SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - "Para mim, ir para uma Copa é como ir à Disney para uma criança".
A frase de Diego Maradona marcou a relação de um país com a Copa do Mundo. Enquanto Maradona esteve em campo, a Argentina foi a quatro Mundiais: perdeu com seu camisa 10 expulso em 1982, ganhou em 1986, foi finalista em 1990, e perdeu sem o craque, suspenso por doping, em 1994. Em comum, a sensação de que, em todas elas, a Copa era o momento de viver intensamente a maior paixão dos argentinos: o futebol.
No Qatar, a seleção argentina tenta recuperar um sentimento que, nas últimas edições do torneio, foi misturado à pressão enorme por um título. A Copa de 2022 será a primeira do futebol sem Maradona e a última de Messi. Será, também, a primeira em quase três décadas em que a Albiceleste disputará com a leveza de ter conquistado um troféu importante nos anos anteriores ? a Copa América de 2021, vencida contra o Brasil, no Maracanã.
"O que me parece mais incrível é a tranquilidade com que o time chega ao Mundial. Contrasta com o que vimos em edições anteriores. Hoje, a seleção e o próprio Messi se relacionam com todo o entorno de uma forma mais sossegada. Ganhar a Copa América não apenas acabou com os 28 anos de jejum, mas acertou as contas com o passado, tirou um grande peso das costas, e deu início a uma nova era", afirma o jornalista Ramiro Martín, autor de "Messi: un génio en la escuela del fútbol", biografia publicada em 2013.
Desde a vitória no Maracanã até o último amistoso pré-Copa, foram 17 jogos, com 14 vitórias e três empates. Somados à campanha anterior àquela final, os números são ainda mais superlativos. A Argentina -ou La Scaloneta, como é conhecida- chega ao Qatar como a seleção com maior tempo de invencibilidade: são 36 jogos sem perder, incluindo um 3 a 0 sobre a Itália, campeã da Eurocopa. A última derrota foi para o Brasil, na semifinal da Copa América de 2019.
"A Argentina tem algo que não teve em praticamente nenhum momento da Era Messi: pela primeira vez é uma seleção com confiança. A partir da conquista da Copa América, tudo encontrou o seu caminho, o seu lugar. Pensava-se que a chance de ganhar uma Copa do Mundo tinha passado em 2014. Mas essa esperança voltou a florescer, com um grupo muito unido e que conseguiu tirar o peso de suas costas", acrescenta Martin Ainstein, jornalista e apresentador da ESPN.
COMO JOGA A ARGENTINA?
"O que eu mais gosto do futebol é a bola. Todo o resto é cansativo", declarou Maradona, em 1981.
A declaração de amor à bola de Maradona poderia ser assinada por Messi. Em sua última Copa do Mundo, o camisa 10 do PSG já não é o jogador das arrancadas e dribles em alta velocidade. Mas, com a bola, continua preciso e perigoso. Por isso, a principal tarefa da equipe é fazer a bola chegar até ele.
Durante o ciclo de preparação, Lionel Scaloni variou dois esquemas táticos principais: 4-4-2 e 4-3-3. A base em ambos é uma defesa de quatro jogadores, com Nicolás Otamendi e Cristian Romero (se saudável) como dupla de zaga. Nas laterais, os favoritos são Nahuel Molina pela direita e Marcos Acuña, na esquerda; Nicolás Tagliafico, titular em todos os jogos na Copa de 2018, briga para recuperar a posição. O goleiro, Emiliano Martínez, é o mais confiável da seleção na última década.
No meio-campo, dois nomes são certos, independentemente do esquema tático: Leandro Paredes, que trocou o PSG pela Juventus nesta temporada, e Rodrigo de Paul, do Atlético de Madrid. Ambos têm presença física para dominar o setor, mas também qualidade técnica para manter a posse de bola e acionar Messi, o alvo de todas as jogadas.
