BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A nova proposta de regra fiscal em discussão no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ter gatilhos de ajuste ligados ao resultado primário, segundo interlocutores ouvidos pela Folha.
Nesse modelo, a meta de gasto é associada à expectativa de receita e despesa de um período. Caso o resultado primário seja considerado ruim em relação a um patamar determinado, ainda em estudo, são acionadas restrições para o crescimento dos gastos no período seguinte.
Os instrumentos de ajuste são uma sinalização importante dentro de um marco fiscal que mira o médio prazo e terá nas projeções para esse horizonte um alicerce para tentar convencer investidores de que as contas são sustentáveis.
A proposta de atrelar a restrição do gasto à dívida, que é defendida por muitos economistas que redigiram sugestões de regras fiscais, é descartada por técnicos e autoridades ouvidos sob reserva pela reportagem.
A avaliação é que qualquer indicador de endividamento, mesmo a dívida líquida, é afetado por variáveis como o pagamento de juros. Pessoas envolvidas nas discussões dizem que não faria sentido acionar os gatilhos por causa de um aumento na taxa de juros pelo Banco Central, por exemplo.
Uma queda brusca do PIB (Produto Interno Bruto) também poderia prejudicar a trajetória dos indicadores de dívida, uma vez que eles são comparados com o tamanho da economia do país. Outro elemento volátil que afeta a dívida é a variação do câmbio.
Além disso, a dívida sobe quando há piora nas contas públicas e pode demorar até retornar aos patamares anteriores -o que implicaria operar mais tempo com os gatilhos acionados. Uma eventual piora do resultado primário, por sua vez, poderia ser revertida de forma mais célere pelo governo.
O gatilho para restrição de crescimento de gasto é um dos pontos mais sensíveis da discussão, pois o governo resiste em limitar despesas e impor mecanismos automáticos de ajuste.
Em entrevista ao site 247 nesta terça-feira (21), o presidente Lula foi claro ao afirmar que é preciso muito cuidado na definição da regra fiscal para que ela não afete a liberação de recursos para saúde e educação. O petista também tem sido enfático sobre a necessidade de manter espaço no Orçamento para benefícios sociais e investimentos públicos.
Dentro do governo, a leitura é que o investimento do Estado gera crescimento e, por tabela, haveria queda na relação dívida PIB. Sendo assim, não é plausível conter gastos agora, quando há risco de contração da economia em todo mundo, não apenas no Brasil.
O desafio de conciliar essas diretrizes com os princípios de sustentabilidade e credibilidade fiscal tem dificultado a definição dos parâmetros da nova regra.
São eles que ditarão quanto o governo poderá expandir os gastos, se as metas serão compatíveis com os mínimos constitucionais de saúde e educação e em que cenário de resultado primário os gatilhos de ajuste seriam acionados, por exemplo.
Como mostrou a Folha, a indefinição sobre esses parâmetros levou ao adiamento do anúncio da proposta para abril.
O governo também precisa chegar a um consenso sobre quais serão as medidas de ajuste requeridas em caso de acionamento dos gatilhos. No teto de gastos, que será agora substituído pela nova regra, alguns dos mecanismos barravam aumentos reais de despesas, incluindo o salário mínimo --algo que bateria de frente com plataformas do governo Lula.
Ainda durante a campanha eleitoral, economistas ligados ao PT defendiam a simples troca da regra do teto de gastos pela projeção de resultado primário, como ocorria nos governos anteriores.
Outra ala, porém, pregava a adoção de metas de gasto, associadas a um resultado primário mais flexível do que no modelo atual e a uma trajetória de dívida como referência. Essa sugestão inclusive constou no relatório final do grupo técnico de Economia na transição pós-eleição.
Segundo interlocutores, a equipe de transição inclusive foi aconselhada por especialistas de fora a analisar a possibilidade de vincular os gatilhos de ajuste nas contas ao resultado primário. Eles seriam disparados caso o déficit chegasse a um patamar considerado imprudente.
Para economistas da área de finanças públicas, o uso do resultado primário como gatilho costuma ter algumas limitações. Um dos problemas, por exemplo, é que sempre há risco de o governo fazer uma superestimativa de receita na hora de formular a meta de resultado primário. A frustração só vem lá na frente. É por isso que boa parte dos economistas chamados ortodoxo preferem um limite de despesa na partida.
