PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Na quarta-feira (1º), o humorista Paulo Vieira iniciou seu quadro no Big Brother Brasil reclamando da carga de trabalho, uma vez que dois participantes foram eliminados na mesma semana. Ao final, disse: "daqui a pouco esse programa coloca umas uvas Salton para eu pisar aqui".
A piada em rede nacional ilustra o tamanho da crise institucional que três vinícolas gaúchas -Aurora, Garibaldi e Salton- enfrentam desde 22 de fevereiro, quando uma operação resgatou 207 trabalhadores baianos contratados por uma empresa terceirizada, a Fênix Prestação de Serviços, e alojados em uma pensão em Bento Gonçalves (RS) em situação análoga à escravidão, segundo autoridades.
O resgate foi seguido de uma série de relatos de ameaças, agressões e extorsões, após um grupo escapar do alojamento. Já funcionários da pousada em que os trabalhadores estavam alojados alegam exagero.
Outras consequências do caso foram a suspensão da participação das três vinícolas em feiras de exportação da ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) e a cobrança de providências da associação brasileira de supermercados. A Rede Zona Sul, do Rio de Janeiro, retirou os vinhos da Aurora das gôndolas dos seus supermercados.
Desde então, as manifestações das vinícolas têm ocorrido por meio de notas oficiais e cartas à sociedade. A Aurora, por exemplo, divulgou uma nota no dia 23 dizendo que exigia das empresas contratadas "toda documentação prevista na legislação trabalhista" e que fornecia "alimentação de qualidade durante o turno de trabalho". Na quinta-feira (2), divulgou uma carta pedindo desculpas e se dizendo envergonhada pelo episódio.
À Folha, a Aurora enviou uma lista de compromissos que incluem não contratar mão de obra terceirizada no período da safra, aperfeiçoar processos de fiscalização de fornecedores e buscar auditorias independentes para certificar suas práticas de responsabilidade social.
A Salton, em seu site, anunciou medidas como revisão de processo de seleção e contratação de fornecedores e um cronograma para realizar auditorias junto a prestadores e fornecedores de forma recorrente e sistematizada. A Garibaldi publicou uma carta à comunidade, mas sem medidas objetivas.
As três vinícolas rejeitaram pedidos de entrevista, e não voltaram a publicar em redes sociais desde o escândalo, à exceção das notas.
Especialistas em gestão de crise criticam o uso de notas oficiais como estratégia de comunicação.
"O norte para sair dessa crise é fazer mudanças genuínas. A nota demonstra o oposto. Se você quiser maquiar em vez de resolver, escreva lá um texto bonito e pronto. Hoje, você usa o ChatGPT e ele gera para você. Então cada vez mais isso vai perder credibilidade", diz Renan Bulgueroni, sócio-diretor da Hawkz, empresa especializada em Marketing e Reputação Digital.
"As pessoas estão se relacionando com a marca, com os seus valores. Então ela quer ver um rosto, alguém comunicando suas intenções. É humanizar a marca. Com as redes sociais hoje é isso: saiu o logotipo e veio alguém mostrar o rosto. Então em um momento de crise desse, a maior recomendação é você puxar uma pessoa", diz.
Ao não dar um rosto ao discurso das marcas, os especialistas alertam para o risco de que haja uma personalização involuntária e indesejada por terceiros. Como o caso do vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel (Patriota), que partiu em defesa dos empresários da serra gaúcha com um discurso contra baianos. Ele foi expulso do partido e enfrentará processo de cassação.
Outro mau exemplo, segundo Bulgueroni, é o do gerente de marketing da Garibaldi, Maiquel Vignatti, que em seu perfil no LinkedIn publicou um texto dizendo que "criminalizar, boicotar ou até mesmo censurar uma cadeia produtiva" por conta de um "desvio de conduta" seria "fazer justiça com lacrações". Após a repercussão, o executivo deletou seu perfil na rede. Procurada, a Garibaldi entendeu que não deveria se pronunciar por não se tratar de uma publicação da empresa.
"Em vez de reconhecer um problema execrável e comunicar esforço em buscar soluções, essa publicação faz o contrário: coloca a culpa nos outros e passa uma imagem de arrogância. Uma pessoa da empresa se manifestar dessa forma faz o público duvidar que qualquer tipo de comunicado institucional seja genuíno", diz o especialista.
Coordenadora do FGVethics, centro de estudos de ética, transparência, integridade e compliance da Fundação Getúlio Vargas, a professora Ligia Maura Costa aponta que o caso é educativo de como as marcas podem pagar institucionalmente se adotarem o que chama de "cegueira seletiva" sobre as suas prestadoras de serviço e fornecedoras.
Como um caminho para sair da crise, indica a adoção de medidas de educação e de acompanhamento posterior de boas práticas ambientais, sociais e de governança -o chamado modelo de gestão ESG. Não apenas no interior das empresas, mas de todas as cadeias produtivas. Além da adoção de um discurso que não omita responsabilidades.
"Por que dizer que elas [vinícolas] não sabiam? Me poupe. Nenhum prestador de serviço faz milagre, então se um serviço custa menos é porque você optou por não saber como aquele trabalhador foi parar lá na sua empresa. Nenhuma empresa desse porte é ingênua a ponto de acreditar em almoço grátis", diz Ligia Maura.
A percepção de que o caso das vinícolas pode ser educativo é compartilhado pela procuradora do trabalho Manuella Gedeon, que faz parte do grupo do MPT (Ministério Público do Trabalho) que avalia a extensão da responsabilidade das empresas no caso.
Ela aponta o caso de Bento Gonçalves como um desdobramento indesejável, mas previsível, da lei que permitiu a terceirização da atividade-fim nas empresas. E diz que escândalos semelhantes podem aparecer em outros setores caso as grandes empresas não revisem desde já suas relações com terceirizadas.
"Isso ocorre porque começam a aparecer denúncias de empresas, como era o caso dessa (Fênix), que não servem para prestar um serviço especializado, mas sim apenas para intermediar mão de obra barata. Em último nível, isso precariza a ponto de chegar ao trabalho escravo."
"Como a terceirização é permitida por lei, a gente caminha para um futuro em que as vinícolas e outras empresas possam ser responsabilizadas por todas as pessoas que prestem serviços a ela, independentemente de serem terceirizadas ou não", diz a procuradora.
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