SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ester Silva, 33, não se conforma que o filho Ian Kawe, 18, não tem interesse em jogar futebol.

"Um homem de 1,90 m, com esse perfil de zagueiro, não quer saber de bola", lamenta.

Foi por causa dele que Ester, uma lateral esquerda que atuava em times amadores de Macapá, enterrou o sonho de ser jogadora. Ela engravidou aos 15 anos e ficou impossível continuar. Mas, se correr pelas beiradas do campo era difícil, não se compara ao que faz hoje.

Ester é coordenadora de futebol feminino do Ypiranga, o principal clube da modalidade do Amapá. A equipe estreia no estadual deste ano como favorita ao título. A primeira partida será nesta quinta-feira (9), contra o Lagoa.

"Fazer futebol masculino aqui já é difícil. Você não faz ideia do que é o feminino", lembra o presidente da agremiação, Ricardo Oliveira.

O Ypiranga é considerado a referência da região porque paga salários e dá alojamentos para suas atletas. Isso é um luxo. O Amapá foi o último colocado no ranking de federações da CBF em 2022, o de piores resultados. O estadual, que não aconteceu em 2022, terá apenas cinco equipes. Dois são amadores.

"Temos um elenco feminino com 25 jogadoras que vieram disputar o campeonato pela amizade que elas têm com a gente. Nós não temos condições de pagar nada", avisa Munjoca Soares, mandatário do Lagoa, rival do Ypiranga, refletindo o quadro geral do futebol local para mulheres.

Esta é a realidade da maioria das atletas que vão disputar o torneio de um estado que jamais teve representante na elite nacional no masculino. O Ypiranga foi quem teve o melhor desempenho na história do feminino. No ano passado, chegou às quartas de final da série A3, a última divisão. Foi eliminado pelo 3B Sport, que seria vice-campeão.

A discrepância é grande. O sistema do Brasileiro é em disputa de mata-mata. A CBF paga R$ 10 mil para o time mandante e R$ 5.000 para o visitante. Quem for eliminado na primeira fase sai apenas com R$ 15 mil. Cada clube da Série D masculina, o patamar mais baixo da pirâmide do futebol, embolsa R$ 300 mil.

"A premiação para o campeão do Amapaense feminino, em 2021, foi de R$ 2.000. No torneio amador masculino, foi R$ 10 mil", completa Ester.

Nesta temporada, o clube vencedor ficará com R$ 7.000.

Repasse de dinheiro da Federação Amapaense, não há. Segundo dirigentes ouvidos pela reportagem, a entidade ajuda a apagar incêndios, como quando não há uniformes ou faltam bolas para treino e jogos.

Quase todos os clubes contratam atletas que morem perto do local de treinamento porque não podem arcar com transporte ou alojamento. O custo para registrá-las é outro problema que a Federação tem tentado ajudar. Até o ano passado, o valor para regularizar a situação na CBF era de cerca de R$ 1.000 por contratada. Quase o mesmo do masculino, queixam-se cartolas: R$ 1.200.

Para um torneio de cinco times e que consegue reunir, na melhor das hipóteses, cerca de 1.500 pessoas nas arquibancadas, é um valor proibitivo.

O Ypiranga, que oferece ajuda de custo que varia entre R$ 600 e R$ 700 a cada atleta, é exceção. Ester afirma que, mesmo assim, é muito pouco resumir o seu papel ao de coordenadora de futebol. Ela precisa viver o problema das jogadoras. Faz função de assistente social, irmã mais velha, busca cestas básicas para quem precisa. Algumas são mães e insistiram com o futebol, coisa que ela não fez.

Quando é necessário, também relembra os tempos de quando entrava em campo. Ela ficou no banco de reservas, como opção para o segundo tempo, em partida contra o 3B Sport.

"Eu preciso trabalhar primeiro a parte emocional delas. Tem a parte espiritual, emocional, as frustrações que elas sentem... Temos de cuidar de tudo isso", define a dirigente, que já ouviu de torcedores, alguns do próprio Ypiranga, questionamentos sobre a necessidade de o clube ter um elenco feminino.

"Muitas vezes ouvi para parar, que não daria certo. Diziam que futebol de mulheres não dá dinheiro e por que iríamos insistir. Mas eu estou acostumada. Meu pai não queria que eu jogasse futebol porque achava que eu seria lésbica."

A maioria deseja alguma visibilidade, mesmo com a consciência de que não será fácil. As partidas serão transmitidas pela internet pelo Eleven Sports. Há quem veja o estado pior classificado no ranking da CBF como uma plataforma. Uma maneira de se preparar para o que virá neste ano.

"Tive de retornar a Macapá porque estava com lesão que poderia ser cirúrgica, mas não foi. Surgiu o convite para disputar o estadual e será uma preparação porque no segundo semestre vou para os Estados Unidos. Tenho convite de três faculdades", diz a meia Iandra, que passou quatro temporadas no Vasco.

Sua passagem pela equipe carioca aconteceu após ter sido vista em um torneio masculino que participou em São Paulo. Não havia garotas suficientes para fazer um campeonato só de meninas. Romário, campeão mundial de 1994 e hoje senador, viu vídeo de Iandra e a indicou para o Vasco.

"A gente aqui não faz só futebol. Se fosse só futebol, seria mais fácil. É muito mais do que isso", resume Ester Silva.

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