RIO DE JANEIRO, RJ (UOL - FOLHAPRESS) - A memória mais antiga que o ex-volante Ramires Santos do Nascimento, 35, tem da infância é algo com lugar cativo no coração de muita gente: a casa da avó. Natural de Barra do Piraí, ele passava temporadas inteiras sob a asa de vovó Teresa, em Mendes, outro município do Rio de Janeiro.

Incomum para muitas pessoas é o que Ramires só descobriu recentemente. Conhecida historicamente pela extensa produção de café em meados do século 19, a região da cidade com cerca de 18 mil habitantes e a 92 km da capital ecoa no século 21 a permanência dos descendentes de africanos que habitavam o território.

Um desses ecos é a família do ex-jogador das Copas do Mundo de 2010 e 2014 e lenda do Chelsea, da Inglaterra. Outro deles faz parte do próprio Ramires: 99% de seu material genético remete à África, com maior incidência para o Oeste do continente.

"Quando vi que era africano, eu não me apeguei a não ter nada sul-americano. É muito raro, meu DNA é africano total", afirmou o ex-jogador.

Enquanto conversava com Ecoa sobre teste genético de ancestralidade, Ramires se emocionou ao contar dos tempos bons e difíceis que passou com a mãe, Judith Santos do Nascimento trabalhava. Nas férias, era comum ele e os irmãos Michael, 39, Michele, 37, e Renan, 21, passarem os dias em um hotel fazenda famoso onde a mãe trabalhava. O pai, Maurílio Marques, convivia pouco com as crianças, porque também cuidava à época dos filhos com outra mulher em Nova Iguaçu.

Já o contato com a avó materna foi mais frequente. Mãe de oito filhos, ela é a ancestral mais viva nas lembranças dele -do avô só se recorda que se chamava João. Foi sob o cuidado zeloso dela --e das comidas preparadas- que o jogador cresceu com os irmãos. Enquanto os tios e irmãos mais velhos trabalhavam e estudavam, ele foi o escolhido, mesmo sendo um menino, para cuidar de vó Teresa quando ela ficou acamada após um Acidente Vascular Cerebral, em 1997.

"Com o pouco que a gente tinha, ela fazia milagres a todos os netos para um não ser mais mimado que o outro. Eu estudava de manhã e à tarde me dedicava a cuidar dela", recorda o jogardor. "Ela usava fralda, e precisava ser virada na cama por causa das costas. Nos primeiros meses, ela levantava, colocava a muleta e ia até o banheiro. Mas o tempo passou, e ela foi parando de andar", acrescentou.

A emoção com que Ramires fala com voz embargada sobre a avó destoa do tom frio com que ele se aposentou dos gramados. Sem pompa, o anúncio ocorreu em setembro deste ano após dois sem clube depois que ele deixou o Palmeiras, em 2020.

O encontro inicial com o futebol foi mais caloroso. Chegou devagarinho graças ao irmão mais velho, Michael, que tentou a vida em nos times da região. Antes levado a tiracolo, Ramires logo entrou para a escalação.

"Meu irmão Michael sempre jogou nos times da cidade e eu, aquele molequinho, queria ir atrás, né? Lógico que eu não tinha a pretensão de me tornar um atleta igual a carreira que eu fiz. Eu só pensava: 'pô, cara, acho que um dia eu posso ser um jogador, né, não?'"

Após uma raça Rio, o Joinville o convidou. Com não mais que 18 anos, o jovem topou e viajou pela primeira vez para fora do estado do Rio. Daí em diante, Ramires e os campos nunca mais se separaram. Após jogar entre 2005 e 2007 no time catarinense, ele foi para Cruzeiro. Antes de ganhar o mundo, cumpriu o que prometeu para a mãe e comprou a esperada casa própria para a família, lá mesmo em Barra do Piraí.

"Eu costumo dizer que através do futebol, dessa oportunidade que eu tive, acabei elevando o patamar da nossa família", diz Ramires. Segundo o jogador, sua família tinha uma realidade de ser muito pobre -"aquela coisa muito sofrida", comenta. "Eu consegui proporcionar coisas que lá atrás nós não tínhamos. É pelos meus ancestrais e todo mundo que está nesse processo. Pra gente estar hoje aqui também, eles fizeram muita coisa".

