SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em uma La Bombonera lotada, Gary Lineker sorriu ao ouvir a massa cantando que "el que no salta es un inglés". Ao seu lado no camarote, Diego Maradona repetiu, aos gritos, que quem não saltava era um inglês.
Não é qualquer britânico que, com a lembrança da Guerra das Malvinas (1982) viva na memória do argentino, se tornaria amigo do maior ídolo da nação sul-americana.
No olho do furacão e responsável por uma polêmica sem precedentes na mais famosa emissora pública do mundo, Gary Winston Lineker, 62, foge do molde do ex-jogador de futebol. Artilheiro da Copa de 1986, atacante histórico do Tottenham Hotspur e queimado no Barcelona por Johan Cruyff, ele se tornou porta-voz informal de causas sociais.
Suas plataformas são 8,8 milhões de seguidores no Twitter e o fato de ser um dos rostos mais conhecidos da TV no Reino Unido. É apresentador desde 1999 do Match of the Day, o mais assistido e tradicional programa esportivo do país, no ar há 59 anos.
Lineker causou uma crise na emissora ao comparar, em postagem no Twitter, a política de imigração a ser implantada pelo governo britânico com a Alemanha nazista.
Ele foi afastado do programa pela direção da BBC, um canal estatal. Em solidariedade, outros ex-jogadores que trabalham como comentaristas avisaram que não participariam da transmissão neste sábado (11). Mark Chapman, a voz mais conhecida da 5 Live, a rádio de notícias do conglomerado, não apareceu para trabalhar. Atletas em atividade se recusaram a dar entrevistas pós-jogo para a emissora.
O Match of the Day exibiu os melhores momentos da rodada, mas sem vinheta de abertura, narrações, entrevistas e análises. Apenas os lances das partidas com som ambiente. Isso jamais havia acontecido.
"Acho que por ser um ex-atleta de futebol, o que eu escrevo chama mais a atenção porque as pessoas do esporte não costumam se posicionar. Tenho interesse [em política], embora não seja candidato a nada. Não defendo nenhum partido político, mas isso não me impede de defender algumas causas que para mim são importantes. Escrevo o que penso", disse ele à Folha, no final de 2017.
Semanas mais tarde, Lineker seria o apresentador do sorteio dos grupos para a Copa do Mundo de 2018, na Rússia.
Não é inédito se envolver em polêmica por causa de suas opiniões. Mas é a primeira vez que recebe algo parecido com uma suspensão, embora a BBC não use esta palavra. A emissora alegou que seu contratado quebrou as diretrizes da empresa de como se comportar nas redes sociais e pediu que o ex-jogador se desculpasse pela postagem e a apagasse. Ele se recusou a fazê-lo.
Em vez de se preparar para apresentar o show, foi ao King Power Stadium neste sábado ver o Leicester, seu time do coração, enfrentar o Chelsea pela Premier League.
Lineker já havia se posicionado no passado contra políticas do Partido Conservador, no poder no Reino Unido desde 2010.
Ele foi uma das vozes contra o Brexit, a saída do país da União Europeia, confirmada em plebiscito realizado em 2016. Criticou repetidas vezes a recusa da Inglaterra em receber refugiados de zonas de conflitos. Apoiou publicamente a campanha do atacante Marcus Rashford, do Manchester United, para que o governo subsidiasse mais refeições nas escolas para crianças carentes durante a pandemia da Covid-19.
"Quando fogem de guerras, refugiados não conseguem carregar muito. Mas refugiados levam tantas coisas para suas novas comunidades: esperanças, habilidades, talento, tradições e muito mais", escreveu.
Revelado pelo Leicester em 1978, ele passou pelo Everton antes de ser contratado pelo Barcelona, em 1986. Fez 21 gols em 41 partidas em sua primeira temporada. Ganhou a Copa do Rei de 1988 e a Recopa europeia de 1989. Saiu porque o técnico holandês Johan Cruyff acreditava que aquele centroavante por excelência não servia para seu esquema de jogo. Passou a escalá-lo fora de posição, pela ponta direita.
Lineker voltou à Inglaterra em 1989 e foi campeão da Copa nacional de 1991 pelo Tottenham Hotspur. Antes de se aposentar dos gramados, atuou pelo Nagoya Grampus (JAP).
Sua maior lembrança para os torcedores é com a camisa da seleção. Anotou 10 gols em Copas do Mundo, seis deles em 1986, quando foi o artilheiro do torneio. Era peça fundamental da equipe que chegou à semifinal em 1990, a melhor campanha inglesa em Mundiais depois do título de 1966 e igualada apenas em 2018.
Ao contrário de vários outros colegas de elenco, como Terry Butcher, Peter Shilton e John Barnes, nunca guardou rancor pelo gol com a mão feito por Maradona nas quartas de final no México, há 27 anos. Sempre disse entender a genialidade do camisa 10 rival.
Contratado pelo setor de entretenimento da BBC, Lineker tem salário de 1,35 milhão de libras anuais (cerca de R$ 8,5 milhões pela cotação atual), um dos maiores da empresa. Ele também apresentava programas para a BT Sports, emissora privada do Reino Unido e tem participações esporádicas em canais como Al Jazeera, do Qatar, e da NSBC, dos Estados Unidos.
O apresentador foi acusado de receber o salário em empresas do exterior para evitar pagamento de impostos. No Reino Unido, podem passar de 50%.
A polêmica sobre seus tuítes e a suspensão escancaram também uma briga interna pela influência na BBC. Apesar de ter regras de independência, a emissora, referência de TV pública no mundo, não está imune a disputas políticas.
O atual presidente do conglomerado estatal, escolhido pelo governo e aprovado pelo Parlamento Richard Sharp, fez doações de 600 mil libras (R$ 3,8 milhões hoje em dia) para o Partido Conservador. Quando era banqueiro, ajudou a azeitar um empréstimo pessoal de 800 mil libras (R$ 5 milhões) para o ex-primeiro ministro Boris Johnson.
Há também uma antiga batalha nos corredores do governo a respeito da taxa de licença. O dinheiro, que sustenta a BBC, é pago por todas as pessoas que possuem televisão em casa. São R$ 998 por ano e não fazer o pagamento ou declarar em falso que não possui uma TV, era considerado crime até o início da pandemia.
Parte do Partido Conservador deseja extinguir a taxa e que a emissora busque dinheiro no mercado, com a venda de anúncios, como os demais canais convencionais.
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