SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Tatiane Ribeiro, 27, ainda se emociona ao recordar a felicidade da mãe, empregada doméstica, ao saber que ela tinha passado em pedagogia na USP. "Lembro de como ela ficou orgulhosa. Eu não era só a primeira de nós a fazer graduação, era a filha dela que tinha passado no vestibular. Esse sonho era até mais dela do que meu."
Sua mãe, Edineuza, parou de estudar no quarto ano, para trabalhar como empregada doméstica ainda na adolescência, no interior da Bahia. "Quando viemos para São Paulo, a gente morava em uma favela em Itaquera [zona leste de São Paulo], e para economizar o dinheiro do ônibus, ela às vezes dormia na casa dos patrões. Acho que ela transformou esse sacrifício todo em impulso para me incentivar a seguir estudando."
Perto de terminar a graduação, ela se divide entre os estágios e o trabalho em uma biblioteca comunitária especializada em autores negros. "Já que ela não pôde, minha mãe queria que eu escolhesse a minha profissão. Agora, quero ajudar a modificar a vida de outras pessoas da periferia, provar que podemos levar a nossa vivência para a universidade."
A história de Tatiane reflete uma mudança significativa: em uma década, o número de brasileiros de 14 a 29 anos exercendo algum tipo de trabalho doméstico --na condição de formal ou informal-- caiu 35,1%, de acordo com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua.
Esses trabalhadores eram 1,308 milhão no primeiro trimestre de 2012, o primeiro ano da série histórica da pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e agora somam 849 mil. Eles passaram de 4,7% do total da população ocupada nessa faixa etária há dez anos para 3,4%.
No mesmo intervalo, o trabalho doméstico praticamente se manteve estável entre os maiores de 30 anos, que eram 4,647 milhões há dez anos e passaram para 4,759 milhões no fim do primeiro trimestre de 2022 --uma leve alta de 2,4% no período, segundo levantamento feito a pedido da Folha pela consultoria IDados.
A presença dos mais jovens em funções de limpeza, jardinagem, trabalhando como caseiros ou zeladores vem caindo de forma constante ao longo da série, com leves repiques para cima.
Esses aumentos pontuais ocorreram, sobretudo, de 2017 para 2018, com a recuperação da economia após a recessão dos anos anteriores e de 2021 para 2022, com a reabertura após o baque causado pela pandemia.
"Os dados apontam que os jovens têm menos chance de exercer trabalho doméstico do que antes, uma tendência que vem desde antes da pandemia", diz a pesquisadora da IDados Mariana Leite. "Certamente é uma mudança histórica, ao compararmos, desde o início da série, o trabalho doméstico dos jovens com o da população em geral ocupada com o trabalho doméstico."
Ao se olhar para as ocupações mais exercidas por brasileiros de 15 a 29 anos, o movimento é semelhante: a função "Trabalhadores dos serviços domésticos em geral", a principal do grupo de trabalhos domésticos da Pnad, era a terceira com mais jovens em números absolutos, com 1 milhão de pessoas nos três primeiros meses de 2012.
Dez anos depois, eram 480 mil trabalhadores nessa função, e ela passou a ocupar a oitava posição do ranking --atrás de ocupações sobretudo dos setores de comércio e serviços, como balconistas, escriturários e recepcionistas, além de trabalhadores da construção.
Leite acrescenta que houve um aumento de escolaridade ao longo das gerações. "No Brasil, houve um reforço de medidas afirmativas, como o sistema de cotas nas universidades. E ainda que o acesso à educação superior não seja amplo, mesmo a conclusão do ensino médio já fez diferença."
'FILHO DE POBRE NÃO TEM SEGUNDA CHANCE'
"Passei no vestibular de primeira, filho de pobre não tem segunda chance", resume Xênia Mello, 37, filha de uma ex-empregada doméstica em Curitiba, ao narrar o percurso que fez de casa até o posto dos Correios, para se inscrever no curso de Direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
"Vendi meus livros para pagar o vestibular. É uma história de superação, mas que não pode ser usada como discurso de meritocracia. Ela é atravessada por muito sofrimento e violência."