Depois da passagem pelo Cruzeiro, os caminhos do ex-jogador se abriram na Europa, onde estrelou campanhas memoráveis com a camisa do Benfica e do Chelsea. No time inglês, ele é tratado como lenda por ter conquistado a primeira Liga dos Campeões (2012) e ter feito um importante gol na semifinal contra o Barcelona.

Foi por lá que ele conviveu com os craques marfinenses Salomon Kalou e Didier Drogba. Ao lado de Mali, Camarões, Libéria, Senegal e Gana, a Costa do Marfim está na região africana que responde por 56% da memória genética do jogador. Saber disso despertou no jogador um entusiasmo pelas seleções destes países.

Enquanto Kalou, Drogba e Ramires vestiam o manto dos Blues nos campeonatos ingleses e europeus, amizade e admiração eram a regra.

"Drogba até hoje é meu amigo de mandar mensagem. Eu posto algo no Instagram, e ele responde 'Rami, love you'", diz o ex-volante do Brasil.

Quando o brasileiro defendia a seleção, a paixão verde e amarela falava mais alto. Na Copa de 2010, Ramires estava lá quando o Brasil bateu a Costa do Marfim por 3x1, assim como quatro anos mais tarde quando Camarões foi derrotada por 4x1. Mundiais à parte, Ramires dispensa rivalidades. Não só destaca o respeito ao desempenho profissional e o caráter dos colegas, como revela uma admiração pelos mantos africanos que vai para além da conexão genética.

"Agora, sabendo que tenho a maior parte de Camarões? Eu sempre gostei da camisa deles! A da Nigéria e da Costa do Marfim também acho muito bonitas. Eu não teria problema nenhum de jogaria em qualquer uma delas tranquilamente", afirma Ramires.

Ramires agradece ao "mundo da bola" por ter conhecido atletas de excelência da África. "A maioria dos jogadores africanos saem dos seus países e acabam se envolvendo em grandes projetos sociais para dar um retorno por meio do futebol aos seus países. Sempre tive muito respeito pela história e pelas pessoas que são. Mesmo com todas as dificuldades, é um povo muito alegre, sempre pra cima, disposto a ajudar. Não tem tempo ruim. A maneira que eles têm de lidar com a vida é sorrindo, brincando e se divertindo", declara.

Quando falou com a reportagem, o Brasil ainda não tinha estreado na Copa. O jogo com a Sérvia ocorreria no dia seguinte. A expectativa para ver a atuação da seleção brasileira no Catar era grande. Para ele, uma competição no Oriente Médio era não só uma surpresa, mas gerava uma expectativa difícil de decifrar no ato do anúncio do Qatar como sede da Copa, em 2010, dadas as suas características políticas e culturais.

"É um país muito complicado. Tem várias questões internas muito diferentes do Brasil e de outros países. No momento em que se propõem a fazer um evento desse tamanho, eles têm que ter na cabeça que muitas pessoas diferentes vão se reunir e coisas incomuns vão acontecer. Não dá para querer proibir tudo e todos de fazer coisas normais. Provavelmente, após a Copa haverá muita reclamação", especula Ramires.

Racismo, machismo, misoginia e homofobia também se entrelaçam ao mundo dos esportes, e Ramires vê o futebol como uma engrenagem de transformação que pode se comunicar com diversos torcedores. E, por que não, mudar o mundo para melhor.

"Futebol é para todas e de todos. Hoje, a gente ainda vê muita coisa que machuca, e o mundo inteiro para quando quer ver um jogo de futebol. É o meio que consegue chegar mais simples e reto para as pessoas. Há bastante tempo a gente tenta combater o racismo: fala uma coisa e dá uma melhorada, mas depois acaba acontecendo coisa pior. Todo mundo já está cansado de racismo e de homofobia. As pessoas são assassinadas por sua orientação sexual. Não tem mais espaço pra isso", concluiu o ex-volante da seleção brasileira.


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