Busca:     


O pós-comunismo na Itália

Roberto Gualtieri - Maio 2010
Tradução: Tilda Linhares
 

O pós-comunismo italiano constitui sem dúvida um case study inteiramente peculiar no contexto do processo de transformação do panorama político europeu iniciado pela queda do Muro de Berlim. Fora da Itália, de fato, o comunismo se tornara irrelevante em toda a Europa Ocidental bem antes de 1989 e, consequentemente, naquela parte do continente os eventos daquele ano não produziram grandes mudanças nem nos sistemas políticos dos diferentes países, que conservaram a morfologia e as dinâmicas precedentes, nem nos partidos comunistas ocidentais, que geralmente não modificaram sequer o seu nome e simplesmente viram acelerar seu declínio. Apesar do fato de o Partido Comunista Italiano, como todos os partidos comunistas a oeste da cortina de ferro, a partir de 1947 ter ficado ininterruptamente fora do governo, aqui existem algumas analogias com o que aconteceu na Europa Oriental. Também na Itália, de fato, o PCI mudou de nome e passou a fazer parte da Internacional Socialista; o velho sistema político entrou em colapso e foi substituído por um novo ordenamento, para o qual cabe perfeitamente a descrição que Vasselin Dimitrov dá dos partidos políticos da Europa Oriental ("instabilidade organizativa e ideológica, incapacidade ou falta de vontade de elaborar programas políticos precisos, direção personalista, ausência de enraizamento na sociedade" [1]); o princípio de alternância se tornou realidade depois de 45 anos de hegemonia de um só partido, assumindo uma forma extrema a ponto de nenhum partido nunca ser capaz de vencer eleições por duas vezes consecutivas; por fim, o grupo dirigente pós-comunista esteve entre os protagonistas dos acontecimentos políticos do país, participando do governo e elegendo um primeiro-ministro, um presidente da República e inúmeros ministros nos governos de centro-esquerda.

Todavia, à diferença daquilo que ocorreu em muitos países pós-comunistas da Europa Oriental, o PDS-DS [Partito Democratico della Sinistra–Democratici di Sinistra] não construiu para si uma clara identidade social-democrata, nunca conseguiu um forte apoio eleitoral - girando em torno de 16% dos votos - e só constituiu maioria em coalizão com outros partidos, com os quais em 2007 deu vida ao novo Partido Democrático (no qual a direção ex-comunista permanece de todo modo predominante). Aqui não é o lugar para discutir se este resultado na transição pós-comunista na Itália pode ou não ser considerado positivo. Na comparação com outros partidos comunistas ocidentais, pode-se afirmar que foi sem dúvida um sucesso, mesmo que as diferenças entre o Partido Comunista Italiano e os outros partidos comunistas se referissem à realidade anterior a 1989; nas eleições de 1976, o PCI conquistara 34% dos votos, que não só é igual ao dobro do consenso médio obtido pelo PDS/DS, mas é também superior aos 33,1% alcançados pelo Partido Democrático nas últimas eleições políticas. Por outro lado, se se compara o pós-comunismo italiano com aquele dos países do Leste, sua identidade política se revela menos definida e suas performances não podem ser consideradas em geral melhores (ainda que, no momento, os partidos pós-comunistas do Leste se encontrem em condições muito diversas e só alguns deles tenham consolidado o próprio papel e a própria força eleitoral e política, como indicam os casos da Polônia e da Bulgária, com uma firme e repentina queda de consenso de ambos os partidos socialistas, para não falar da exceção da República Tcheca, na qual o Partido Comunista não mudou de nome e o Socialista não é uma formação pós-comunista).

A verdade é que o pós-comunismo italiano dificilmente pode ser assimilado quer às experiências ocidentais, quer às da Europa Centro-Oriental, e sua parábola não pode ser compreendida fora de um exame da originalidade do caso italiano e das peculiaridades da história do nosso país. Isso imporia examinar tanto os elementos subjetivos (antes de tudo, o pensamento e a ação política de Gramsci e de Togliatti), quanto os objetivos (a partir da limitada integração das massas ao Estado depois da Unidade e da falta de hegemonia das classes dominantes italianas), que favoreceram o crescimento de um forte Partido Comunista na Itália pós-bélica, conferindo-lhe a possibilidade de "ocupar" grande parte do espaço político e eleitoral da social-democracia. O PCI foi um partido comunista (o que, para os colegas estrangeiros, pode parecer uma tautologia, mas não o é no debate político e histórico italiano), e isso não diz respeito só ao seu nome, que só mudou depois da queda do Muro de Berlim, mas ao fato de que nunca cortou completamente a relação com a União Soviética e o movimento comunista internacional (embora a partir de 1981 o conflito político com a URSS tenha se tornado cada vez mais áspero) e nunca rompeu inteiramente os laços ideológicos com o comunismo. Ao mesmo tempo, o PCI foi incontestavelmente um dos protagonistas da fundação, do enraizamento e da defesa da democracia na Itália, e contribuiu em medida considerável para o crescimento econômico, social e civil do país, desempenhando uma função que se poderia definir, sob muitos aspectos, "reformista" e social-democrata; ainda que, vendo-se bem, o reformismo do PCI na Itália sempre tenha sido uma espécie de "reformismo passivo", que, à diferença do que aconteceu em nível local, jamais se tornou um reformismo de governo. Investigar estas características peculiares e suas razões profundas é uma tarefa que supera um breve ensaio como este, e de resto sequer é necessário, porque a historiografia tratou muito da questão e, sobretudo nos últimos anos, com bons resultados. O escopo que nos propomos é mais limitado e consiste em analisar de modo sintético, mas exaustivo, como o PCI interpretou 1989, como reagiu à queda do comunismo e quais bases culturais e políticas a guinada de 1989 ofereceu à transformação do PCI num novo partido.