Giovanni Lo Celso seria o terceiro nome do meio-campo titular, mas está fora da Copa por lesão. Sem ele, as opções mostram dois caminhos: fechar o setor, com a revelação Enzo Fernández (Benfica), dando mais espaços para De Paul e formando um 4-3-3, com Ángel Di María, Messi e Lautaro Martínez no ataque; ou usar Di María como meia aberto pela direita e Alexis Mac Allister (Brighton) na esquerda, com Messi e Lautaro à frente.
Nos dos sistemas, a ideia é ter a posse de bola no meio-campo, aproveitar a qualidade dos volantes e dos meias abertos ?especialmente Di María? para tentar acionar Messi, que atua com total liberdade pelas zonas ofensivas. Os laterais também ajudam no ataque, principalmente Acuña, pela esquerda; com a bola, ele se aproxima dos meio-campistas e ajuda na aproximação de mais jogadores na parte central, o ponto mais forte da Argentina.
OS NOVOS COADJUVANTES
A seleção argentina passou as últimas Copas do Mundo procurando os companheiros ideais para dar a Lionel Messi um time campeão. Desta vez, a sensação é que os coadjuvantes chegam ao Mundial mais preparados para fazer o astro do time brilhar. A começar pelo treinador.
Lionel Scaloni era um desconhecido até assumir o cargo, em 2018. César Luis Menotti, técnico vencedor da Copa de 1978, hoje diretor de seleções, revelou bastidores da escolha à reportagem. "Quando Claudio Tapia (presidente da AFA) me falou de Lionel Scaloni, eu nem o conhecia. No primeiro almoço, ele me disse 'temos que recuperar a relação das pessoas com a seleção'. Ali eu vi que estávamos no caminho certo".
A lista de coadjuvantes tem mais personagens, como o goleiro Emiliano "Dibu" Martínez. Depois de passar quase uma década sem chances no Arsenal, ele se tornou titular do Aston Villa e virou sinônimo de segurança na posição. Outro da linha defensiva é Christian "Cuti" Romero, que estourou na Atalanta e manteve o bom nível na Premier League.
O meio-campo também ganhou mais consistência, com o crescimento de Rodrigo de Paul e a aparição, quase às portas do Mundial, de Alexis Mac Allister, que entrou no radar após as boas atuações pelo Brighton no futebol inglês. "É uma seleção que não tem seus melhores jogadores no auge, mas que tem um senso de coletividade muito forte", resume Martin Ainstein, da ESPN.
ELENCO INEXPERIENTE
"Tenho dois sonhos. O primeiro é jogar uma Copa do Mundo. E o segundo é ser campeão do campeonato infantil e dos que vierem depois".
A primeira entrevista de Maradona, aos 9 anos, mostrava um garoto sonhador, que já pensava no maior palco do futebol. A seleção argentina no Qatar está repleta de jovens que estreiam em uma Copa do Mundo. A renovação dos últimos quatro anos causou como efeito colateral uma equipe pouco experiente.
Dos 26 convocados, 19 farão sua estreia em uma Copa. Dentre as seleções que estiveram em 2018, apenas Espanha e Japão renovaram mais o elenco (20 estreantes). A mudança no elenco também diminuiu a média de idade do time, que passou de 30 anos para 27 anos.
Aos 44 anos, Scaloni também entra na estatística: ele é o mais jovem treinador de todo Mundial e um dos menos experientes. O trabalho à frente da seleção é o primeiro dele como comandante de uma comissão técnica. Antes, ele havia trabalhado como auxiliar de Jorge Sampaoli, no Sevilla e na própria seleção.
"Quem ganhou as últimas Copas foi quem teve um time sólido, que defendia bem. E para defender bem, a experiência ajuda muito. Nesse sentido, pode ser uma desvantagem. Por outro lado, ter esses estreantes também é ter jogadores que já venceram com a seleção e não carregam o peso de tantas finais perdidas", pondera o jornalista Sebastian Fest, que desde 1998 acompanha a seleção argentina em todos os grandes torneios.
