onde ir”.

Dou um micro-salto de três dias e rememoro a live fechada de ontem. A quarta feira de cinzas levou os restos deste estranho carnaval, mas deixou intacto e pulsante o samba, reverenciado já na abertura com o emocionante canto à capella de João Nogueira em “Minha Missão” (João Nogueira e Paulo César Pinheiro). A memória dos grandes mestres é chama que não se apaga, é o ABC de Ezra Pound, o paideuma da intérprete que jamais suplanta seus pilares de força criativa. O maestro soberano com “Piano na Mangueira”: “Mangueira/ Estou aqui na plataforma/ da estação primeira/ o morro veio me chamar”.  Zé Keti na atemporal “Diz que fui por aí”. Ápice de comoção me invadiu quando a artista cantou “Vida da minha vida”, que já na gravação de Zeca Pagodinho me deixava no limiar das lágrimas a escorrerem. Vida da minha vida, a música é pra essas coisas mesmo. Todas as bençãos para Leila Pinheiro!