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Confusão à esquerda

Caetano Araújo - Maio 2009
 

Desde a falência repentina do socialismo real um estado de profunda e persistente confusão espalhou-se pelo campo da esquerda. As velhas receitas morreram e as novas ainda não surgiram. A maior parte das reações a essa situação apoia-se em avaliações tímidas do processo, que se recusam a chegar às últimas consequências dos fatos e resultam, normalmente, no uso obstinado de palavras de ordem obsoletas como escudo contra as evidências da nova realidade. Tudo isso mantém e amplia a confusão.

Vejo um exemplo ilustrativo dessa situação no artigo recente de José Dirceu, publicado na Folha de S. Paulo em 17 de abril, em polêmica com artigo anterior de Alberto Goldman.

Que diz Dirceu? Em síntese, que o PT nunca defendeu o modelo político de partido único, típico do socialismo real; que, pelo contrário, sempre defendeu a democracia; e, finalmente, que se mantém no horizonte do socialismo. O PSDB, por sua vez, seria um partido neoliberal, comprometido com a manutenção do capitalismo, que teria deixado um legado de pobreza, privataria e supressão de direitos dos trabalhadores.

Vou deixar de lado, no momento, os pontos em que as declarações de Dirceu entram em guerra com os fatos, como o alegado empobrecimento da população brasileira no governo tucano, para discutir seu argumento central: a permanência do PT no horizonte do socialismo.

O argumento poderia ter algum sentido se o conceito de socialismo como projeto político, social e econômico fosse claro e inequívoco. Na verdade, ocorre o oposto: o conceito de socialismo hoje é ambíguo, incerto, e abriga propostas e estratégias amplamente diferenciadas.

Enquanto existiu fora dos livros, o socialismo foi definido por duas características, relacionadas de muitas maneiras entre si: o sistema político de partido único e o controle estatal sobre os meios de produção, com a substituição do mercado pelo planejamento centralizado.

Pois bem, o sistema de partido único persiste em alguns países egressos do socialismo real, como China, Vietnã, Coreia e Cuba. O controle estatal sobre os meios de produção teve sorte ainda pior. Desapareceu da China, do Vietnã, e encontra-se hoje em franca derrocada em Cuba.

Nesse caso, que significa o horizonte do socialismo afirmado no texto do Dirceu? Operação do mercado sem freios sob a gerência do partido único? Não.

Dirceu reitera, como vimos, a rejeição do PT à experiência política da União Soviética e demais países socialistas. A alternativa, por exclusão, parece ser: democracia política mais controle estatal dos meios de produção. Em outras palavras, a expansão lenta, gradual e segura do Estado na esfera econômica.

Se socialismo é isso, novos problemas aparecem. Em primeiro lugar, esse socialismo está na contramão de toda a história recente, e sequer a crise econômica atual permite perceber alguma pista para o retorno ao mundo não-globalizado. Em segundo lugar, embora essa leitura do texto de Dirceu seja coerente com o discurso da campanha petista de 2006, está longe de refletir as opções políticas do governo nos dois mandatos do Presidente Lula.

Admitamos, por hipótese: tucanos são privatistas e petistas são estatistas. Houve alguma reestatização no governo Lula? Não, pelo contrário, o governo Lula beneficiou-se claramente das privatizações feitas no período Fernando Henrique.

Como entender essa dissonância entre o dito e o feito? Na tradição da esquerda é comum o recurso ao argumento etapista. Nessa linha, as condições objetivas impediriam a execução de objetivos programáticos mais ambiciosos, e seria preciso, por um tempo, permanecer restrito a metas mais modestas. No limite, o governo Lula seria visto como uma necessária etapa neoliberal da revolução brasileira. É possível que alguns dos partidários do governo assim pensem.

Para aqueles que não aceitam esse argumento, a alternativa é exigir, do PT e do governo, um ajuste de coerência. Há aqueles que reivindicam o ajuste pela prática: façam o que dizem! Há que estatizar, então estatizemos.

Outros, na minha opinião aqueles que extraíram todas as lições do desmoronamento do socialismo real, justamente porque o acompanharam até a tentativa final de autorreforma, demandam o ajuste pelo discurso: Digam o que fazem! Assumam que estão no campo da democracia e do mercado; que socialismo, nesse campo, só pode significar distribuição de propriedade e renda, como antes, mas também e cada vez mais de conhecimento, poder, deveres e responsabilidades; e que o instrumento para tal é o Estado, mas um Estado reformado, de novo tipo.

A partir dessas premissas podemos discutir a continuidade e a mudança entre o atual governo e o anterior; onde houve avanço e onde retrocesso; a construção do consenso sobre uma nova agenda da esquerda e a redução da confusão. O resto são projetos de eleição e de poder, com os conhecidos temperos do salvacionismo e da demonização do adversário.

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Caetano Araújo, professor do Departamento de Sociologia da UNB, é presidente da Fundação Astrojildo Pereira e editor da revista Política Democrática. Texto originalmente publicado em Debater.



Fonte: Debater & Gramsci e o Brasil.

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