O presidente da AFA, Claudio Tapia, tratou de ver uma virtude onde muitos veem um problema. "Trabalhamos na renovação e apostamos no sentido de pertencimento. Se isso não é um projeto, o que é?", provocou no Twitter, no dia da convocação.
A CONVOCAÇÃO
Lionel Scaloni convocou 26 jogadores para a Copa do Mundo. Na quinta-feira (17), ele anunciou os cortes de Nicolás González y Joaquín Correa, que foram substituídos por Ángel Correa e Thiago Almada.
- Goleiros: Emiliano Martínez (Aston Villa), Franco Armani (River Plate) e Gerónimo Rulli (Villarreal)
- Defensores: Gonzalo Montiel (Sevilla), Nahuel Molina (Atlético de Madri), Germán Pezzella (Betis), Cristian Romero (Tottenham), Nicolás Otamendi (Benfica), Lisandro Martínez (Manchester United), Juan Foyth (Villarreal), Nicolás Tagliafico (Lyon) e Marcos Acuña (Sevilla)
- Meio-campistas: Leandro Paredes (Juventus), Guido Rodríguez (Betis), Enzo Fernández (Benfica), Rodrigo De Paul (Atlético de Madrid), Exequiel Palacios (Bayer Leverkusen), Alejandro Gómez (Sevilla) e Alexis Mac Allister (Brighton)
- Atacantes: Paulo Dybala (Roma), Lionel Messi (PSG), Ángel Di María (Juventus), Ángel Correa (Atlético de Madrid), Thiago Almada (Atlanta United), Lautaro Martínez (Inter de Milão) e Julián Álvarez (Manchester City)
O CRAQUE: LIONEL MESSI
"Eu joguei e vi grandes jogadores na minha vida, mas como Messi, nunca. Ele está além de todos."
Em 2010, a frase de Diego Maradona era a reverência de um técnico a seu principal jogador. Doze anos depois, ela ecoa como uma homenagem do eterno camisa 10 da Albiceleste a seu sucessor. Nas insistentes comparações entre Maradona e Messi, um objeto sempre é colocado na balança: a taça da Copa do Mundo.
O título que falta ao craque argentino também é o ás na manga em outras discussões que envolvem jogadores de outras épocas. César Luis Menotti, um campeão do mundo, não concorda. Em seu Olimpo do futebol, o ex-treinador não veta a entrada de quem ficou sem uma Copa do Mundo.
"Há quatro jogadores na lista dos grandes. Começo por Di Stéfano. Depois vieram Pelé, Cruyff e Maradona. Há um quinto nome, que ainda está jogando: Messi".
O camisa 10 chega ao Qatar após um início de temporada em que marcou 12 gols e deu 14 assistências no PSG. São cifras que já superam as alcançadas em 2021/22, quando o argentino ainda se adaptava ao novo clube após sair em lágrimas do Barcelona.
Em boa forma, sem o peso de não ganhar com a seleção, cercado por companheiros jovens e determinados a ajudá-lo. Messi terá no próximo mês a chance de finalmente colocar a única peça que falta em sua carreira.
"A Copa do Mundo é a coroação automática. Mas também é verdade que o futebol teve outros reis sem coroa, outros grandes que jamais venceram uma Copa do Mundo. Cada um terá de avaliar se Messi foi ou não o melhor de sua época. Para que não exista mais essa discussão, é preciso que ele ganhe a Copa do Mundo no Qatar", conclui o biógrafo Ramiro Martín.
A PROMESSA: ENZO FERNÁNDEZ
"E depois de Messi, o quê?"
Feita por Maradona em seu livro "Mi Mundial, mi verdad", a pergunta do futebol argentino depois da Copa de 2018 ainda não tem resposta. Ao menos por enquanto, não existe no horizonte um herdeiro para a camisa 10.
