SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Nas últimas décadas, serviços de saneamento em centenas de cidades voltaram às mãos da administração pública após serem concedidos à iniciativa privada. Casos de reestatização já ocorreram em Berlim, Paris e Buenos Aires, e agora viraram munição para quem é contra privatizar a Sabesp.

Opositores do projeto -que foi enviado à Assembleia Legislativa no último dia 17- usam os episódios para dizer que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) está colocando São Paulo na contramão do mundo. O argumento, porém, divide especialistas.

Enquanto alguns analistas afirmam que as reestatizações ilustram o fracasso do processo de privatização, outros avaliam que os episódios estão longe de indicar uma tendência. Na verdade, dizem, parte relevante dos casos sugere que a missão foi cumprida com sucesso, já que o contrato foi executado do início ao fim.

Os serviços de água lideram a lista de reestatizações nos últimos anos, de acordo com a base de dados internacional Public Services. Foram 393 casos de 1992 para cá. Em seguida aparecem os setores de energia (385), serviços de saúde (276) e comunicação (199).

Considerando empresas como a Sabesp -que executam a distribuição de água potável e tratamento de esgoto- foram pelo menos 227 casos de devolução à administração pública desde 1998.

Os motivos indicados para a reestatização são diversos: fim de contrato, quebra de cláusulas contratuais, desistência ou falência das empresas privadas, entre outros.

A Public Services, responsável pelo levantamento, é uma iniciativa criada a partir de parceria do Transnational Institute (TNI), sediado em Amsterdam, com a Universidade de Glasgow (Escócia).

De acordo com o grupo, os dados coletados são resultado de esforços de diversas organizações, investigadores e sindicatos. Todas as contribuições são revistas e verificadas de forma independente pela equipe de investigadores.

A reportagem questionou a iniciativa sobre quantas privatizações ocorreram no setor neste mesmo período. Por email, Franziska Paul, pesquisadora associada da Universidade de Glasgow, disse que o projeto foca apenas os casos de reestatização. No entanto, destacou que elas "acontecem paralelamente a uma tendência contínua de privatização".

O levantamento inclui dois casos do Brasil. Um deles é o de Tocantins, que em 1998 privatizou a Saneatins. Em 2010, o governo estadual criou uma autarquia para a prestação de serviços de saneamento básico, que assumiu a operação de 78 municípios, enquanto a Saneatins manteve 47.

Outro caso brasileiro citado é o de Itu (SP), que teve os serviços privatizados em 2007 e remunicipalizados dez anos depois.

Dos 227 casos de reestatização relatados pela instituição, 93 ocorreram por não-renovação do contrato com o prestador privado. Pelo menos 51 episódios foram motivados por custo-benefício ou problemas com a qualidade do serviço.

Rubens Naves, advogado e autor do livro "Saneamento para Todos", diz que houve uma aceleração da privatização do saneamento pelo mundo a partir do modelo que Margaret Thatcher implementou na Inglaterra nos anos 1980, sob o slogan de que isso resolveria boa parte dos problemas na área da infraestrutura.

"Ao longo do tempo, ficou demonstrado que isso foi uma falácia, um pensamento mágico vendido como uma solução", diz.

Para o especialista, o processo de privatização tem limites. Um deles é que a iniciativa privada se interessa pelos locais com maior rentabilidade, que são responsáveis por financiar os municípios deficitários ou menos atrativos -o chamado investimento cruzado.

"Você não pode simplesmente fazer a privatização do filé mignon, das regiões mais lucrativas", afirma.

É o que também pensa Haneron Victor, coordenador de assuntos jurídicos do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento).

Segundo ele, os episódios pelo mundo têm vários elementos em comum, como aumento de tarifas, diminuição do controle social quando comparado com o serviço público, e o não cumprimento de metas -de expansão da infraestrutura, por exemplo. "Esses motivos que mundialmente impulsionaram o fenômeno da reestatização", afirma.

Gesner Oliveira, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e ex-presidente da Sabesp, faz outra avaliação. Para ele, não há uma tendência global, mas um conjunto de episódios heterogêneos.

