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A Amazônia depois do Fórum

Lúcio Flávio Pinto - Fevereiro 2009
 

Foi uma façanha sediar em Belém a nona versão do Fórum Social Mundial, trazendo a solidariedade do mundo para a Amazônia. O que ficou realmente dessa iniciativa? É a pergunta que fica. Uma das poucas coisas que ficam.

Belém é uma das capitais com os mais baixos índices per capita de verde do Brasil, embora fique na porta de entrada da Amazônia, reduto de um terço das florestas tropicais do planeta. As mais extensas áreas verdes remanescentes da cidade estão nos campi das duas universidades federais, a Ufra e a UFPA, que abrigaram, durante uma semana, a nona edição do Fórum Social Mundial, encerrada no dia 1º. Esses bosques estão cercados por dois dos bairros mais populosos e perigosos da cidade, o Guamá e a Terra Firme, com 10% dos 1,4 milhão de habitantes de Belém e uns 15% da sua criminalidade.

O Guamá cresceu recebendo migrantes do interior, expulsos de suas terras nativas pela chegada dos novos colonizadores. Eles trouxeram consigo fazendas de gado, serrarias, plantios agrícolas e mineração, principais causadores da maior destruição de floresta da história da humanidade (o equivalente a três vezes a extensão de São Paulo em apenas quatro décadas). A Terra Firme inchou com miseráveis pensões que ali foram instaladas para receber trabalhadores braçais, os peões, arrebanhados por "gatos", intermediários da mão-de-obra usada para desmatar as áreas onde antes moravam os caboclos, urbanizados pelo deslocamento à força de suas roças.

Na Terra Firme foram realizadas reuniões preparatórias para o Fórum e até uma entidade foi organizada entre os moradores para dar consistência à sua participação. Mas o propósito foi esvaziado pela ausência do pessoal de apoio de ONGs e instituições, que estimularam a iniciativa. E a participação ficou impossibilitada pela taxa de inscrição, de 30 reais, que ninguém podia pagar.

O Fórum não discutiu nenhum dos problemas das enormes e caóticas periferias de Belém, que tem aquela que era considerada a maior favela horizontal do país, o Paar (com 140 mil habitantes), e que aparece como a segunda capital - proporcionalmente à população - mais violenta do Brasil, abaixo apenas de Recife. Nem os problemas dos dois bairros vizinhos, que, por ironia, durante a semana do Fórum, motivaram uma polêmica pela internet a partir do comentário desdenhoso de uma colunista social de domingo do jornal do grupo de comunicação que domina a mídia local entre os mais abonados membros da sociedade paraense, O Liberal.

O encontro temático internacional, realizado em Belém justamente para dar ênfase à "questão amazônica", a que mais polêmica provoca na agenda ambiental de hoje, não conseguiu cruzar o cinturão policial que o isolava dos dois temidos bairros, em cujos limites estão alguns dos pontos negros da cidade. Restou então aos bairros ir às montanhas de gente estranha e de acontecimentos inusitados. Não para participar das centenas de eventos programados para o Fórum nem para usufruir a relação com os visitantes categorizados, mas para lhes vender alguma coisa e faturar uma receita extra. Com uma forte razão: Belém é das capitais brasileiras com a maior economia informal e um dos mais elevados índices de desemprego. Boa parte dos seus moradores vive de biscates ou trabalha sem relação de emprego estável. Um contingente cada vez mais numeroso já transpôs o portal da informalidade para a criminalidade, aberta ou disfarçada, com poucas possibilidades de retorno.

Nos dias que antecederam a inauguração oficial do FSM, os moradores atravessaram como puderam o muro que isola os campi das duas universidades com suas mesas, cadeiras, pratos, colheres e comidas para oferecer ao público, desprovido desses serviços em condições satisfatórias ou na quantidade necessária. Depois, com o aumento da vigilância nos muros e nas poucas áreas de acesso (o debate era livre, mas o ingresso era supercontrolado), os interessados começaram a roubar, principalmente os dois mil voluntários que circulavam entre os campi, o da Universidade Federal do Pará e o da Universidade Federal Rural da Amazônia.

Primeiro roubavam os crachás, que, em seguida, adulteravam, para poder vencer a fiscalização e entrar com suas comidas e guloseimas. Passaram também a tomar as camisas, outro elemento de controle na entrada (algumas foram vendidas pelos próprios voluntários, sem dinheiro até para o ônibus). E assim a periferia da metrópole da Amazônia tirou vantagens do acontecimento do ano, que teria reunido, segundo seus organizadores, 130 mil pessoas, número que as sobras de milhares de camisas, muitas nem tiradas da caixa, punham em questão para quem pudesse ver por dentro o que acontecia.

Graças à conjugação da necessidade de alimentação das mais de três mil pessoas que acamparam nos campi e dos milhares de outras que circulavam pelos locais durante o dia, houve uma ligação entre a bolha de solidariedade e de confiança em um mundo melhor, e aqueles que deviam ser a materialização física dessas utopias, os excluídos da globalização em carne e osso. O Guamá e a Terra Firme foram duas das mais angustiantes preocupações do governo, o sujeito oculto na oração de independência do FSM (como a contrafação à tertúlia dos ricos em Davos), e dos organizadores.