Os dirigentes do PCI foram pegos de surpresa pela queda do Muro. Apesar disso, interpretaram aquele evento como uma "revolução democrática". Como declarou o então secretário do partido, Achille Occhetto, estava em curso uma transformação democrática, promovida pelas forças da mudança, a qual demonstrava que o PCI não tinha "nada a ver" com o comunismo do Leste e, aliás, tivera razão em sublinhar o "valor universal da democracia" (uma fórmula adotada por Enrico Berlinguer nos anos setenta). Sobretudo, segundo Occhetto, a revolução democrática tinha um caráter progressista, porque rompia o bipolarismo internacional criado em Yalta, desobstruindo o caminho para novas políticas tanto no sistema internacional quanto na Itália. De fato, a seu juízo, a esquerda internacional fora sufocada pelo bipolarismo e pela Guerra Fria, cujo fim reabria a possibilidade de transformar, tanto no Oriente quanto no Ocidente, o "modelo social e político dominante" [2].

Ao delinear uma interpretação e uma reação a 1989, um grande papel foi paradoxalmente desempenhado pela forte ligação que unia Achille Occhetto e Mikhail Gorbachev. Nos anos precedentes, a esperança de um sucesso do projeto de reforma do comunismo iniciado por Gorbachev contribuíra para adiar o debate sobre a identidade e o nome do partido. Occhetto parecia concordar com algumas características importantes da segunda fase do "gorbachevismo", vale dizer, a importância conferida à prioridade de uma reforma democrática em relação a uma reforma econômica e às questões sociais, bem como à focalização da atenção mais no sistema internacional do que nos problemas internos, como se a revolução sistêmica produzida no final da Guerra Fria no sistema internacional e na Itália pudesse, em alguma medida, compensar a fragilidade da União Soviética e do PCI, favorecendo sua transformação e a busca de um novo papel hegemônico. Nem todos na direção do partido compartilhavam aquela interpretação de 1989 e os variados elementos que com ela se misturavam: omissões, wishful thinking, radicalismo de esquerda e paradigmas neoliberais. No entanto, ninguém foi capaz de dar uma base mais sólida e realista à mudança do partido, até porque a repentina proposta de Occhetto de "abertura de uma fase constituinte" para dar vida a "um novo sujeito político" fez surgir uma forte oposição dentro do partido, a tal ponto que os outros dirigentes favoráveis à mudança tiveram receio de que pôr em discussão as bases analíticas da "virada" teria comprometido seu resultado.

Não se pretende aqui retomar a discussão sobre o fato de que 1989 possa ou não ser considerado uma revolução. A meu ver, tal definição não seria adequada, não tanto por causa de uma subestimação da mudança que se verificou, mas porque tal mudança pareceu se dever mais ao que Albert Hirschmann definiu como exit (vale dizer, a saída unilateral de uma relação social e política, simbolizada neste caso pela travessia do Muro) do que a uma tentativa consciente (e bem-sucedida) de tomada do poder por parte de uma força revolucionária capaz de transformar a sociedade e o Estado [3]. Além disso, como muitos observaram, ambas as estratégias, exit e voice (isto é, na conceituação hirshmanniana, a ação de protesto e de combate contra o poder constituído voltada para mudar os termos de uma relação social e política), realizaram-se e tiveram sucesso graças ao duplo efeito do colapso do comunismo na Europa e da atração exercida pelas sociedades ocidentais, sobretudo pela "economia social de mercado" da Alemanha Ocidental, em relação à República Democrática da Alemanha e à Hungria.

A interpretação de 1989 como revolução democrática revela-se, portanto, unilateral e inadequada: ela teve, de fato, consequências importantes sobre a "virada" do PCI. Em primeiro lugar, permitiu ao partido evitar uma discussão sobre o papel desempenhado na queda do comunismo pela social-democracia ocidental, na medida em que ela esteve entre os protagonistas do compromisso que dera vida à "economia social de mercado". Ao contrário, a interpretação de Occhetto nascia de uma versão de esquerda do emprego do paradigma do totalitarismo, baseado na dicotomia de matriz liberal entre Estado e sociedade civil. A centralidade daquele paradigma permitiu uma substancial continuidade com a plataforma do XVIII Congresso, que se desenrolara na primavera de 1989 e no qual Occhetto havia vaticinado uma nova estratégia, fundamentada na "democratização integral" do mundo e da sociedade italiana, como base da identidade do novo PCI nem comunista nem social-democrata.

