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Centralização e descentralização no Império

Gildo Marçal Brandão - 1999
 

Nos últimos anos, um heterogêneo conjunto de pesquisadores, equipados com o instrumental analítico acumulado por décadas de ciência social institucionalizada, vem não apenas revisitando o ensaísmo dos anos 30, mas vasculhando a história intelectual do país e produzindo uma quantidade respeitável de análises, de pesquisas empíricas e historiográficas, que têm contribuído para renovar nosso conhecimento dos dilemas fundamentais da sociedade e da política brasileiras. Esboçado nos anos 50, tendo recebido notável impulso nos anos 70, esse campo de estudo chega à maturidade nos 90, constituindo-se num dos mais produtivos das ciências sociais no Brasil, haja vista não apenas o número de teses, dissertações e pesquisas que continua suscitando, mas sobretudo a sua riqueza qualitativa, o caráter extraordinariamente instigante de alguns de seus trabalhos.

Visto retrospectivamente, os seus contornos nunca foram muito claros: como se trata de uma área de fronteira, acolhendo orientações intelectuais provindas das diversas ciências sociais, o estudo do "pensamento social" se estabeleceu aqui, como em todo o mundo, no cruzamento de disciplinas tão variadas quanto a antropologia da cultura e a sociologia das instituições acadêmicas, a história das mentalidades e a sociologia dos intelectuais, a teoria política e a história das idéias e das visões-de-mundo. Essa pluralidade talvez fosse mais inevitável no caso de um país de capitalismo retardatário como o nosso, uma vez que o tratamento da literatura, da arte, da cultura e das ciências aqui praticadas acaba tendo uma importante dimensão política por força da relação urgente que se estabelece entre formação da cultura e formação da nação.

Como em todo lugar, muita coisa menor foi aí escrita, desde história das idéias que não passava de exposição monográfica do pensamento de um autor, sem a menor inquietação sobre a natureza da sociedade e do momento histórico do qual é expressão, até a pretensão de erigir a sociologia das instituições em sucedâneo da sociologia do conhecimento, de resolver o problema da qualidade e da capacidade analítica e propositiva de uma teoria pela enésima remissão ao grau de institucionalidade da disciplina ou província acadêmica onde ela surge. Isso sem falar nas tradicionais "explicações" de uma obra pela origem social do autor e nas moderníssimas reduções do conteúdo e da forma da produção intelectual às estratégias institucionais ou de ascensão profissional ou social das coteries.

Apesar disso, aquela diversidade favoreceu a acumulação de capital teórico e, de qualquer maneira, não impediu a cristalização de um campo intelectual relativamente diferenciado, que arrancava do reconhecimento de uma (rica) tradição de pensamento político no Brasil para fazer da reflexão sobre os seus "clássicos" - Visconde de Uruguai, Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Nestor Duarte, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, etc. - o instrumento para revisar inusitadamente a sociedade e a história que os produz. Ao lado da "expansão quantitativa da pós-graduação e a concomitante diversificação das formas institucionais que se operaram a partir de meados dos anos sessenta", a existência dessa tradição, em boa medida "anterior aos surtos de crescimento econômico e urbanização deste século, e mesmo ao estabelecimento das primeiras universidades", terá contribuído para a constituição e consolidação de uma Ciência Política relativamente autônoma no Brasil [1]. A reflexão sobre o pensamento político e social revelou-se entretanto demasiado rebelde para ser tratada como mera pré-história ideológica a ser abandonada tão logo se tenha acesso à institucionalização acadêmica da disciplina científica. Demonstrou-se ao contrário um pressuposto capaz de ser continuamente reposto pelo evolver da ciência institucionalizada - como um índice da existência de um corpo de problemas e soluções intelectuais, de um estoque teórico e metodológico ao qual os autores são obrigados a se referir no enfrentamento das novas questões postas pelo desenvolvimento social, como um afiado instrumento de regulação de nosso mercado interno das idéias em suas trocas com o mercado mundial.

Por outro lado, e talvez porque além de produzir "transparência sobre o real", aspire a ser "parte constitutiva dele" [2], o "pensamento político" foi capaz de formular ou de discriminar na política brasileira a existência de "estilos" determinados, formas de pensar extraordinariamente persistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada, estabelecendo problemáticas e genealogias que permitem situar e pôr sob nova luz muita proposta política e muita "análise científica" atual. Também aqui, como em outras partes do mundo, o esclarecimento das lutas espirituais do passado acaba se revelando um pressuposto necessário à proposição de estratégias políticas para o presente.