Técnicos experientes também ponderam que o governo corre o risco de ficar mais distante de uma sinalização crível de que buscará o patamar de dívida a ser apontado como referência, uma vez que não haverá nenhuma obrigação ligada diretamente a essa trajetória.
O uso do resultado primário para balizar o gasto não é uma novidade na literatura das regras fiscais.
A União Europeia já usou diferentes mecanismos baseados em resultado primário para acionar restrições quando ocorre déficit excessivo em algum país membro. Batizada de 'cláusula de escape geral', ela consta do Pacto de Estabilidade e Crescimento do bloco e os parâmetros foram sendo alterados ao longo dos anos.
Em 2013, o economista Nelson Barbosa, então fora do governo, apresentou uma proposta baseada em resultado primário durante um debate no Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). Em linhas gerais, Barbosa sugeriu a adoção de uma banda de flutuação para o resultado primário, prevendo restrições graduais para o crescimento do gasto caso o resultado fosse se distanciando da meta e caminhasse para o déficit.
Sugestão buscava dar previsibilidade para os agentes econômicos.
Em março de 2016, quando Barbosa era ministro da Fazenda no governo Dilma Rousseff, a sugestão foi reembalada para constar em um projeto de lei instituindo a banda de flutuação do resultado primário em caso de frustração das receitas. A proposta previa ainda limites para expansão do gasto.
O projeto chegou a ser enviado para o Congresso, dentro de um pacote de ajuste fiscal, no entanto, a proposta não decolou com a deterioração do ambiente político e econômico, que levou ao impeachment. Pouco mais de dois anos depois, veio a lei do teto de gastos no governo de Michel Temer (MDB).
entenda o fiscalês Confira alguns dos principais termos usados nas discussões sobre contas públicas no Brasil.
ARCABOUÇO OU REGIME FISCAL
Nome dado ao conjunto de princípios e regras formais que buscam a estabilidade das contas públicas. O teto de gastos é um exemplo de arcabouço fiscal, que buscou limitar as despesas primárias ao mesmo valor do ano anterior corrigido pela inflação.
BANCO CENTRAL
Instituição financeira governamental responsável por garantir a estabilidade da moeda do país e regular o sistema financeiro. Entre suas atribuições está emitir papel moeda, colocar em prática a política monetária -através do controle das taxas de juros- e fiscalizar instituições financeiras.
COPOM
O Copom (Comitê de Política Monetária) é um órgão do Banco Central que se reúne periodicamente para definir diretrizes da política monetária e a taxa Selic (juro básico da economia).
DÉFICIT
Em contabilidade, é quando as despesas superam as receitas, o oposto de saldo. No caso do déficit público, quando os gastos de um governo são maiores que a arrecadação.
DÉFICIT NOMINAL
Inclui os gastos com juros e a correção monetária (adequação do valor perante a inflação).
DÍVIDA PÚBLICA
Dívida contraída sempre que o governo gasta mais do que arrecada, ou seja, quando os impostos e demais receitas não conseguem cobrir os gastos. Com o objetivo de atender às necessidades dos serviços públicos, o governo recorre a financiadores, como pessoas físicas, empresas e bancos.
DÍVIDA BRUTA
Abrange o total dos débitos do governo federal e entes regionais (governos estaduais e municipais) a empresas financeiras e não financeiras, públicas e privadas, incluindo no exterior.
DÍVIDA LÍQUIDA
É a dívida bruta descontados os créditos a receber de todos os entes (governos federal, estaduais, municipais, BC e estatais) e as reservas (espécie de poupança, em dólares) do país.
LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS (LDO)
Lei que define as metas e prioridades da administração pública federal para o ano seguinte. Com duração de um ano, a LDO fixa limites para os orçamentos dos Poderes e orienta a elaboração da LOA (Lei Orçamentária Anual).
LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (LOA)
É a lei orçamentária propriamente dita, com estimativa de receita e fixação da despesa pública. Na prática, aponta como o governo vai arrecadar e como vai gastar os recursos públicos. Tem duração de um ano.
META DE INFLAÇÃO
É valor mínimo ou máximo que a inflação pode chegar num determinado período. No sistema adotado no Brasil, é fixada uma meta de inflação para o ano, com uma banda de tolerância que prevê um valor superior (teto) e um inferior (piso) em relação ao valor fixado (centro da meta).
