BENTO GONÇALVES, PORTO ALEGRE (FOLHAPRESS) - , Segue de portas abertas, em Bento Gonçalves (RS), o imóvel em que teria ocorrido a maior parte das cenas de violência narradas por trabalhadores empregados na colheita de uvas em regime análogo ao de escravidão.

O resgate dos homens ocorreu após operação que uniu MPT (Ministério Público do Trabalho), Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal na semana passada.

Antes de embarcarem de volta à Bahia, seu estado de origem, no sábado (25), eles relataram às autoridades agressões físicas e verbais. Eles afirmam terem sido acordados com choques elétricos, contidos com spray de pimenta, apanhado com cabos de vassoura e recebido comida imprópria para consumo.

Contratados pela empresa Fênix, do empresário Pedro Oliveira Santana, eles prestavam serviços em parreirais ou em carga e descarga para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, que afirmam desconhecer os maus tratos.

Nesta quarta-feira (1º), o MPT se reuniu com representantes das três vinícolas. Elas receberam o prazo de dez dias para reunir documentos para que o MPT avalie a extensão da responsabilidade das empresas e eventuais punições.

Segundo os depoimentos, uma vez alojados, eles se endividavam com o dono da pensão, o que os impedia de desistir do trabalho e de retornar para a casa. Santana e o proprietário da pousada, Fábio Daros, são investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público do Trabalho.

A Pousada do Trabalhador é a união de três imóveis ("puxadinhos") em uma das diversas ruas íngremes do bairro Borgo. O primeiro é uma casa que abriga trabalhadores de frigoríficos e o terceiro, uma pensão voltada ao público geral, que seguem funcionando normalmente. Entre eles, um pavilhão grande de três andares funcionava como alojamento aos mais de 200 trabalhadores sazonais da colheita da uva. Embora esteja de portas abertas, ele está vazio desde a operação.

A reportagem da Folha visitou o imóvel com a autorização da gerência, mas com a condição de não fotografá-lo. É um local de baixa luminosidade, apertado, com diversos quartos ocupados por beliches e pequenos armários.

Os maiores tinham dez lugares (cinco beliches). Parte deles tinha ar-condicionado. No subsolo há banheiros e sete chuveiros. Nos fundos, uma nova estrutura, de madeira, vinha sendo construída para abrigar mais trabalhadores. Três funcionários trabalhavam no local, dos quais dois conversaram com a Folha de S.Paulo.

Eles afirmam que as imagens divulgadas na imprensa mostram condições piores do que as atuais porque, segundo eles, os trabalhadores teriam depredado a pousada assim que a operação de resgate começou. Três vizinhos da pousada disseram ter ouvido barulhos de "quebra-quebra" na noite do resgate, mas não sabem dizer se a causa foi a suposta depredação pelos alojados, como dizem os funcionários.

Desde então, o local vem passando por limpeza e reconstrução, embora esteja praticamente vazio.

A gerência do local é feita por dois homens em turnos alternados. Um deles é Josué dos Santos, 28, cujo apelido é Canário. Também baiano, ele diz ter atuado na colheita da uva na temporada passada e ter sido convidado a trabalhar na pousada depois desse período.

Algumas das denúncias feitas pelos resgatados ele nega com veemência, como a de que o local servia comida estragada.

"A gente receberia comida diariamente da Qualitá, uma empresa que presta serviço a um monte de locais aqui. Servimos 200 almoços e jantas no buffet. É a comida que eu e todos aqui comemos diariamente. Se era podre para eles, só sei que eu comia também", diz.

A Folha procurou a Qualitá para saber detalhes sobre o contrato com a pousada, mas a empresa não retornou.

O dono da pensão também não respondeu às tentativas de contato da Folha.

Santos foi apontado em dois depoimentos aos quais a reportagem teve acesso como a pessoa que portava a arma de choque. Um dos resgatados disse já ter visto ele usando a arma, enquanto o outro afirmou ter visto ameaças de usá-la.

O gerente nega ser dono do equipamento, e também afirma que ele não pertencia a nenhum outro funcionário. Questionado se havia agredido ou presenciado agressões, Santos diz que a equipe apenas continha brigas entre os alojados.