Assim, para tomar exemplos conhecidos, é possível situar o neoliberalismo atual numa linha de continuidade que vem do diagnóstico de Tavares Bastos sobre o caráter asiático e parasitário que o Estado colonial herdou da metrópole portuguesa, passa pela tese de Raymundo Faoro segundo a qual o problema é a permanência de um estamento burocrático-patrimonial que foi capaz de se reproduzir secularmente, e desemboca na proposta de (des)construção de um Estado que rompa com sua tradição "ibérica" e imponha o predomínio do mercado e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e "delegação". Da mesma forma, podemos ver nos trabalhos realizados por Wanderley Guilherme dos Santos e Bolívar Lamounier na virada dos anos 80, tanto marcos desse interesse acadêmico pela história intelectual brasileira como momentos de reelaboração das orientações ideais de correntes políticas socialmente enraizadas. Assim, enquanto o conceito de "autoritarismo instrumental" configurava uma versão espiritualizada e "neutra" da crítica saquarema ao utopismo dos liberais, a crítica à "ideologia de Estado" acentuava a oposição entre as propostas de organização da sociedade a partir do Estado ou do Mercado, de modo a recuperar a preocupação com a engenharia institucional dos "idealistas constitucionais". Enquanto um renovava pela esquerda o "idealismo orgânico" do Visconde de Uruguai e de Oliveira Vianna, o outro retomava implicitamente Tavares Bastos, pelo menos ao privilegiar a questão da forma de governo e ao considerar que as reformas políticas e somente elas seriam capazes de tornar representativa a democracia e desobstruir o caminho para as reformas econômicas e sociais. Posto isso, torna-se mais inteligível o modo como cada um deles se posiciona diante das mudanças políticas em curso e perceptível o grau em que expressam tendências sociais e não apenas acadêmicas ou individuais.

Se estamos condenados a compreender a evolução histórica e os dilemas políticos do país por meio de sua história intelectual ou a usar a história intelectual para compreender a evolução política, e se, para tanto, escolhemos enfatizar o aspecto racional e intelectual - e não tanto o "simbólico" ou a "mentalidade" - das visões de mundo, então não podemos dispensar a colaboração seja da teoria política, seja da análise das instituições. Por outro lado, os pesquisadores que aceitaram o desafio de se movimentar nessa zona de fronteira, reconheceram tanto a força da "forma narrativa específica" - o ensaio histórico sobre a formação nacional - que a tradição gerou [3], como a necessidade de submeter os textos e realidades pesquisadas ao tratamento e controle sistemático segundo os métodos de investigação especializada.

É aqui que se enquadra o livro que se vai ler. Tendo como base uma dissertação de mestrado, premiada como a melhor entre as defendidas em 1997 no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, Centralização e descentralização no Império - o debate entre Tavares Bastos e Visconde de Uruguai [São Paulo, Editora 34, 1999], de Gabriela Nunes Ferreira, constitui um exemplo do que de mais consistente se produziu até agora nessa área de pesquisa [4]. Tomando como objeto um tema diretamente relacionado com a organização do poder de Estado e examinando a relação entre os papéis e funções sociais a ele designados e os projetos civilizatórios que se apresentavam à elite política imperial, tal como formulados por esses dois autores paradigmáticos do período, Gabriela Nunes Ferreira faz um dos inventários mais completos e atuais do debate entre liberalismo e conservadorismo no Brasil.

A estrutura é bem armada. Começa situando os autores (que são também, cada um a seu modo, atores) e o momento histórico em que, superadas as lutas separatistas e esgotado o movimento de regressão centralizadora, renasce o debate ideológico sobre as alternativas de construção institucional no país. Com base nos seus livros, examina um por um os temas que perfazem o conteúdo do debate, cujo epicentro é a opção teórica e prática entre a centralização e a descentralização políticas e administrativas em suas várias dimensões: as relações que devem ser estabelecidas entre o poder central e os poderes provinciais, entre as instituições eletivas e as nomeadas, entre o Legislativo de um lado e o Executivo de outro, e sobre o papel que deve caber a um Judiciário forte numa ordem política encimada por um inusitado Moderador. Esclarecidos tais pontos, a análise avança para o restante da agenda política do período e, aí então, está pronta para tomar a questão central: o modo como cada um deles pensa a relação entre Estado e Sociedade, entre os modos de organização do poder público que estão propondo ou "transplantando" e os modelos de boa sociedade que almejam construir. Concluída a análise, o leitor é premiado com um comentário cuidadoso das notas e referências que Tavares Bastos e Paulino José de Souza fizeram da comum e distinta influência estrangeira fundamental - Alexis de Tocqueville e seu A Democracia na América -, que reposiciona todo o debate num contexto universal.

