BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A sanção do novo arcabouço fiscal após a votação final na Câmara dos Deputados vai criar um impasse jurídico e orçamentário para o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cumprir a aplicação mínima de recursos na Saúde em 2023.

O Executivo pode ter de remanejar cerca de R$ 6 bilhões, caso tenha de seguir de forma proporcional a regra que vincula o piso da Saúde às receitas federais. O valor é preliminar e pode mudar conforme a dinâmica da arrecadação nos próximos meses.

Além disso, o governo ainda avalia possíveis saídas jurídicas. Há a possibilidade de se fazer uma consulta ao TCU (Tribunal de Contas da União) para saber como tratar a questão.

O tema preocupa a equipe econômica, que já precisou fazer um bloqueio de R$ 3,2 bilhões nas despesas não obrigatórias, que incluem custeio e investimentos, para conseguir cumprir as regras neste ano. Eventual reforço nos recursos da Saúde exigiria novos bloqueios nas demais áreas.

Por outro lado, pedir autorização para cumprir um piso menor na Saúde, à revelia de uma regra constitucional que o próprio PT escolheu reativar, pode criar também um problema político para o governo, a ser explorado pela oposição.

Procurado, o Ministério do Planejamento e Orçamento não respondeu diretamente às perguntas enviadas pela reportagem e disse apenas que "esse assunto ainda está em discussão". O Ministério da Fazenda não se manifestou até a publicação deste texto.

O problema existe porque a PEC (proposta de emenda à Constituição) aprovada na transição de governo prevê a revogação automática do teto de gastos, regra fiscal atualmente em vigor, assim que o novo marco for sancionado pelo presidente da República e virar lei.

A extinção do atual limite de despesas alcança inclusive a regra vigente de correção dos mínimos em Saúde e Educação. Com isso, voltam a valer, de forma imediata, as vinculações de gastos dessas áreas à dinâmica das receitas.

Na transição, técnicos ligados ao então futuro governo do PT buscaram fazer a recomposição das ações nas duas áreas já de olho nesse risco. A Saúde, por exemplo, ficou com R$ 22,7 bilhões dos recursos extras autorizados pelo Congresso.

O problema é que as receitas foram subestimadas na elaboração do Orçamento. De lá para cá, o governo vem experimentando um aumento em sua arrecadação, e é essa base maior que vai nortear os mínimos de Saúde e Educação.

As regras constitucionais que voltarão a valer após a sanção do arcabouço destinam 15% da RCL (receita corrente líquida) para a Saúde e 18% da RLI (receita líquida de impostos) para a Educação.

No último relatório bimestral do Orçamento, divulgado em 22 de julho, o governo tomou como base uma RCL de R$ 1,258 trilhão.

Nesse cenário, a proporção mínima de aplicação na Saúde seria de R$ 188,7 bilhões. A dotação atualizada, porém, está em R$ 170,5 bilhões, segundo o relatório resumido de execução orçamentária do mês de junho.

O valor é maior do que o piso atual de R$ 147,9 bilhões (conforme a regra do teto de gastos), mas R$ 18,2 bilhões menor do que seria o mínimo vinculado às receitas --que voltará a vigorar com a sanção do novo arcabouço fiscal.

Técnicos ouvidos reservadamente pela reportagem não consideram razoável exigir do governo o cumprimento do piso integral, dado que o teto atual vai vigorar pelo menos até o fim de agosto. O cenário mais provável é que o Executivo precise assegurar o novo mínimo de maneira proporcional, a partir da sanção do novo arcabouço.

Em uma conta preliminar, a diferença atual representaria o equivalente a R$ 1,5 bilhão por mês. Se o arcabouço começar a valer no início de setembro, a conta seria multiplicada por quatro, alcançando uma cifra próxima a R$ 6 bilhões. O valor definitivo pode ser diferente porque está sujeito à arrecadação realizada em cada mês.

No caso da Educação, o problema é menor. A RLI de 2023 foi projetada em R$ 530,9 bilhões no relatório de julho, o que resultaria em uma aplicação mínima de R$ 95,6 bilhões no ano todo. A dotação reservada hoje no Orçamento já é maior do que isso: R$ 99,8 bilhões.

Dentro do governo, a avaliação é de que não se trata de um impasse meramente orçamentário, mas também jurídico. Dado que o Orçamento foi elaborado à luz da regra fiscal vigente, o teto de gastos, técnicos veem espaço para questionar a necessidade de virar a chave já em 2023 e cumprir os pisos pela regra atrelada à receita neste ano.

Há ainda uma ponderação sobre qual a RCL a ser considerada como referência para o cálculo do piso da Saúde. Uma ala defende manter as projeções em cima dos números previstos no projeto de Lei Orçamentária ou no Orçamento aprovado, em vez dos valores atualizados --o que dispensaria o governo de reforçar as dotações da área neste ano.

Técnicos experientes do TCU, porém, rejeitam a possibilidade de permitir um cálculo alternativo, sem considerar a RCL atualizada. A Constituição prevê aplicação mínima de 15% sobre "a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro", o que é compreendido como arrecadação efetivamente observada.

Além disso, esses técnicos ressaltam que dificilmente o governo conseguirá escapar da aplicação dos mínimos vinculados à arrecadação já em 2023.

A Emenda Constitucional 126 é clara ao revogar os dispositivos do teto de gastos "após a sanção da lei complementar" que institui a nova regra fiscal. Para adiar a aplicação para 2024, o texto legal deveria prever isso de forma expressa.

Além do impasse neste ano, a reativação dos pisos de Saúde e Educação vinculados à arrecadação preocupa a equipe econômica também nos anos seguintes.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, essas despesas tendem a pressionar o novo arcabouço fiscal, uma vez que as receitas vão crescer em um ritmo mais veloz do que o novo limite de gastos, consumindo o espaço disponível para as demais áreas.

Por isso, o Ministério da Fazenda discute apresentar, até o fim do ano, uma PEC para mexer nessas vinculações e harmonizar a tendência de expansão dessas despesas com a limitação do novo arcabouço fiscal. Em abril, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) antecipou o debate em entrevista à Folha de S.Paulo.


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