META FISCAL
Define o resultado que o governo deve alcançar no ano considerando receitas menos despesas.
ORÇAMENTO PÚBLICO
Instrumento de iniciativa do Poder Executivo para estimar receitas e fixar despesas. Compreende três leis: o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO) e o orçamento anual (LOA). É elaborado em um exercício, aprovado pelo Legislativo, e vigora no exercício seguinte.
PIB O Produto Interno Bruto é a soma do valor de todos os bens e serviços produzidos em um país ou uma região, durante um determinado período.
PLANO PLURIANUAL (PPA) Lei que estabelece diretrizes, objetivos e metas para as despesas da administração pública para os quatro anos seguintes. Desempenha papel central de organização da ação do Estado.
REGRA DE OURO
Prevista na Constituição, exige que o endividamento não supere o montante das despesas com investimentos. O objetivo é evitar contração de dívida pública para pagar gastos correntes, como salários de servidores e aposentadorias.
RESULTADO PRIMÁRIO
Indicador de saúde financeira do Estado, consiste na diferença entre receitas com arrecadação de impostos e taxas, por exemplo, e gastos para manter a máquina pública e a prestação de serviços à sociedade, sem incluir despesas financeiras com pagamento de juros da dívida pública. Quando a receita supera a despesa, o resultado é chamado de superávit primário, quando a despesa é maior que a receita, ocorre déficit primário.
SELIC A Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia) é o sistema do Banco Central que registra negócios com títulos públicos federais e de depósitos interfinanceiros. A taxa de juros praticada neste sistema serve como juro básico da economia brasileira.
TETO DE GASTOS
Regime fiscal que fixa limites para as despesas primárias dos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do Ministério Público da União, do Conselho Nacional do Ministério Público e da Defensoria Pública da União.
Como é o rito de aprovação do Orçamento As leis orçamentárias são enviadas como projeto pela Presidência da República ao Congresso Nacional. O Legislativo discute, sugere alterações, vota e, finalmente, aprova o texto.
Cada uma das três legislações que compõem o Orçamento (PPA, LDO e LOA) são discutidas em períodos diferentes.
O PPA é encaminhado ao Poder Legislativo até o dia 31 de agosto do início do mandato. Já a LDO é enviada todos os anos ao Congresso, até o dia 15 de abril. O projeto da LOA é feito após a aprovação das diretrizes e precisa ser enviado até 31 de agosto.
Os prazos de envio das leis orçamentárias têm pressionado o governo Lula. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), precisa apresentar uma nova proposta de arcabouço fiscal até o fim de agosto de 2023. Isso porque a PEC (proposta de emenda à Constituição) da Gastança ampliou o espaço no teto de gastos por um ano, não por dois.
A perspectiva, porém, é que o anúncio aconteça em abril.
Caso o novo modelo não seja apresentado e aprovado, as leis orçamentárias para 2024 vão necessariamente seguir o teto de gastos.
Perguntas e respostas sobre agenda fiscal Por que o superávit é importante?
A diferença positiva entre receita e despesa é considerada um bom indicativo sobre a saúde econômica de um país. Com mais arrecadação que gasto, o governo garante recursos para pagar os juros da dívida pública.
Se o endividamento está em queda, os investidores exigem taxas menores para emprestar dinheiro.
Em cenário de déficit ocorre o oposto. Credores cobram mais caro para financiar a dívida do governo, o que pode gerar um efeito bola de neve do endividamento público.
Por que os investidores se importam tanto com a agenda fiscal?
Se um governo não apresenta um plano fiscal para conter a dívida pública, a tendência é que os credores cobrem mais caro para emprestar dinheiro.
Com juros mais caros, financiamentos ficam menos atrativos, o crédito para o setor privado encarece, o que pode se tornar um empecilho para o crescimento econômico.
Sem perspectiva de crescimento, investidores ficam menos motivados a colocar dinheiro em empresas e projetos no país.
O que a agenda fiscal tem a ver com a perspectiva de um país?
Como dito anteriormente, se um país é visto como irresponsável fiscalmente, os juros tendem a aumentar. A moeda também tende a se desvalorizar, o que aumenta o risco de inflação extra. Este cenário prejudica o crescimento econômico e, consequentemente, a oferta de trabalho.
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