SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O economista José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1995-1998), afirma que o Brasil tem grande chance de se beneficiar, em 2024, de um novo ciclo de recuperação da economia mundial e dos preços das commodities que exporta.
"Se terminarmos este ano bem, mesmo que com crescimento baixo, podemos caminhar numa direção olhando para cima. Mas, se entrarmos neste segundo semestre olhando para baixo, com medo de a inflação subir e o Banco Central aumentar juros, aí não haverá tempo para o governo se recuperar".
Mendonça de Barros qualifica como "uma coleção de equívocos" as recentes declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) questionando a autonomia do Banco Central, a meta de inflação, a taxa de juros e a responsabilidade fiscal.
Segundo ele, enquanto o ministro Fernando Haddad (Fazenda) tem dado sinais positivos, Lula fala para seu "cercadinho" de esquerda, assim como Jair Bolsonaro (PL) fazia com apoiadores na direita.
Em sua opinião, se o governo Lula errar, a reação negativa no câmbio e na inflação virá em prazo muito curto.
PERGUNTA - A PEC da Transição abriu espaço fiscal de cerca de R$ 170 bilhões, equivalente a mais de 2% do PIB. Fernando Haddad [Fazenda] diz querer restringir esse gasto a 1% do PIB, contendo o déficit de 2023. Mas o presidente Lula vem jogando contra as expectativas, questionando a autonomia do Banco Central, a meta de inflação, os juros e até a responsabilidade fiscal. Como avalia o início de governo?
JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS - Se colocarmos ainda os eventos do dia 8 [de janeiro, com o ataque aos Três Poderes] nesse contexto, foi avassalador. É algo muito preocupante.
As sucessivas falas do Lula, que são uma coleção de equívocos, decorre de uma decisão dele de falar para a sua plateia. Está ocorrendo à esquerda o que ocorria à direita: falar para a plateia. Isso tem influência ruim nas expectativas. Não só do mercado, mas de todo mundo, aqui e lá fora.
Existem dois grupos de falas. Um primeiro que deseja refazer coisas estabelecidas, como as reformas da Previdência e a trabalhista, o novo marco do saneamento e a privatização da Eletrobras. O segundo, são as coisas mais recentes que você colocou, e eu citaria também financiamentos do BNDES para a Argentina e a moeda única com o Brasil.
Exceto para o "povo do cercadinho", a reação é muito ruim. Mas a pergunta que se coloca é: vai acontecer? Até agora não houve movimentação nesse sentido. Ao contrário. No caso do [reajuste acima da inflação] do salário mínimo, criou-se uma comissão, e a experiência mostra que isso não leva a uma solução. Nada foi proposto na trabalhista, exceto enfrentar a questão dos trabalhadores de aplicativos, que teria de ter mesmo uma regulação.
Mas a segunda parte é relevante. Há a intenção de animar a plateia, mas espero que não tenha chance ou alguém pensando nisso. Outros membros do governo colocam panos quentes. É ruim do ponto de vista das expectativas, mas não é o fim do mundo se não for adiante.
Há uma aceitação do ministro da Fazenda de que a PEC da Transição não pode ser levada toda à prática porque, aí sim, detonaria um processo de expansão no gasto público que levaria a um aumento da relação dívida/PIB, que é o pavor de todo mundo. Agora, um gasto adicional entre R$ 80 bilhões ou até R$ 100 bilhões [em 2023] não parece despropositado.
P.- Muitos economistas pensam assim diante da herança deixada pelo governo Bolsonaro. Mesmo o superávit de R$ 54,1 bilhões do governo central no ano passado, o primeiro desde 2013, é visto por muitos como artificial, não?
JB- Total. Os números são, em certo sentido, maquiados. Foram feitas coisas inaceitáveis nos últimos anos.
