Raquel Marcato Raquel Marcato 23/09/2015

A criança constrói a saudade na convivência

Ontem à noite minha filha disse: Mamãe, tô com saudade de alguns amiguinhos do Brasil. E me pediu para mandar mensagens gravadas para alguns deles. Já era final do dia, um final de domingo, eu já pensando na segundona, na escola nova, em continuar com a adaptação... quando me peguei observando o que poderia ser para ela uma saudade.

A voz saia um pouco retraída, aquele volume que aos poucos ia chegando o tom do entusiasmo pleno!

Com todos ela dizia que estava com muita saudade e avisava quando os reencontrariam nas férias. Foi lindo ver aquilo. Foi lindo ver tanto amor genuíno despido de qualquer “ganho”, acho que por isso tão tocante. Mas, não teve choro enquanto ela ia revivendo àquelas deliciosas amizades. Sinto que foi o momento que a saudade não dava mais para ficar no silêncio.

Ficou claro para mim que a sua referência de afeto ainda está lá. Traz a ela aconchego, traz identidade, traz vivências, traz um “fazer parte”. Mas, ela teve que construir tudo isso lá no decorrer de vários dias, anos. Ela conquistou este espaço nos corações destes amiguinhos, assim como eles conquistaram no dela. Tudo por ter feito parte do convívio onde as relações acontecem. Passou pela indiferença até encontrar no colo da empatia o seu lugar.

Realmente, nada é de graça, né!

Diariamente, precisamos conquistar o nosso espaço. Precisamos nos movimentar, sair do lugar. Com mais dificuldade ou menos, mas a lei é para todos.

Fico observando ela na escola daqui, é a única novata e que ainda não fala a língua de um grupo. Se ela não se abrir, como chegarão até a ela? Como conquistará em seu coração uma possível saudade?

AH! relações humanas! como exigem de nós mesmos. Como precisamos estar a todo o momento negociando com a nossa “câimbra”, onde a nossa diferença grita e chama atenção.

Ninguém vai falar que você é o seu melhor amigo se não houver cultivo, ninguém vai defender você se não te conhecem, você não vai ser respeitado senão colocar o limite no outro, e não se surpreenda, se ninguém te enxergar caso não escutem a sua voz.

E isso também vale para o mundo dos pequenos, com bem menos consciência, claro, MAS diante da adversidade eles também fazem barulho.

O que percebo é que a “novidade” (minha filha) está em evidência, a princípio, em “desvantagem emocional” diante de uma “comodidade emocional” para todos os demais.

E mesmo que de maneira infantil o poder de “barganha” está presente.

Porém, os demais também passaram pelo processo de conquista em seus inícios assim como ela no Brasil, e com certeza também teve choro e vontade de ir para casa.

Ontem, na volta da escola, Marta me disse: Mamãe, me falaram na escola que tenho BIGODE!

Em uma fase de ADAPTAÇÃO TOTAL era A ÚLTIMA COISA que eu queria ouvir!! A diferença foi percebida, o “novo” foi “observado” e o colocaram em evidência sem “proteção”. Tudo bem, conversamos e tudo parece ter ficado esclarecido.

Apenas, não é fácil.

Mas ela vai precisar elaborar tudo isso com ela para quando estiver viajando por outros cantos poder também dizer: Mamãe, tô com saudade dos meus amiguinhos de Barcelona!

Apenas, não será de graça.


Raquel Marcato, mãe da Marta de 4 anos, blogueira do portal mamaesavessas.com, escritora, questionadora por essência, ativista pelo autoconhecimento e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Autônoma de Barcelona.

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