O governo federal, do PT, deslocou 300 homens da Força Nacional e destinou R$ 50 milhões (dos R$ 160 milhões do orçamento global) ao item específico da segurança. O governo estadual, também sob o controle do PT, concentrou sete mil homens das duas polícias (a militar e a civil) em Belém e montou um cordão sanitário em torno dos dois bairros limítrofes para proteger os convivas do Fórum da rotina de 200 ocorrências criminais diárias (60% delas na forma de crimes contra o patrimônio, mais de dois terços deles com o uso da violência). Milhares de moradores foram parados e revistados todos os dias pelas patrulhas móveis, os bares tiveram que fechar às 10 horas da noite e um clima de confinamento foi imposto. O cotidiano experimentou uma metamorfose súbita, ainda que efêmera.

Graças a essas providências, a violência não se imiscuiu no ambiente do Fórum durante a semana da sua realização. Isolados dessa maneira, os participantes do monumental encontro puderam desenvolver sem contratempos suas idéias e propostas sobre a construção de um mundo melhor e uma Amazônia auto-sustentável. A realidade incômoda, que havia antes, poderá voltar a se instalar agora que profetas, gurus, discípulos e todas as pessoas de boa vontade voltaram para suas casas. Carregando consigo as mesmas idéias e imagens que trouxeram para Belém.

Não há dúvida que o FSM trouxe a Belém gente de alta capacidade intelectual, com um currículo poderoso, disposta a aplicar suas qualidades para a construção de um futuro melhor para o planeta e, particularmente, para a Amazônia. Poucos, porém, vieram para ouvir o que a própria região tem a dizer. Muitos têm dedicado seu tempo a estudar a Amazônia, mantendo uma atitude constante de alerta em relação ao que nela acontece a partir dos seus terminais eletrônicos, conectados a satélites, acessando bancos de dados, cruzando informações, montando teias de argumentos e produzindo conclusões sobre o que ocorre no castigado solo amazônico. Parece, contudo, que esse mundo digital é tão fascinante que dispensa seus freqüentadores de ir lá fora e ver os acontecimentos reais. Os personagens vivos dessa história que dêem conta dos seus dramas e problemas sem as tonalidades desse novo idealismo tecnológico.

O Fórum passou como a banda pela janela da moça que Chico Buarque de Holanda colocou na sua música de maior sucesso, quatro décadas atrás. Num dos muitos versos expressivos, ele observou: "A minha gente sofrida/ despediu-se da dor/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor". O amor se foi, o sofrimento ficou. Assim é a vida, que invade e contamina o mundo virtual, tirando-lhe a virtude, como tem que ser.

Atrás dos números

O Fórum Social Mundial foi uma criação positiva. Em sua nona versão, ele demonstrou a necessidade de quebrar o monopólio de fazer e escrever a história, exercido pelos ricos e poderosos. Mas desnuda também a dificuldade - quase impossibilidade - de criar uma contrafação radical ao meeting que os oito grandes realizam em Davos. Em boa medida, o FSM é a outra face da moeda dos estereótipos e manipulações do G-8. Falta-lhe a capacidade de confrontar-se com a realidade e ser-lhe fiel, purgando-a das manobras de efeito e da manipulação.

No balanço final do encontro de Belém, os organizadores do fórum recorreram aos números para conferir-lhe grandeza fictícia e qualidade exagerada. Proclamaram que 133 mil pessoas de 142 países se inscreveram para o evento. Sem pôr o número em questão, qual foi a participação? Por que sobraram tantas camisetas confeccionadas para os inscritos, muitas sem sequer sair das caixas, se elas foram um regalo disputado?

Dos 133 mil participantes, menos de seis mil (ou nem 5%) eram de fora do Brasil, dois terços deles nossos vizinhos sul-americanos. As estatísticas discriminaram as procedências estrangeiras, mas não as do próprio Brasil nem as da Amazônia ou do Pará. Falha inadvertida ou proposital? A informação talvez nos levasse a concluir que muitos dos especialistas ou candidatos a salvadores da Amazônia prescindem dos nativos para desempenhar sua missão. Vieram até aqui mais para nos ditar regras do que tentar ouvir a voz local.

O que podiam dizer não é assim tão relevante quanto pensam. Tanto que nada de novo ou de forte foi dito. Cessada a agitação de feira, a Amazônia prossegue sua trajetória, como se o fórum não tivesse existido. Ou continuasse a existir para a confraria que o patrocinou, o cingiu aos escolhidos para receber o tratamento preferencial e o adornou com as fantasias da propaganda da esquerda oficial.

Se Davos é propriedade privada dos ricos, o FSM é uma marca dos que estabeleceram sua marca na oposição institucional aos poderosos.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).



Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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