Na PEC dos Precatórios [2021], despesas foram jogadas para frente. Houve também a aceleração da inflação. Quando a inflação acelera, o PIB nominal sobe junto com a inflação, mas a dívida nominal, não. Pois o governo leiloa a cada semana uma fração da dívida total. Mesmo que o juro da nova dívida seja maior, o efeito no estoque é pequeno. É um resultado aritmético que a relação dívida PIB caia. Dou valor zero a isso, pois não me diz que houve um ajuste fiscal.
Um outro fator é que houve uma aceleração nos preços da commodities e a arrecadação subiu muito. Esse é um efeito verdadeiro, mas temporário. Em cima desse efeito temporário, o governo anterior criou muito gasto permanente. Também não houve reajuste na folha do funcionalismo, e é uma questão de tempo para termos pressão aí.
Ao mesmo tempo, não ouve reformas. A da Previdência foi completada, mas foi negociada e montada antes. Dizer "eu fiz a reforma da Previdência" é falso.
No último ano, foram feitas várias artes fiscais, que são o que mais aparece na herança. Desde o atropelo da Lei de Responsabilidade Fiscal e a lei eleitoral, ao permitir aumentos de gastos no segundo semestre de um ano eleitoral.
Para quem [Lula] gostava de falar que a herança do Fernando Henrique [Cardoso] era maldita, ganhou uma herança maldita mesmo. Por isso, parece razoável um gasto adicional neste ano de até R$ 100 bilhões.
P.- Desde a forte recessão de 2015-2016, o Brasil apresenta produtividade e crescimento muito baixos e, tirando a reforma tributária, não parece haver apetite para grandes reformas, como a administrativa, ou privatizações. Qual a sua expectativa?
JB- Acredito que o governo vai colocar energia na reforma tributária. Ela amadureceu com o trabalho de muita gente e, com o passar do tempo, há consenso de que se tornou indispensável para resgatar a chance de termos melhor eficiência na atividade e mais produtividade.
Com a reforma, e isso ficou meio escondido, a maior ganhadora será a indústria, que, lamentavelmente, é a que menos batalha por ela. Quem tem dúvidas é o agronegócio, que acha que pagará mais imposto, o que não ocorrerá necessariamente. Mas acho que há consenso de que o atual sistema tributário, baseado no consumo, não tem mais jeito. Em relação a outras reformas, não vejo nada de relevante acontecendo.
Sobre privatizações, creio que mais importante são as concessões. Nessa área, há também apoio grande de estados e municípios. Mas, independente de grandes reformas, e se a macroeconomia não arruinar, teremos também um aumento de investimentos razoavelmente relevante na área das commodities, no agro, em minério e no petróleo.
Estamos acumulando nesses setores muito investimento novo ligado à descarbonização e energias alternativas. Isso vai acontecer, independentemente de qualquer coisa.
P.- No cenário externo, o quadro vem mudando. O banco central americano talvez não suba tanto os juros, a crise energética na Europa foi branda, a inflação dá sinais de trégua e a China acabou com a política de Covid zero. Isso não ajudará Brasil pela via das commodities?
JB- No cenário internacional, estamos na primeira fase de mudar o ciclo, que é apontar para começar a cair a inflação, baixar juros no segundo semestre e ter desaquecimentos menos graves nos Estados Unidos e na Europa. A tendência aponta para coisas melhores, mas é fundamental colocar o "timing" aqui, e uma recuperação mais forte da demanda é para 2024.
Se o governo atual não fizer besteira, o Brasil é visto como um bom destino para investimentos. Se, na parte macroeconômica, forem feitas coisas minimamente razoáveis, como a reforma tributária, e que permitam ao Banco Central começar a baixar os juros, mesmo que lá na frente, aí sim o cenário internacional vai começar a nos ajudar. Mas isso vai demorar até o final do ano, começo do próximo.
