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Uma pedagogia incompleta

Luiz Sérgio Henriques - Março 2004
 

A vida na democracia é um exercício pedagógico permanente. Embora não haja ninguém investido do papel só de professor ou só de aluno - ao contrário, como na lição rosiana, professor é quem, de repente, aprende! -, em princípio cabe às velhas gerações socializar politicamente as mais novas, transmitindo-lhes um legado de idéias e lutas, enquanto tentam recolher, do contato com os jovens, novas inquietações e atitudes.

Deste ponto de vista, o mais grave numa ditadura é a ruptura desta relação pedagógica. Os mais experientes, punidos pela derrota, perdem o contato direto com quem chega à vida adulta. E quem começa a vida em tempos de autoritarismo vê-se diante de um terreno minado: ou adere à situação estabelecida mais ou menos oportunisticamente, ou se rebela com maior ou menor grau de consciência. E os danos são quase tão graves num caso e no outro. Os oportunistas correm um risco humano altíssimo, que nem é preciso descrever. E os rebeldes, só pelo fato de serem rebeldes e de lutarem contra uma ditadura, não garantem para si, automaticamente, personalidades democráticas nem fazem necessariamente a política mais razoável.

Este é um drama típico dos tempos de chumbo: como no poema de Brecht, quem luta pela amizade entre os homens nem sempre tem tempo, ou condições, de ser amável. Uma ditadura deforma a todos, até aqueles que, em princípio acertadamente, a combatem.

O Brasil de 1964 (mas, especialmente, depois de 1968) é pródigo em exemplos desse tipo. Uma parte da juventude - generosa, sem dúvida - escolheu enfrentar o regime nos próprios termos deste, despedaçando-se na tortura, na morte e, nos casos mais favoráveis, no exílio. Era tal a desproporção de forças que a derrota estava dada desde o início. Não havia saída para a luta armada, quer se apresentasse como mera resistência, quer pretendesse indicar uma via qualquer para o socialismo, sob a influência da então recente revolução cubana ou da chinesa, na sua fase extremista da revolução cultural e do impagável "livrinho vermelho". E mesmo que, raciocinando por absurdo, a vitória pelas armas fosse possível, podemos nos perguntar legitimamente que tipo de socialismo teria advindo desta forma militarizada de entender a luta política.

Na verdade, sob qualquer aspecto, a luta armada dos anos 60 e 70 era absolutamente inviável e, com todo o respeito pelo sacrifício imposto a muitos, talvez seja adequado vê-la, desencantadamente, como um dos efeitos da pedagogia interrompida em 1964. O saldo foi trágico: perdemos gente capaz de trabalhar muito, e de modo muito produtivo, pelas melhores causas do nosso país e do nosso povo.

Nos anos de ferro e fogo, foi custoso retomar o curso da política, da participação no partido "consentido" e nos sindicatos. Atuar no então partido de frente - dizia-se equivocadamente - era "legitimar" os militares no poder. Não raro, víamos esta atividade reduzida aos nossos "grandes velhos" - personalidades de trajetória densa, de diferentes orientações e escolhas de vida, mas de firmíssima implantação na história da República: gente do calibre de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Alceu de Amoroso Lima ou Barbosa Lima Sobrinho.

Na esquerda, desde os tempos da Frente Ampla e até meados dos anos 70, só os comunistas do PCB trilhavam invariavelmente este curso, pagando, aliás, o preço da acusação renitente de "reformismo" ou "capitulação", dirigida pelos grupos da extrema-esquerda adeptos da ilusão armada. Assim como pagariam, posteriormente, o duríssimo tributo cobrado pela repressão, na forma do assassinato deliberado de dirigentes como Luiz Inácio Maranhão, Orlando Bonfim, Davi Capistrano, entre vários outros. Ao que se sabe, a liquidação física dos comunistas passou a ser, inclusive, um dos requisitos da distensão lenta, segura e gradual, como forma de prevenir uma possível recuperação vigorosa da velha legenda após o regime militar, como tinha acontecido pouco antes com o colapso do salazarismo em Portugal.

