BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A maratona de votações no Congresso Nacional no fim de 2023 deu ao ministro Fernando Haddad (Fazenda) uma sequência de vitórias na agenda econômica, mas o avanço das medidas ainda é insuficiente para dissipar as incertezas sobre o quanto será efetivamente arrecadado com o plano fiscal e o destino da meta para as contas públicas neste ano.
Por um lado, especialistas atribuem ao ministro alguns feitos relevantes, como a aprovação da taxação sobre fundos exclusivos de investimento (detidos pelos chamados "super-ricos") e sobre recursos offshore, além da reforma tributária --iniciativas engavetadas em gestões anteriores por falta de apoio político.
Por outro, Haddad ainda tem dificuldades em convencer o mercado financeiro de que seu plano vai arrecadar o que promete para zerar o déficit em 2024.
Os agentes esperam um rombo de 0,8% do PIB (Produto Interno Bruto), o que embute um estouro da meta já no primeiro ano de vigência do novo arcabouço fiscal.
Membros do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por sua vez, temem que o alvo de Haddad imponha um sacrifício muito grande via contingenciamento dos investimentos.
Economistas falam em bloqueio de até R$ 53 bilhões, enquanto o ministro da Fazenda tenta limitar a trava a R$ 23 bilhões por meio de uma interpretação jurídica que está longe de ser consenso entre técnicos.
Além disso, eventual descumprimento da meta acionaria gatilhos de contenção de despesa em 2025 e 2026 (ano eleitoral), algo tido como indesejável por integrantes da ala política do governo.
Diante dessa encruzilhada fiscal, a pressão por uma mudança na meta segue latente dentro do Executivo e deve voltar à tona já nos primeiros meses deste ano. O próprio mercado já dá a alteração como certa.
A questão mais sensível agora é qual será a nova meta, em que medida isso afetará o objetivo traçado para 2025 (inicialmente estipulado em superávit de 0,5% do PIB) e qual é o risco de o governo recorrer a subterfúgios para disfarçar a piora da trajetória fiscal.
O economista Italo Franca, do Santander Brasil, avalia que o ideal é flexibilizar a meta de 2024 para permitir um déficit de 0,5% do PIB --assim, com a banda de tolerância, o governo poderia ficar no vermelho em até 0,75% do PIB sem deflagrar maiores restrições.
"Mais do que isso, cria a percepção de que tem mais espaço para gastar ou não apresentar novas medidas. O ponto é garantir que a consolidação seja mantida", diz.
A economista sênior da LCA Consultores Thaís Zara também avalia que a alteração da meta precisa ser "muito bem comunicada" e apontar necessariamente para uma melhora das contas públicas, ainda que gradual.
"Se, diante da ameaça de que não vai cumprir a meta, muda a meta, isso compromete a credibilidade do arcabouço", diz.
Jeferson Bittencourt, ex-secretário do Tesouro Nacional e economista-chefe da ASA Investments, afirma que sua preocupação não está tanto no desvio dos números, mas na "estabilidade da regra do jogo".
"Novas interpretações da regra são mais preocupantes porque elas são mais perenes do que desvios de projeção do resultado", afirma.
Em 22 de dezembro, durante café com jornalistas, Haddad afirmou que o governo vai continuar perseguindo o déficit zero. "Vamos buscar essa meta, porque ela é importante para o país", disse.
Quando a pressão por uma mudança na meta fiscal surgiu pela primeira vez, ainda em agosto, o discurso da equipe econômica era o de que uma flexibilização prematura do alvo poderia desencorajar o Congresso a aprovar as medidas para elevar arrecadação. No entanto, especialistas veem pouca relação entre esse argumento e a realidade.
"Já aconteceu em outros períodos, usar a meta para indicar o esforço pretendido. Tenta-se utilizar como forma de pressionar o Congresso a aprovar as medidas, mas o que vemos é que o Congresso se prende muito mais ao mérito [das ações] e menos ao cumprimento ou não da meta", afirma o economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
Apesar de não ver relação mecânica entre as duas coisas, Pires avalia que a equipe econômica teve um primeiro ano produtivo no Legislativo e segue, em geral, "boas práticas" de ajuste fiscal.
"As medidas vão mais na linha de rever distorções do que ter um impacto contracionista [via aumento de alíquotas]. A exceção é a tributação das subvenções [do ICMS], que pode ter impacto contracionista no caixa das empresas e reduzir o investimento", diz.