Mello passou na faculdade junto com o filho da patroa de sua mãe. "Anos mais tarde, me dei conta de que vários dos ressentimentos que tinha de infância eram reflexo de uma questão econômica. Minha mãe morou no emprego por muito tempo e eu ficava sozinha na adolescência. Essa relação da distância da maternidade me fazia comparar a nossa história ao filme "Que Horas Ela Volta?"."
No filme de Anna Muylaert, lançado em 2015, Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica que se mudou para São Paulo para tentar dar uma vida melhor para a filha, Jéssica (Camila Márdila), que ela deixou em Pernambuco. Anos depois, a garota vem para a cidade prestar vestibular. A obra discute as relações entre patrões e empregadas e joga luz sobre a possibilidade de escolha da profissão.
"Assim como a personagem do filme, nunca pensei em trabalhar na casa de alguém, sempre tive convicção de que faria outra coisa. E não vejo o trabalho doméstico como algo desmerecido, adoro organizar a minha casa, mas sempre sonhei com uma formação superior que faria com que meu trabalho fosse uma escolha, não uma sentença", diz Mello, que hoje é servidora em uma universidade pública.
"Nos últimos anos, ficou perceptível que quando condições de saída são criadas e a situação do país melhora, menos gente se sujeita ao trabalho doméstico", avalia Tatiana Roque, da Rede Brasileira de Renda Básica. "Para os profissionais que seguem nessas funções, é importante criar janelas de profissionalização, para que as relações antigas sejam revistas com a chamada economia do cuidado."
Apesar dos avanços, 4 das 10 principais ocupações dos jovens brasileiros ainda exigem qualificação menor que o ensino médio.
CRISE E PANDEMIA AFETARAM FORMALIZAÇÃO E REMUNERAÇÃO MAIOR
Além dos efeitos da pandemia, acompanhar o comportamento do trabalho doméstico no país nos últimos anos também obriga os pesquisadores a ponderar o impacto da aprovação da chamada PEC das Domésticas e os efeitos da recessão de 2015-16 e da pandemia sobre esse tipo de trabalho.
Em abril de 2013, no governo Dilma Rousseff (PT), foi promulgada a emenda constitucional 72, que estabeleceu direitos trabalhistas aos domésticos, aproximando a categoria dos demais trabalhadores, com auxílio-maternidade, pensão por morte e aposentadoria. Medidas complementares, em 2015, garantiram outros benefícios, como FGTS, seguro-desemprego e adicional noturno.
A formalização foi apontada à época como um fator de aumento de demissões. Os dados da Pnad, no entanto, apontam uma queda de 3% no número de domésticos com carteira assinada (de todas as faixas etárias) entre o primeiro trimestre de 2013 e igual período de 2014, de 1,87 milhão para 1,17.
Mas esse contingente de trabalhadores com carteira voltou a subir em 2015 e atingiu o recorde para o trimestre na série em 2016, de 2,1 milhões. Segundo os pesquisadores, os dados sugerem que a formalização foi mais prejudicada pela recessão de 2015 e 2016 e pela pandemia do que pela formalização.
A pesquisadora da IDados lembra que as mudanças na legislação também não provocaram ganhos significativos na remuneração de trabalhadores domésticos. Em dez anos, o rendimento real cresceu 0,6% para os jovens e caiu 0,7% para os domésticos maiores de 30 anos. Somente no período de pandemia, as duas faixas perderam 3,27% e 11,47% de renda, respectivamente.
Para Sergio Firpo, colunista da Folha e economista do Insper, é importante considerar o impacto que os anos de pandemia tiveram e ainda terão sobre o trabalho doméstico, amplificando a insegurança das trabalhadoras que não eram regularizadas e ficaram sem renda da noite para o dia e cortando postos de emprego das que eram regularizadas.
"A pandemia teve o efeito de diminuir a demanda pelo trabalho doméstico. Isso teve um peso perverso, sobretudo sobre mulheres pobres e com menor instrução."
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