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Nas fontes da Constituição de 1988

Fernando Perlatto - Abril 2009
 

Pilatti, Adriano. A Constituinte de 1987-1988. Progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2008. 334p.

Não há como pensar o Brasil após a redemocratização sem ter como marco a Constituição de 1988 e os enfrentamentos que foram travados em torno dela nos anos que se seguiram. Fruto das disputas ocorridas entre progressistas e conservadores, o texto saído da Constituinte abriu novas possibilidades para o aprofundamento da construção de uma esfera pública democrática no país, tornando-se, por este motivo, alvo central dos ataques daqueles que desejavam, a partir de reformas na "Constituição Cidadã", colocar o Brasil ao lado das nações consideradas "modernas". Adequar o Brasil ao moderno, por conseguinte, implicava a destruição da "Era Vargas", tida como superada, devido aos "entulhos" que permaneciam, em grande medida, na Carta de 88 e que impediam nosso andamento mais acelerado rumo ao mundo desenvolvido. Com aquele texto não se podia governar, como afirmara Sarney, impondo a necessidade de reformar a Constituição, que havia nascido, segundo seus críticos, na "contramão" da história, uma vez que aprovada em um contexto marcado pelo avanço do neoliberalismo em escala mundial.

Reconstituir os embates que envolveram a produção deste polêmico texto, entre 1º de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988, é a tarefa que se propõe Adriano Pilatti. Inspirando-se na tradição intelectual institucionalista e buscando investigar a hipótese segundo a qual o êxito de um bloco minoritário num conflito institucional relaciona-se diretamente com a capacidade de formação de coalizões ad hoc com dissidentes do bloco majoritário, Pilatti constrói um texto exemplar no sentido de demonstrar a capacidade, por parte da história institucional, de abrigar os temas da transformação e da mudança, quando "compreendida fora dos marcos do institucionalismo", como bem observado por Renato Lessa na "Apresentação" do livro (p. xiii). Escrita sob a influência dos Souvenirs, de Tocqueville - de quem o autor, inclusive, retira as citações que abrem os capítulos da obra -, e do Poder Constituinte, de Antonio Negri - de quem Pilatti retira noções como "momento propício", "aceleração e desaceleração do tempo" e termidor, assim como a percepção da "possibilidade de que certos textos e discursos sejam tomados como signo de transformação, por serem assim percebidos pelos seus respectivos movimentos" (p. 12) -, esta obra combina a dimensão analítica do pesquisador com a experiência de alguém que acompanhou cotidianamente o processo constituinte, atuando como assessor parlamentar da Câmara dos Deputados.

Em decorrência desta dupla condição, Pilatti consegue mesclar a ampla, acurada e detalhada pesquisa empírica com uma narrativa que, em determinados momentos, consegue transportar o leitor para a atmosfera de mobilização e polarização que se vivia naquele contexto de elaboração da Carta que selaria o fim da ditadura, inaugurando uma nova etapa na vida institucional do país. Ainda que permeada pela investigação secundária de muitos aspectos que perpassaram aqueles vintes meses de elaboração constitucional, o livro tem como objetivo analisar as disputas entre o bloco progressista - constituído pelos partidos PCB, PCdoB, PDT, PSB e PT, bem como pela "esquerda" do PMDB - e o bloco conservador - integrado pelo PDS, PFL, PL, PDC, PTB e pela fração "conservadora" do PMDB -, com o intuito principal de compreender a principal incógnita daquele processo, qual seja: uma Constituinte majoritariamente conservadora ter logrado produzir um texto progressista.

Dividindo sua obra em oito capítulos, nos quais se detém sobre o exame das fases que compuseram o processo constituinte - o estabelecimento dos procedimentos que iriam regular a Assembleia, as Subcomissões e Comissões Temáticas, a Comissão de Sistematização, a Reforma Regimental e a votação em plenário -, Pilatti estrutura seu trabalho sob a "forma geométrica", na medida em que busca combinar as perspectivas sincrônica e diacrônica, de modo a perceber as estratégias, decisões e os resultados sobre questões diferentes em uma mesma ou em distintas fases e /ou foros do processo. Para tanto, o autor elenca determinados temas - definição de empresa nacional; proteções ao capital nacional e ao acesso ao mercado nacional, inclusive no setor tecnológico; exploração dos recursos minerais e dos potenciais de energia hidráulica; monopólio do petróleo e das telecomunicações; reforma agrária; concessões de emissoras de rádio e televisão -, considerados por ele como essenciais para demarcar a polarização ocorrida entre progressistas e conservadores nas diferentes fases e nos 34 foros decisórios que compuseram a Assembleia Constituinte.

