Ailton Alves Ailton Alves 21/12/2009

Futebol, bombas e medo

montagem de guerra e futebolA segunda Copa que ninguém viu, a de 1946, começou a ganhar forma em Buenos Aires. O incansável Jules Rimet permaneceu durante todo o período da primeira Copa que não aconteceu, a de 1942, em trabalho diplomático. Visitou, ou conversou por telefone, praticamente todos os dias, com os representantes das doze seleções que lá estiveram. Ele só sossegava quando obtinha a garantia de participação. Quando alguém dizia que era impossível garantir presença, em razão dos futuros desdobramentos da Guerra Mundial, ele rebatia: "Meu caro, não sabemos quando o conflito terminará, mas com certeza a nossa copa será eterna". Diante de tamanha convicção, não restava outra alternativa ao interlocutor senão concordar.

Assim que a Argentina bateu o Brasil na decisão de 1942, Jules Rimet seguiu para o norte do continente, passando pela Bolívia e México. Esses dois países eram as ausências mais sentidas na Copa da Argentina, não pelo futebol, mas pela proximidade geográfica. Na Federação Boliviana, Rimet prometeu ajuda financeira para que a seleção local fosse à Europa em 1946, e no México mexeu com os brios nacionalistas. Em ambos os casos foi bem recebido.

Em seguida, foi ao Rio de Janeiro, onde prometeu uma das cabeças-de-chave para o Brasil, e depois voou para Lisboa, um território neutro, onde fixou residência e começou, com quatro anos de antecedência, a preparar a Copa de 1946.

Visionário, ele percebeu, pelos fatos históricos e políticos, que o Norte da África, geograficamente perto de Portugal, poderia ter representantes na Copa quando, em novembro de 1942, as Forças Aliadas desembarcaram na região. Em pouco tempo teríamos ali vários países "livres": Marrocos, Argélia, Egito e Tunísia.

Como parecia que, à exceção de Stalingrado e o Oceano Pacífico, a guerra toda se desenrolava na região, Jules Rimet esperou até março de 1943 (quando o marechal-de-campo alemão Ervin Rommel, "a Raposa do Deserto", retornou à Europa, derrotado, doente e exausto) para viajar e fazer o trabalho de convencimento da força do futebol.

E ele estava no local, quando no dia 12 de maio terminou a guerra na África do Norte. O Egito já tinha participado da Copa de 1934 e foi o primeiro a se comprometer a voltar. Quanto aos outros, ainda era muito cedo.

Em 14 de junho, a Romênia, dizendo-se pronta para assinar acordo separado, rendeu-se aos aliados. Era uma forte candidata a participar da Copa. Os romenos estiveram em 1930, 34 e 38 e eram governados pelo rei Miguel, um entusiasta do esporte, como seu antecessor, Carol.

Jules Rimet, então, empreendeu uma perigosa travessia até Bucareste. Mas não foi bem recebido, principalmente porque, justo naquele período, o país estava sendo bombardeado pelos Estados Unidos. Ele percebeu, com a invasão soviética logo depois, seguida de novos bombardeios e a iminente queda do monarca, que os romenos não estariam na Copa de 1946. Foi rotulado, pela imprensa local, como "um louco, que pensava em futebol quando o mundo inteiro sofria com bombas, medo e fome".

Pela primeira vez, o pequeno e perspicaz grande homem mostrou sinais de desânimo. As reviravoltas eram muitas, os conchavos políticos, enormes, e as grandes potências já dividiam o mundo do pós-guerra. Num momento de fraqueza, ele pensou em desistir de tudo, mas, mais ou menos nessa época, chegou a Lisboa, para visitá-lo, seu grande amigo Henri Delaunay, que o ajudara, décadas antes, a criar a Copa do Mundo.

O amigo lhe deu apenas um conselho: "Esqueça o lado político,  pense apenas no futebol". E duas notícias: Que na Itália havia um time, o Torino, jogando de forma espetacular; e que seria criada uma entidade pela paz chamada Organização das Nações Unidas (ONU).

O conselho e as informações animaram Rimet. Em pouco tempo ele coletou todos os dados sobre o futebol em cada país, neutro ou em guerra. Ficou sabendo, por exemplo, que o campeonato italiano prosseguia normalmente, apesar dos bombardeios sobre Roma, mas que a Azurra só havia jogado duas vezes em quatro anos (de 1941 a 1944).

O número de vezes que cada seleção nacional entrou em campo era fundamental para Rimet e ele tinha todos os dados na cabeça. Em 1944, por exemplo, o Uruguai foi a seleção que mais jogou (seis partidas), seguida da Argentina (quatro) e Brasil (dois). Na Europa, apenas Bélgica, Croácia e França tinham tido contato com a bola.


Ailton Alves é jornalista e cronista esportivo
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