"São mais de 200 homens em um pavilhão, alguns deles moraram a vida toda em regiões violentas da Bahia. Eu mesmo sou um deles. Às vezes a coisa fica tensa. Tinha gente que tentava roubar o armário do outro. Tinha gente que dormia escondendo faca embaixo do colchão, ou fazia um estoque [de faca artesanal]. Se a gente não é firme quando começa uma briga, a coisa sai de controle", diz Santos.

O gerente e outros funcionários do alojamento acusam os trabalhadores resgatados de exagerarem seus relatos na expectativa de receber pagamentos antecipadamente e eventuais indenizações. Eles alegam que os trabalhadores recomendavam as vagas nas colheitas a parentes, e que voltavam em outras temporadas.

Os vizinhos da pousada também afirmam que viam os trabalhadores com frequência circulando em grupos pela região, questionando que houvesse restrição ao direito de ir e vir.

O MPT, por sua vez, afirma que os relatos de maus tratos têm credibilidade. "As pessoas lêem 'escravidão' e o que vem à tona são cenas do século 19, com pessoas acorrentadas. A escravidão muitas vezes é econômica. A pessoa que vem, se endivida e não tem como voltar se torna um escravo daquela situação", afirma a procuradora do Trabalho que atua no caso, Ana Lúcia Stumpf González.

Segundo os depoimentos, uma vez alojados na Pensão do Trabalhador, os trabalhadores se viam obrigados a se endividar pegando vales com o dono da pousada para comprar mantimentos e produtos de limpeza, que seriam descontados do pagamento final que receberiam pelo trabalho, com juros.

Um dos resgatados diz ter ficado devendo R$ 500, que se tornariam R$ 750 ao final do trabalho (com o acréscimo de juros). Ele disse ainda que teria que pagar R$ 1 mil caso usasse mais de um atestado médico ao longo de 60 dias.

Outro trabalhador diz ter recebido um tapa ao contestar uma multa de R$ 300 por ter supostamente quebrado um armário ao descer da sua cama.

A reportagem também visitou o mercadinho que vendia alimentos superfaturados aos trabalhadores, segundo a denúncia. O local, localizado no térreo de um pequeno prédio residencial a cerca de 600 metros da pousada, segue de portas abertas. A dona, que preferiu não se identificar com medo de represálias, nega o superfaturamento.

Segundo ela, a única diferença para um mercado de bairro comum é que ela mantinha um caderno para "vender fiado" aos trabalhadores, um acordo informal feito entre o seu marido e o dono da pousada.

Como o mercado estava aberto há cerca de um mês, ela afirma que não chegou a receber os pagamentos. O caderno com as dívidas de cada um foi apreendido na operação. Segundo a dona, a suspeita de superfaturamento se deu em razão de um único saco de feijão vendido a R$ 22.

"Custa isso e segue custando, mas é o preço normal dele. Mas é porque é um tipo especial [carioca premium, embalagem de 1 quilo]. Eu paguei R$ 16 à distribuidora. Ao lado, tinha outro de R$ 8,50 que não saiu na imprensa", alega.

Ele diz que não sabe se continuará no local, porque teria perdido clientes e fornecedores.

A Folha de S.Paulo conversou também com ex-trabalhadores da colheita da uva que se recolocaram em outros trabalhos na região. Os relatos são de uma convivência que oscilava entre a pacífica e a tensa entre eles e com os funcionários da pousada.

Eles afirmam que havia brigas eventualmente nas dependências da hospedagem, mas evitam responsabilizar funcionários ou a empresa contratante. Eles também não afirmam quanto ganhavam ou como os pagamentos ocorriam.

Ao menos dois vizinhos da pousada disseram já ter procurado a Brigada Militar quando ouviram brigas em frente ou dentro da pousada, mas não obtiveram resposta. Um deles disse ter sido ameaçado de prisão caso insistisse em chamar a Brigada Militar.

Na terça-feira (28), o governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou um grupo para investigar a relação entre a Brigada Militar e o caso. No mesmo dia, o MPT realizou uma audiência com representantes legais da empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, que contratava os trabalhadores, e cujo proprietário Pedro Augusto de Oliveira Santana foi preso e liberado sob fiança.

No encontro, o MPT propôs que a empresa pague cerca de R$ 600 mil em danos morais para os trabalhadores resgatados. O valor não impede que eles busquem também reparações individuais na Justiça -a resposta será dada pela empresa em nova audiência na quinta-feira (2). Até agora, o MPT vem fiscalizando o pagamento de cerca de R$ 1 milhão em verbas rescisórias dos contratos.


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