Como bem destacado por Pilatti, a Constituinte se estruturou desde seu princípio com o intuito de construir um texto que não alterasse profundamente o status quo, sendo composta por uma maioria conservadora, proveniente das eleições ordinárias ocorridas em 1986. A despeito das pressões exercidas pelos partidos de esquerda e diversos segmentos da sociedade civil organizada, a Constituinte - processo decisório de caráter extraordinário - foi composta por representantes que acumulavam mandato da política ordinária, configurando-se, dessa maneira, "um procedimento formal parlamentar desenvolvido no âmbito de uma instituição parlamentar constituída" (p. 2). A "atuação e a interferência de grupos de pressão, movimentos sociais, grupos econômicos, órgãos de formação da opinião pública e quaisquer outros atores exógenos, institucionais ou não", passavam, por conseguinte, necessariamente, "pelo filtro do mundo parlamentar, seu ethos e suas formas" (p. 2). Desde o início da obra, contudo, o autor faz questão de frisar que, não obstante seu caráter e sua composição conservadora (dos deputados e senadores constituintes, 306 pertenciam ao PMDB, 201 a partidos conservadores e 50 a partidos de esquerda), os constituintes construíram um texto voltado muito mais para a transformação do que para a conservação.

Nos dois primeiros capítulos, o autor procura analisar tanto o processo de estruturação e composição da Assembleia Nacional Constituinte, quanto as negociações para as indicações dos membros e os acordos para a eleição das Mesas e para a designação dos relatores das Subcomissões e Comissões Temáticas. A extensão e o detalhamento do processo e da respectiva agenda contribuíram significativamente para prefigurar o futuro texto nos moldes da constituição analítica, desejada, desde o início do processo, pelos progressistas. Desde o começo dos trabalhos da Constituinte, os partidos de esquerda passaram a receber acenos explícitos da ala "progressista" do PMDB, contribuindo para que o bloco progressista, em evidente processo de consolidação, passasse a contar com número significativo das Presidências das Subcomissões e das Relatorias dos foros e Comissões Temáticas, garantindo uma vantagem procedimental na definição da agenda deliberativa nas duas primeiras fases, capaz de compensar o modesto número de membros no decorrer do processo.

Os capítulos 3 e 4 são dedicados à análise da dinâmica decisória nas Subcomissões e Comissões Temáticas, consideradas estratégicas por Pilatti no sentido de perceber as disputas entre progressistas e conservadores. Nesta etapa, os conservadores buscaram enfraquecer o poder de agenda dos relatores progressistas através de diferentes mecanismos, logrando vetar seus Anteprojetos e a maioria das suas propostas. Apesar desta ofensiva conservadora, é importante ressaltar que os progressistas, explorando brechas procedimentais, conseguiram incluir na agenda constitucional temas e propostas do seu interesse. Conforme destacado pelo autor, ao término destas primeiras fases da Constituinte, ficava clara a capacidade do bloco progressista para, em circunstâncias favoráveis, vetar propostas do bloco conservador, e a dificuldade, por parte deste, mesmo com maioria de dois terços, de dispor da força propositiva necessária para aprovar suas propostas.

Pilatti acompanha no decorrer do Capítulo 5 a fase de centralização do processo constituinte, que se consubstanciou nos trabalhos da Comissão de Sistematização, composta por apenas 93 constituintes. A dinâmica estabelecida nesta fase permitiu que a balança pendesse significativamente para as expectativas dos progressistas. Com as diversas dificuldades que levavam o processo constituinte a adquirir uma morosidade inquietante, as lideranças viram-se diante do imperativo de buscarem construir consensos, configurando um cenário favorável para os progressistas, que se encontravam em menor número. Como destaca Pilatti, as propostas aprovadas na Comissão de Sistematização foram as mais próximas das preferências progressistas com relação a diversas temáticas, inclusive aquelas relativas à reforma agrária.

A reação dos conservadores diante do êxito progressista na Comissão de Sistematização não tardou e configurou o desenho do quadro da próxima fase do processo, marcada pelas mobilizações conservadoras no sentido de alterar o Regimento Interno e neutralizar os resultados alcançados pelos progressistas na fase anterior, sobretudo através da formação do Centrão, que acabou por se constituir, de acordo com o autor, na "mais completa tradução do partido da ordem na Constituinte" (p. 313). Os capítulos 6 e 7 dedicam-se a compreender a dinâmica do Centrão, evidenciando que a articulação do bloco conservador não resultou em uma maior capacidade de apresentar novas propostas na primeira etapa das votações em plenário, a despeito de ter obtido na fase anterior, a partir da reforma regimental, a prioridade de fazê-lo. A derrota do Centrão na votação do direito de propriedade, considerado como um tema de importância crucial para o partido da ordem, produziu o primeiro buraco negro do processo constituinte. A solução dos impasses ali gerados ocorreu através da volta à cena dos líderes de todas as bancadas, que, estabelecendo negociações e acordos através do uso intensivo das fusões de emendas e com o respaldo do Presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, lograram dar prosseguimento ao processo, garantindo a aprovação de um texto que continha avanços significativos para o campo progressista.

