BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - "Antes das eleições primárias, o caminhão vinha quatro vezes por semana. Mas nas últimas duas semanas, está vindo duas ou três no máximo", diz o funcionário Ricardo, que preferiu não dizer o sobrenome, enquanto repõe refrigerantes nas prateleiras de um grande supermercado no bairro de Belgrano, em Buenos Aires.
Mesmo com seu esforço, porém, as gôndolas seguem com grandes vazios em alguns setores, como os de bebidas e "produtos secos" que incluem diferentes marcas de arroz, farinha e o tradicional mate.
"Eu trabalho aqui há quatro anos e nunca tinha visto isso acontecer, só na pandemia, quando aumentou muito a demanda", conta.
As vendas ainda não se estabilizaram integralmente na Argentina, mesmo mais de 15 dias após uma explosão do dólar causada pelo êxito do ultraliberal Javier Milei nas urnas e por uma mudança abrupta no peso oficial aplicada pelo ministro da Economia, Sergio Massa, também candidato à Presidência.
As primárias não elegem ninguém, mas medem a temperatura para o primeiro turno, em outubro.
Se a moeda estrangeira valia 605 pesos no dia 13, data do pleito, passou a valer 780 três dias depois, na cotação paralela "blue" que lastreia os preços no país. Logo depois voltou a cair a 720, e desde então vem oscilando, marcando 740 nesta quarta (30).
Sem referência para o aumento dos preços, parte dos fornecedores paralisou as vendas por alguns dias naquela semana.
"O preço de referência básico na Argentina é o câmbio. É a âncora que os empresários têm na cabeça, consciente ou inconscientemente. Então se há incertezas sobre um tipo de câmbio, isso arrasta todo o resto", diz o economista Gustavo Burachik, professor da Universidad Nacional del Sur (UNS).
Agora, apesar de o comércio e os serviços continuarem funcionando normalmente, alguns produtos específicos seguem faltando.
"Tudo que é importado está sem preço desde as eleições", diz Sergio Ramírez, 40, vendedor de uma loja de queijos e embutidos, explicando por que não pode vender o molho de tomate em cima do balcão.
"O fornecedor não te passa a lista [de valores], e para piorar meu chefe está de férias, então não consegue pressioná-los", diz.
Ele explica que, mesmo que o produto esteja fisicamente ali, é preciso pensar no valor da reposição. "Se você compra isso aqui por 10, vende por 12 e amanhã está 20, você perde dinheiro", diz.
O dono de quiosques Luciano Muñoz, 46, também está sem Coca-Cola light nem versões pequenas da garrafa, mas diz que isso é comum e que deve voltar a recebê-las na semana que vem.
"Na semana das eleições, tivemos de remarcar os preços três dias seguidos, foi um caos", disse, afirmando que há um ano passou a usar um esquema de listas, em vez de etiquetas em cada produto.
Segundo a economista Carla Arévalo, do Instituto de Estudos de Trabalho e Desenvolvimento Econômico (Ielde), há um importante componente especulativo na ausência das mercadorias.
"Basicamente é um fenômeno de especulação ou uma ação preventiva de parte dos empresários. Para não perder dinheiro, convém mais retirar o produto", afirma.
A isso se soma outro fator: o programa de congelamento de preços do governo peronista de Alberto Fernández, chamado de "Preços Justos".
Com a forte subida do dólar, a equipe de Massa renovou um grande acordo com centenas de empresas para segurar o aumento em diversos setores e tentar evitar uma inflação de dois dígitos para agosto --em julho, o índice foi de 6,3%.
No ramo dos alimentos, são quase 400 empresas e mais de 1.500 produtos que só poderão subir até 5% mensalmente até dezembro, por exemplo.
Esse tipo de política já é implementado há muitos anos na Argentina, com diferentes nomes, mas ganhou mais força a partir de dezembro do ano passado, quando a inflação interanual se aproximou de 100%.
Muitas empresas, porém, criticam e resistem a esses acordos.
"Nas últimas duas semanas, os custos de produção ponderados aumentaram entre 15% e 32%, o que torna absolutamente inviável o aumento proposto de 5%", escreveu a AmCham, entidade que reúne 701 empresas americanas no país, incluindo Coca-Cola e Pepsi, em carta ao governo na semana passada.
"O acordo não é possível nem sustentável sem abrir espaço para a compreensão e o diálogo", reclamou também a Copal (Coordenadora das Indústrias de Produtos Alimentícios).
Apesar disso, a maioria decidiu continuar no acordo de preços, apostando que o governo que entrará em dezembro retirará as restrições.
Os produtos incluídos no programa podem ser vistos nos mercados ao lado dos selos "preços justos" nas prateleiras, mas no mercado onde trabalha Ricardo, por exemplo, muitas delas estão vazias.
Por isso acusam-se (sem provas) as empresas de retirar esses produtos de circulação e colocar outros muito semelhantes, que não estão tabelados.
"As empresas que entram no acordo com o governo não colocam os produtos para vender, tiram das gôndolas, e o consumidor precisa comprar das mais caras. Não são só os importados, são todos. Faz anos que não compro um queijo para ralar, só quando meu filho que mora fora vem", reclama a dona de casa Celeste, 60, que não quis dar o sobrenome.
O economista Gustavo Burachik, porém, diz acredita que a fiscalização do programa é tão fraca que não seja esse o principal motivo da falta de produtos, e sim a estratégia de guardá-los diante da desvalorização do peso.
"Muitos produtos são uma garantia aos empresários, servem para manter o poder aquisitivo. Mas com certeza isso contribui com gerar pânico", diz.
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