Em estudo de 2018, o professor analisou 235 casos de remunicipalização pelo mundo e constatou que, em 105, o contrato simplesmente expirou.

"Isso é relativamente normal. [O poder público] tem um desafio de investimento e chama o setor privado para fazer", diz. "Quando você privatiza, não necessariamente faz para o resto da vida. Faz por um longo período com o objetivo de montar a rede de água e esgoto. Depois, pode optar por reassumir o serviço", acrescenta.

Ele diz que também há casos de reestatização em que o setor privado optou por devolver o ativo após problemas no cumprimento do contrato pelo poder público.

Um dos casos emblemáticos, segundo ele, é o de Buenos Aires. "Foi feito um congelamento de preço completamente insustentável, o que inviabilizou a execução", afirma.

No entanto, há quem veja o caso argentino de outra forma. O estudo que o Governo de São Paulo contratou sobre a viabilidade da privatização da Sabesp avaliou os fracassos de experiências internacionais. O de Buenos Aires foi um deles.

O documento do IFC (International Finance Corporation) relata que a privatização do saneamento na Argentina teve início em 1992, sob a administração de Carlos Menem, como parte de um dos mais extensos programas de privatização do mundo.

Mas, além do congelamento tarifário adotado pelo governo após a crise de 2001, o estudo aponta para outros problemas, como: falhas regulatórias, aumento da tarifa atrelado ao dólar, e descumprimento das metas estipuladas em contrato -como as de expansão do acesso, investimentos e qualidade do serviço.

O documento do IFC ainda fala sobre as experiências de reestatização da França, Inglaterra e Alemanha.

Em entrevista à Folha de S.Paulo em agosto deste ano, Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do estado de São Paulo, disse que os problemas das privatizações em outros países podem ser evitados no processo da Sabesp.

Em Paris, por exemplo, ela atribui o fracasso da reestatização a um fatiamento do ativo por localidade geográfica e por serviço, o que reduziu a escala operacional.

Na Inglaterra, disse que houve pouca preocupação com o estabelecimento de metas e indicadores para as companhias privadas. Já em Berlim, Resende mencionou a remuneração fixa que o governo definiu para o parceiro privado, o que não seria um "incentivo adequado".

"Nós pegamos todos os exemplos, sejam bons, sejam ruins, para estudar o que precisamos trazer de bom e criar as vacinas para o que já aconteceu, como a questão da tarifa. Nós analisamos e chegamos à conclusão de que de fato conseguiríamos aumentar e antecipar investimentos", disse durante apresentação do projeto de lei da privatização da Sabesp.

A avaliação da secretária é parecida com a de Gesner Oliveira. Para ele, eventuais obstáculos podem ser superados com regulação e modelagem.

"Eu diria que esses casos [de reestatização] pelo mundo não indicam tendência nenhuma. Se há algumas lições a serem aprendidas, são lições de que o contrato precisa ser respeitado, que o populismo tarifário mata o serviço", afirma.

Haneron Victor, do Ondas, pondera que os casos de reestatização não significam que o saneamento é um setor que só funciona na mão da administração estatal. "Nós temos prestadores públicos com excelência, assim como nós temos também prestadores privados com excelência. Isso não é uma sentença de morte para um ou para outro."

No entanto, ele diz que, no Brasil, a regra tem sido precarização de serviços, aumento de tarifa ou descumprimento de metas -citando os exemplos de Manaus, Campo Grande (MS) e Rio de Janeiro. Victor ainda critica os casos de reestatização, como o de Tocantins.

"A empresa privada renunciou todas as concessões que eram deficitárias e ficou com o filé mignon. Deixou a carne de pescoço para o estado."

Sobre a promessa do governo de São Paulo de criar mecanismos para evitar problemas vistos de outros países, Naves pondera que isso contrasta com o ritmo de urgência que Tarcísio vem impondo ao trâmite do projeto de lei.

"Esses elementos precisam de uma discussão amadurecida, com segmentos técnicos. Você não pode atropelar uma discussão sob a alegação de que nós temos elementos para resolver. Acho que está havendo um açodamento, é imprópria essa forma de discutir uma questão tão séria."


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