Além de estratégicos para o entendimento tanto do processo como dos projetos políticos do período, esses dois founding fathers do liberalismo e do conservadorismo no Brasil formularam alguma coisa de permanente, cujo sentido ultrapassa a época em que viveram e escreveram. Em muitos aspectos, o debate deles continua a ser o nosso e são vários os bons trabalhos sobre um ou outro, ou comparações alusivas, na medida em que as teses de Uruguai foram, como se sabe, integralmente encampadas por um Oliveira Vianna. Basta lembrar aqui as pioneiras observações de Guerreiro Ramos sobre o Visconde, a inquirição de Paulo Mercadante sobre a consciência conservadora no Império, as ponderações de Wanderley Guilherme dos Santos sobre as reificações institucionais em que sempre teriam incorrido os liberais, a anatomia que Ilmar Rohloff de Mattos fez do "tempo saquarema", o estudo de José Murilo de Carvalho sobre a homologia que se estabeleceu entre o caráter da elite política e a estrutura do Estado imperial, as reflexões de Luiz Werneck Vianna sobre o americanismo e o iberismo, a tese de Walquíria Domingues Leão Rego sobre o caráter descompassado ou tardio do liberalismo de Tavares Bastos, para só citar os que vêm imediatamente à memória.

Explícita ou implicitamente, Gabriela Nunes Ferreira dialoga com todas eles e tem sempre em vista a corrente majoritária, que acabou de certa maneira por constituir um "senso comum" da historiografia do dezenove brasileiro: liberais e conservadores concordaram no substantivo - no tocante aos limites que o conflito devia respeitar (a intocabilidade da escravidão, a preservação da unidade territorial), mas também quanto ao modelo de sociedade desejado - e discordavam no adjetivo, vale dizer, no "que fazer" para alcançá-lo. Qualquer que fosse o grau de (ir)relevância atribuído a essas diferenças e o requinte com que a tese vem demonstrada, é ela no fundamental compartilhada pelo marxismo tradicional - cuja percepção da exigüidade da base material do Império serviu para dar dignidade teórica à percepção dos contemporâneos segundo a qual "nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder" - e pelo elitismo analítico - que, pela direita ou pela esquerda, sempre valorizou a performance da elite política ou a engenharia institucional que garantiu a unidade territorial.

Nesse contexto, a grande virtude da autora é nos obrigar a olhar de novo os textos e os termos do debate, é desconfiar da afirmada "neutralidade" dos meios e observar a tendência dos meios se converterem, eles próprios, em fins. É reabrir, portanto, a conta dos objetivos "democráticos" dos "autoritários instrumentais", da suposta identidade de fins e diversidade de meios - e mostrar que, quando descemos das generalidades e estudamos os autores concretos, há diferenças nítidas sim, e não apenas táticas ou estratégicas, mas no conteúdo das visões de mundo, dos modelos de sociedade que cada um deles persegue.

Em vez de lidar com categorias genéricas, "modelos" interpretativos que explicam tudo ao preço de assemelhar dessemelhantes e assinalar diferenças onde elas são irrelevantes, Gabriela tem a pachorra de ir aos textos e de se deter nos argumentos específicos desse liberal e daquele conservador. Executa assim o programa de Mário Andrade, que desconfiava das generalizações apressadas e das críticas prematuramente sintéticas e que, em matéria de pensamento social e político brasileiro, mandava analisar autor por autor, quem sabe obra por obra, antes de se lançar às grandes construções típico-ideais. Não pára aí, entretanto. A estratégia andradina serve de ponto de partida, mas agora a pesquisa acumulada permite avançar além dos limites do modernista e a análise circunstanciada torna possível dar conteúdo positivo ao que não passava então de hipótese negativa: o que "ainda não existe" cede lugar ao exame das propostas concretas de sua criação e organização. Assim, o "estudo de casos" é não só guiado por uma hipótese global - sim, estamos diante de modelos de sociedade distintos e não apenas de diferenças de estratégias ou de propostas de organização estatal - como sua demonstração, longe de adiar, afirma a possibilidade da interpretação generalizadora.

Nesse caminho, a autora não polemiza excessivamente com ninguém ou o faz apenas o suficiente para estabelecer o seu ponto, sem se distanciar por um momento sequer de seu objeto, o exame detido dos escritos de Tavares Bastos e Visconde de Uruguai. Cientista política, há aqui algo do ascetismo intelectual que faz a marca do verdadeiro historiador, que generaliza apenas até onde os seus dados o permitem, mas ao não se recusar a generalizar fornece a chave para uma crítica realista do conjunto do processo. O resultado é um texto claro, conciso, elegante e, o leitor julgará, convincente.

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Gildo Marçal Brandão é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.

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Notas

[1] Conforme Bolívar Lamounier. "A ciência política no Brasil: roteiro para um balanço crítico". In: Bolívar Lamounier (Org.). A ciência política nos anos 80. Brasília: Editora da UnB, 1982, p. 407.

[2] Luiz Werneck Vianna. "A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa". In: Id. A revolução passiva - iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Revan/ Iuperj, 1997, p. 213.

[3] Lamounier, op. cit., p. 411.

[4] Um outro: a dissertação de Bernardo Ricupero, Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, recebeu menção honrosa e deverá também ser publicada em breve.

 



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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