De todo modo, os "velhos" do partidão traziam em si a marca de uma deficiência tremenda, que poucos analistas souberam avaliar corretamente em toda a sua dramática extensão. Mesmo no período constitucional, entre 1947 e 1964, o PCB tinha sido um partido ilegal, às vezes alvo direto da repressão, às vezes meramente tolerado, com seus candidatos avulsos apresentados sob a cobertura de variados outros partidos. Pensando bem, aquela não era propriamente apenas uma marca negativa do velho partidão, mas um estigma da democracia brasileira e do seu sistema de partidos: hoje, quando gozamos de um regime inédito de liberdades, podemos imaginar, com espanto, o que terá significado esta amputação de direitos políticos, que atingia em cheio o mais importante partido de esquerda e, conseqüentemente, as possibilidades de representação dos subalternos, dos de baixo.

Era natural que, nas novas condições da clandestinidade do pós-64, estes velhos comunistas parecessem, cada vez mais, não falar a linguagem dos jovens ou, pelo menos, da maioria dos que se interessavam pela vida pública e de algum modo agiam politicamente. No entanto, faziam um movimento correto sob todos os pontos de vista e até bastante rico de possibilidades teóricas: em termos simples, aliavam-se aos democratas e aos liberais para combaterem a ditadura. À sua maneira, com a linguagem de comunistas da III Internacional, com as dúvidas e preocupações herdadas do colapso do stalinismo em 1956, faziam política de verdade, dura, cotidiana, clandestina, mas com dimensão histórica e vocação hegemônica. A prosa das suas vidas e do seu tipo de política - na aparência nada heróica - podia eventualmente brilhar como poesia, como no Rasga Coração, do Vianinha, ou no Eles não usam blacktie, de Guarnieri e Hirszman. Mas o importante é que, sem pegar em armas, era grande política, capaz de prever nos traços essenciais o que viria a seguir: a luta pela Constituinte e o estabelecimento, entre nós, de um regime republicano com amplas liberdades.

Estas linhas não querem ser de modo algum nostálgicas. O partidão acabou inapelavelmente junto com a experiência soviética, à qual, apesar da sua óbvia inserção nacional, estava umbilicalmente ligado e da qual decorriam limites insuperáveis. Mas não só: na sua estrutura interna e, especialmente, na forma mentis de muitos dos seus dirigentes e militantes havia a marca implacável da bolchevização dos partidos comunistas - infelizmente, um dos mais "exitosos" programas de Stalin a partir de meados dos anos 1920, ainda antes da consolidação definitiva do stalinismo, e que, diga-se de passagem, tem se revelado desde então um dado mais ou menos permanente do modo de ser da esquerda, a velha e a nova. De fato, um "jacobinismo" anti-sistêmico inteiramente inadequado às sociedades de tipo ocidental parece fazer parte de um código genético duro de modificar, apesar da lição gramsciana, já velha de muitas décadas, que aponta a incompatibilidade radical entre bolchevismo (com alma ou sem ela, como é mais comum nos nossos dias) e Ocidente político.

De todo modo, e já voltando ao PCB, se tudo o que existe merece morrer, pode-se envelhecer e morrer bem, deixando inclusive um legado proveitoso ou potencialmente proveitoso. E a história da oposição ao regime militar segundo a política pecebista de ampla coalizão, em defesa da democracia dita burguesa (no léxico da esquerda autoritária), é um desses legados que, incompreensivelmente, ainda se insiste em ignorar ou passar por alto, como nota de pé de página sem maiores conseqüências. No entanto, as implicações são muito amplas, pois o exemplo brasileiro confirma uma tendência mais geral: todas as vezes que, na teoria ou na política, a idéia comunista se aproximou da idéia democrática, o resultado foi perturbadoramente produtivo, como que a comprovar, reiteradamente, que o comunismo é mesmo uma "heresia do liberalismo". A perda de conexão entre um e outro costuma ser catastrófica para ambos. No nosso caso, esta perda esvazia - mais cedo ou mais tarde - a dimensão de liberdade que devia ser intrínseca, mas de fato nem sempre é, ao projeto de qualquer esquerda.