Convém ressaltar, não obstante, que esta fase do processo constituinte foi marcada por duas derrotas significativas do campo progressista, em decorrência de pressões de dois atores extraparlamentares, que tiveram profundas consequências em seu desdobramento. Por um lado, a mobilização da União Democrática Ruralista (UDR) contribuiu decisivamente para a derrota dos progressistas no texto referente à reforma agrária, configurando um retrocesso no tratamento constitucional da questão agrária até mesmo quando comparado ao texto da Carta outrora em vigor do regime militar. Por outro lado, a interferência constante e crescente do Governo Sarney - confirmando um quadro que se delineou no decorrer de toda a Constituinte, marcado pela sobreposição da política ordinária à política extraordinária - assegurou a vitória da coalizão conservadora-governista no que tange ao mandato presidencial. Diante destas duas derrotas - que produziram o que Pilatti denomina como termidor -, fortaleceu-se no PMDB um quadro insustentável para o seu líder, Mário Covas, resultando na sua saída do partido com algumas dezenas de constituintes. Isso desaguaria na criação do PSDB e no enfraquecimento do bloco progressista.

Apesar destas derrotas significativas do campo progressista, o texto aprovado no primeiro turno foi bastante além daquele desejado pelo partido da ordem, não sofrendo alterações significativas no segundo turno das votações, conforme o autor analisa no capítulo oito. Pilatti conclui sua obra destacando o fato de a Assembleia Nacional Constituinte ter se libertado dos desígnios de seus primeiros criadores conservadores - cujo objetivo era estruturá-la de modo a atender os interesses do partido da ordem -, tendo oferecido ao país um texto muito mais próximo do modelo desejado pelas forças progressistas minoritárias. O autor reafirma sua tese da prevalência do processo decisório "endógeno" para explicar o paradoxo de uma constituinte conservadora ter parido uma Constituição Cidadã. Talvez uma pesquisa mais detalhada em torno da pressão sobre os constituintes exercida pelas emendas populares - que recebem pouca atenção na obra de Pilatti -, bem como pelos movimentos sociais organizados pudesse contribuir para relativizar este peso excessivo conferido aos fatores endógenos. Ainda que recheada pelos elementos da retórica, a fala de Ulysses Guimarães na conclusão dos trabalhos constituintes - segundo a qual a Constituição promulgada traria em seu bojo "sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores" -, tantas vezes citada por Pilatti no decorrer do texto, pode servir como uma pista a indicar que a pressão popular exerceu um papel, se não maior, ao menos de igual monta em relação aos fatores institucionais e à pressão extraparlamentar conservadora da UDR e do governo Sarney.

Apesar desta ressalva, fato é que a obra de Pilatti fornece uma contribuição decisiva para a compreensão da aparente incongruência de um texto progressista ter sido formulado por uma Constituinte majoritariamente conservadora, bem como dos motivos que levaram muitas das propostas contidas na Carta de 88 terem sido consideradas pelas forças conservadoras, nos anos seguintes, como os principais entraves para o desenvolvimento do país. Além disso, seu livro nos fornece pistas para compreender de que forma os zigue-zagues da história fizeram com que aquele que foi uma das figuras mais destacadas da Constituinte - Fernando Henrique Cardoso - executasse um programa no sentido de reformá-la abruptamente, e com que aquele que representou um setor expressivo que recusou a Carta de 88, taxando-a de conservadora - Lula -, se transformasse em um dos principais defensores dos pontos ali contidos, fazendo reviver diversos elementos da Era Vargas.

Os mesmos zigue-zagues da história, que levaram uma Constituinte majoritariamente conservadora a formular um texto progressista, conduziram nas eleições presidenciais de 1989 à derrota das forças progressistas; estas últimas não lograram aproveitar o contexto aberto pela Constituição de 1988, favorável a mudanças capazes de ampliar a democracia e a esfera pública, diante dos imperativos da dimensão autorreferida do mercado. A despeito das tentativas de reformas do texto constitucional, algumas vezes bem-sucedidas, ele ainda continua a fornecer garantias e caminhos frutíferos - principalmente através do estabelecimento de mecanismos que permitiram a democratização do acesso à Justiça e daqueles dedicados à participação popular -, capazes de possibilitar aos setores subalternos travarem as disputas colocadas em uma sociedade que, apesar da retórica do "fim das ideologias", continua profundamente marcada pela divisão entre conservadores e progressistas. O livro de Pilatti é uma ferramenta importante para estes últimos na batalha ainda em curso.

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Fernando Perlatto é mestrando em Sociologia do Iuperj e pesquisador do Cedes (Centro de Estudos Direito e Sociedade).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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