A transformação do PCI num partido novo, pois, mostrava-se baseada num entrelaçamento de neoliberalismo e democratismo de matriz jacobina e politológica, cuja proveniência podia ser identificada mais na possibilidade de transformar o sistema político italiano em consequência do fim do bipolarismo internacional do que na necessidade de inovar a cultura política do partido. Se se lê o discurso de Occhetto na reunião do Comitê Central de novembro de 1989, encontra-se uma expressão recorrente (Occhetto repete-a seis vezes): "desbloquear o sistema político", como objetivo principal e característica fundamental da fase constituinte proposta, que era entendida não só como mudança do nome e do programa do partido, mas, sobretudo, como reconfiguração geral do panorama político. Para fazer isso, era necessário "construir algo realmente novo", cujas características permaneciam no entanto vagas.

O procedimento adotado pelo PCI para operar a mudança do nome foi muito longo e se fez necessário um ano e meio e dois congressos para assistir ao nascimento do Partido Democrático da Esquerda, nome que fora proposto alguns meses antes da queda do Muro de Berlim por Salvatore Veca e Michele Salvati [4]. A fragilidade da base cultural do novo partido produziu um paradoxo: o PDS surgia como uma versão reduzida do PCI; nenhuma nova força política ou social significativa aderiu à fase constituinte, muitos eleitores e filiados abandonaram o partido, e o poder permaneceu solidamente nas mãos da direção ex-comunista. Ao mesmo tempo, no aspecto político e cultural, a "descontinuidade" (como a definia Occhetto) com o passado era completa, não só em relação à identidade ideológica comunista, mas sobretudo em relação à cultura política substancialmente social-democrata do PCI. A consequência foi a adoção de um programa inspirado pela tradicional crítica de matriz neoliberal à Primeira República e ao seu estatismo, centralismo e consociativismo. De fato, o primeiro ponto daquele programa previa uma reforma da Constituição para dar maiores poderes ao governo e uma mudança da lei eleitoral que introduzisse um prêmio de maioria à coalizão vencedora (que é, exatamente, uma lei semelhante à introduzida pelo governo Berlusconi em 2005), de modo a realizar, em observância à teoria da democracia imediata, uma forma sub-reptícia de eleição direta do governo e do primeiro-ministro. O segundo ponto dizia respeito à modificação do Título V da Constituição italiana, para criar um substancial federalismo, atribuindo às Regiões a função legislativa em todas as matérias não reservadas expressamente ao Estado; em paralelo, coerentemente com os ditames do modelo neoparlamentar de democracia imediata (um modelo de matriz jacobina estranho ao constitucionalismo liberal-democrata e à centralidade por ele reservada à construção de um sistema de pesos e contrapesos), introduzia a eleição direta do presidente da Região e da sua maioria. O terceiro ponto, enfim, previa a privatização de parte dos serviços públicos e uma simplificação administrativa que conferisse liberdade de ação aos sujeitos privados [5].

Como se vê, também deste ponto de vista não faltam algumas analogias com o caráter neoliberal da transição pós-comunista na Europa Oriental e na União Soviética. Na realidade, depois da derrota nas eleições de 1994 o PDS empreenderia um novo curso que almejava a construção de uma moderna cultura política reformista baseada numa interpretação diferente e mais adequada do período republicano, da história do comunismo italiano e internacional, bem como dos eventos de 1989. Mas a mistura de jacobinismo político e de neoliberalismo cultural que caracterizara o ato de nascimento do novo partido condicionou pesadamente este percurso, retardando o processo de edificação de um grande sujeito político de tipo europeu, capaz de unir as diferentes culturas reformistas do pais num grande partido nacional, popular e democrático, contribuindo deste modo para a afirmação de um papel hegemônico de Silvio Berlusconi e da centro-direita na política italiana.

----------

Roberto Gualtieri é parlamentar europeu do Partito Democrático e vice-diretor da Fundação Instituto Gramsci. Esta intervenção foi apresentada no seminário "Twenty Years after the Fall. A Reappraisal of 1989" (Roma, 9-10 de outubro de 2009) e publicada em Italianieuropei, n. 5, 2009.

----------

Notas

[1] Cf. o paper de V. Dimitrov, "Post-Communism in East Central Europe", apresentado no citado seminário "Twenty Years after the Fall. A Reappraisal of 1989".

[2] Cf. as conclusões de Achille Occhetto na reunião do CC do PCI de 20-24 de novembro de 1989. In: Documenti per il Congresso straordinario del PCI. Roma: Edizioni l’Unità, 1990, v. 2, p. 157-69.

[3] Cf. A. O. Hirschmann. Lealtà, defezione e protesta. Milão: Bompiani, 1982.

[4] M. Salvati e S. Veca. "Cambiare nome. E se non ora quando?". Rinascita, 29 jul. 1989, p. 35-8.

[5] Partito Democratico della Sinistra. LÂ’Italia verso il 2000. Analisi e proposte per un programma di legislatura. Roma: Riuniti, 1992, p. 51, 57, 64, 66 s.



Fonte: Italianieuropei & Gramsci e o Brasil.

  •