A nova esquerda que sucedeu ao PCB nasceu em polêmica com a idéia de frente, aferrada, muitas vezes rigidamente, à idéia de cisão, de autonomia dos "trabalhadores", entendidos como um bloco social que, em estado de natureza, chicoteava e expulsava do Templo os trezentos picaretas. Entre Tancredo e Maluf, não viu motivos para escolher, preferindo preservar a própria identidade e omitir-se, "revolucionariamente", num contexto que decidia entre a redemocratização ou a reprodução do regime autoritário em trajes civis (e esfarrapados de corrupção caricata). Alguns anos depois, a extraordinária dificuldade para assinar e homologar a Carta de 1988 iria sugerir uma espécie de mal-estar subjetivo diante da estrutura institucional de uma república democrática, ainda que, objetivamente, aquela esquerda fosse um dos pilares do novo país que surgia: era como se fosse melhor um capitalismo politicamente tosco, não democrático, e por isso mesmo alvo ideal de uma estratégia à moda bolchevique. E talvez não casualmente, uma vez no poder, esta esquerda "social", avessa ao mundo maquiavélico da política, teve de abandonar apressadamente suas veleidades rupturistas, enquanto caminhava atrapalhadamente no sentido oposto, o da adoção subalterna do programa adversário.

Um dos diagnósticos dessa trajetória em ziguezague aponta uma carência de reflexão madura sobre as formas da política moderna. Havia muito de voluntarismo, e de recusa da mediação política, nos componentes básicos da nova esquerda hegemônica, no seu sindicalismo de orientação pré-política ou antipolítica, nas correntes de extrema-esquerda egressas da luta armada e no catolicismo social radicalizado. Como resultado, uma autopercepção messiânica, salvacionista, refundadora de tudo, vingadora intransigente de quinhentos anos de desmandos dos poderosos e misérias dos dominados. Preto no branco, o bem contra o mal, a salvação contra o pecado. Nos áureos tempos, uma UDN de macacão ou de sociólogos, para usar outra metáfora neste nosso tempo de metáforas. Ora, nada mais avesso ao tempo longo da democracia, às suas mediações complexas, à progressiva socialização da política, à mobilização de competências e de um "progresso intelectual de massas" - todos estes, elementos para governar bem e para estar presente na sociedade de modo lúcido, requisitos indispensáveis para uma estratégia reformista, gradual e, se quiserem, para um reformismo forte, como deve ser e como precisamos.

De resto, não seria a primeira vez que a ortodoxia doutrinária e a volúpia desorientada de ruptura se mostrariam não como atitudes contrárias à subalternidade, mas como sua véspera, seu pressuposto indispensável. E condenadas - a ortodoxia e a subalternidade - a se reproduzirem indefinidamente, condicionando-se uma à outra num rosário de acusações violentas, de pesadas recriminações de "traição", tais como aquelas que povoaram a história da esquerda no século XX e, agora, assolam o campo da intelligentsia petista e ex-petista. Pelo menos, e se servir de consolo, já sabemos que este círculo vicioso só pode ser rompido restaurando-se a relação pedagógica própria da vida democrática, inclusive entre esta nova esquerda e o velho comunismo, entre presente e passado, no que este tem de mais digno de preservação. E, entre o que deve ser preservado (evidentemente, no seu espírito e na sua inspiração última), está a política comunista de frente democrática, amplamente exitosa no pós-64. Objetivamente, as condições para o restabelecimento desta relação pedagógica estão mais claras do que nunca. Resta saber se haverá atores e sujeitos coletivos capazes de protagonizá-la com consciência e obstinação. Podemos esperar algum tempo por isto, mas não indefinidamente.

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Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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