Mas há um cardápio mínimo a seguir. Não mexer no passado, não sustentar esse discurso ruim, ainda que político, ter ações no lado da despesa e um conjunto de medidas na receita que permita dizer que o déficit não será maior do que R$ 80 bilhões ou R$ 100 bilhões. Além da nova regra fiscal, que precisa ser crível, e a reforma tributária. Não é pouca coisa.
Por isso, 2024 é o ano chave. Pois, se terminarmos este ano bem, mesmo que com crescimento baixo, podemos caminhar numa direção olhando para cima. Mas, se entrarmos neste segundo semestre olhando para baixo, com medo de a inflação subir e o Banco Central aumentar juros, aí não haverá tempo para o governo se recuperar.
P.- A pesquisa Focus do Banco Central vem mostrando alta nas expectativas de inflação. Essa é uma batalha ainda não vencida, mesmo com a taxa de juros básica em 13,75%. Como vê o cenário?
JB- Existem dois preços, gasolina e energia elétrica residencial, que, por conta da retirada temporária de tributos, contam negativamente. O resto, incluindo o "core" [núcleo] da inflação, está em 9%. Alimentos estão em 11,5%. A inflação não caiu. Isso é verdade do ponto de vista de quem constrói o índice de inflação, mas é falso. Pois o processo que está por trás não é de queda de preço. Foi uma apelação das mais grotescas que desarranjou a parte fiscal e que é mentirosa do ponto de vista da inflação.
Tem milhões de famílias que não têm carro, não trabalham com carros e que têm tarifa social de energia. Para esse povo, a inflação é 10%. Além disso, estamos abrindo o ano com a questão climática muito complicada. Entre o início de janeiro e sexta passada (27), em relação ao mesmo período do ano passado, arroz e feijão estão subindo 50% no atacado. Com a chuvarada recente, os hortigranjeiros também estão subindo, assim como o leite.
É nisso que o presidente da República precisa ter mais atenção. Ninguém ganha da inflação, nem o Lula, e a situação é muito pior do que aparece nos 5,8% do IPCA [de 2022].
O PIS/Cofins da gasolina vai ter que voltar. É uma das poucas coisas que o governo pode fazer no fiscal, e são R$ 30 bilhões. Isso vai pressionar ainda mais a inflação, que é uma ameaça para o país. Não tem nada a ver com o mercado financeiro. E quem sofre é a clientela do próprio governo [os mais pobres].
O termo técnico para isso é desancoragem da inflação. Em cima disso, vir dizer que tem de mexer na meta é uma insanidade. Mas, em princípio, com a safra que o IBGE está projetando, em fevereiro e março tem algum alívio.
P.- O maior risco de desancoragem então é fiscal?
JB- Exatamente. Se parte a fiscal for montada de tal forma que não exista mais razões para ter medo e que se possa olhar dois anos adiante, acho que a inflação cai. Os preços da gasolina e energia vão subir e o resto vai cair. Se a parte fiscal for minimamente resolvida, o dólar também vem abaixo de R$ 5. No fundamento, temos muita reserva [cambial] e o investimento estrangeiro está entrando.
Numa visão mais geral, temos um grande problema, que é o fato de que não crescemos. Para superar isso, precisamos evitar desarranjos na macroeconomia e tentar aproveitar a chance que surgirá no ano que vem, vindo da área internacional.
Para isso, precisamos parar com esse discurso insensato do presidente Lula, que é só para falar para o seu cercadinho.
A única vantagem que tem é que, se ameaçar dar errado, o câmbio e a inflação vão sinalizar em prazos muito curtos. Não será como a crise sob a Dilma [Rousseff], em que saímos de uma inflação muito baixa e o lado fiscal arrumado. Até ela desarrumar tudo, levou três anos. Agora, tudo pode ser muito rápido.
RAIO-X
José Roberto Mendonça de Barros, 79
Economista e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1995-1998), tem doutorado em Economia pela Universidade de São Paulo e pós-Doutorado no Economic Growth Center, da Universidade de Yale (EUA). É fundador da consultoria MB Associados.
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