Por outro lado, boa parte das medidas não deve gerar o volume esperado de receitas, o que compromete a trajetória fiscal sinalizada pela equipe de Haddad.
"Existe dificuldade grande de atingir a meta de 2024. Estamos em um período de queda da arrecadação, mesmo com PIB crescendo 3%. Fica muito difícil remar contra essa maré", diz Pires. "A impressão que tenho é que [a meta] ficou descalibrada e impõe um contingenciamento muito alto em termos históricos."
Haddad enviou a proposta de Orçamento de 2024 contando com R$ 168,5 bilhões em receitas extras, distribuídos em dez medidas. Todas foram aprovadas pelo Legislativo, mas parte foi desidratada durante a tramitação.
O caso mais emblemático é o do JCP (Juro sobre Capital Próprio). A proposta original era acabar com a possibilidade de deduzir esses recursos, usados para remunerar acionistas de empresas, da base de cálculo de impostos federais.
A versão aprovada faz apenas ajustes para coibir o uso abusivo do instrumento. Para compensar a frustração de arrecadação, projetada em R$ 10,5 bilhões, o ministro já anunciou novas medidas.
Insegurança ainda maior gira em torno das medidas não tributárias. O governo conta com a disposição de empresas em pagar quase R$ 98 bilhões em acordos com Receita Federal, PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) ou para encerrar disputas no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).
"Pela própria nota técnica do Carf, [para alcançar a arrecadação] precisa julgar 50% do estoque de todos os processos, aumentar a carga horária dos conselheiros em 50% e ter cerca de 90% dos que perderem no voto de qualidade [jargão para voto de desempate] aderindo à negociação do governo. Só que o Carf não está julgando nada. A adesão de 90% presume que vão pagar em 12 parcelas, ou seja, tinha de estar tudo julgado agora para as 12 parcelas entrarem em 2024", observa Bittencourt.
"Pelo próprio rito, é difícil se confirmar aquela que é a maior arrecadação individual do pacote", afirma o ex-secretário do Tesouro Nacional.
Outro problema é que boa parte das receitas projetadas para 2024 tem fôlego único. São negociações extraordinárias de dívidas e contratos ou cobranças de tributos sobre um estoque de ativos que não se repetirão a partir de 2025.
"Digamos que o mercado esteja completamente errado, o governo entrega déficit zero. A não recorrência da receita que fecha a conta pode ser na casa dos R$ 130 bilhões. E como precisa fazer superávit de 0,5% em 2025, em torno de R$ 60 bi, seriam outros R$ 200 bilhões [de ajuste em 2025]. Tem pouco espaço para a sociedade aceitar esse aumento contínuo de carga tributária", diz o ex-secretário.
O foco excessivo em medidas de arrecadação também pode gerar efeitos contraproducentes.
Pires, do FGV Ibre, lembra que gastos relevantes no Orçamento são vinculados à dinâmica das receitas, o que limita a produtividade do ajuste fiscal, pois os ganhos de um lado geram maiores compromissos de outro.
"A equipe econômica precisa encontrar espaço político para discutir isso", diz o economista, citando os pisos de Saúde e Educação e os recursos carimbados para o FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal), além de emendas parlamentares --que em 2024 alcançam o valor recorde de R$ 53 bilhões.
No café com jornalistas, Haddad disse que as investidas do Congresso para vincular e carimbar despesas, inclusive para emendas parlamentares, criam uma realidade "desafiadora" na gestão do Orçamento, mas admitiu que o tema é politicamente sensível e condicionou o debate a uma decisão política do Palácio do Planalto.
A agenda de revisão de gastos tampouco decolou. No início de 2023, a Fazenda prometeu uma economia de R$ 25 bilhões com revisão de contratos e programas. Até agora, o resultado mais evidente foi uma economia de R$ 9,4 bilhões com a revisão cadastral do Bolsa Família --valor remanejado para outras áreas gastarem.
Os especialistas apontam ainda a fragmentação das decisões fiscais como um desafio relevante.
O mesmo governo que busca reequilibrar as contas anuncia um programa de bolsas para alunos do ensino médio (com um primeiro aporte fora do limite de gastos), acelera as concessões de benefícios previdenciários e promete há meses um incentivo tributário para empresas adquirirem novas máquinas e equipamentos --que não sai do papel por falta de espaço para acomodar a renúncia envolvida.
"Gastos importantes estão sendo decididos em instâncias muito diferentes", alerta Pires. Para ele, isso dificulta a boa gestão fiscal.
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