Na renovada seleção que vai ao Qatar, o garoto-prodígio joga no meio-campo, mais longe da área rival. Revelado na base do River Plate, Enzo Fernández destacou-se em 2020, quando foi emprestado ao Defensa y Justicia e conquistou o título da Copa Sul-Americana; em 2021, foi um dos pilares do River Plate de Marcelo Gallardo que conquistou o título argentino.
Aos 21 anos, em sua primeira temporada na Europa, ele comanda o meio-campo do Benfica, que se classificou para as oitavas de final da Champions League à frente do PSG. Na seleção, foram apenas 3 partidas disputadas, nenhuma delas como titular. A ausência de Lo Celso, cortado por lesão, deve dar mais chances ao jovem no Qatar.
Lionel Scaloni já mostrou que em La Scaloneta há espaço para a juventude. O treinador define Enzo como "um meio-campista completo, que defende bem e também chega ao ataque". Os números do início de temporada no Benfica mostram essa vertente mais ofensiva: já são 3 gols e 4 assistências.
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Esta Argentina é puro Cortázar
Por Tales Torraga
Para muitos argentinos, Júlio Cortázar é o mais talentoso escritor da história do país. Nascido na Bélgica e enterrado na França, sua verve europeia, no melhor estilo "toco y me voy", está eternizada em textos que interessam e encantam mesmo muitas décadas depois das suas publicações.
Brilha na Europa e apaixona o fanático argentino. Esta Argentina 2022 é puro Cortázar. Não é pouco. É quase tudo nas virtudes vizinhas.
Ver Messi e Di María vencendo suas mazelas é a pura imaginação surreal de "História de Cronópios e de Famas". O adeus à fila em pleno Maracanã segue o fluxo de "Autoestrada do Sul". "Uma das materializações mais claras do absurdo".
Esta Argentina rumo ao Qatar tem um quê de "Jogo da Amarelinha". Idas e vindas eternas. Perto de cair numa primeira fase de Copa América, perto de demitir seu técnico contra a Bolívia no começo das Eliminatórias, perto de sair nas semifinais e nos pênaltis contra a Colômbia, perto do céu campeã e com a maior invencibilidade da sua história. Súditos de Cortázar definem sua obra-mestre como "o livro eterno".
Não precisa ser letrado, e nem argentino, para saber que "eterno" será pouco para imaginar como os vizinhos iriam comemorar um título de Messi nesta Copa. O camisa 10 está perto, muito perto, de virar um patrimônio da humanidade argentina. De virar um Cortázar.
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O que eles pensam do Brasil?
Juan Irigoyen, jornalista argentino do El País (Espanha)
A seleção brasileira é a maior favorita a ganhar a Copa do Mundo, mas falar isso é óbvio demais. Sempre é óbvio falar que o Brasil é o favorito, porque há menos chances de errar.
O time atual tem um bom técnico, dois goleiros do mais alto nível, um jogador fora de série e muita força no ataque, principalmente com os pontas. Mas às vezes me passa a sensação de ser um time desbalanceado: ao mesmo tempo que tem coisas muito boas, tem outras abaixo do nível que se espera do Brasil.
Para quem cresceu vendo Cafu e Roberto Carlos é difícil se acostumar a laterais brasileiros que não ataquem, nem estejam entre os melhores do mundo na posição. Também não vejo muita criatividade no meio-campo, mas isso nem sempre é um problema: o Brasil ganhou a Copa de 1994 sem ter um camisa 10.
Entre as opções de camisa 9, vejo bons jogadores, mas nenhum deles faz meus olhos brilharem. Só que, com Neymar e tantos pontas de qualidade, fazer gols não deve ser difícil.
Mesmo com esses pontos fracos, quando olho para as seleções europeias, nenhuma parece estar no mesmo nível do Brasil. Com a Argentina no bom momento que está, a sensação é que finalmente chegou a hora de um sul-americano vencer a Copa do Mundo outra vez, depois de 20 anos.
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