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Viagem aos anos de chumbo

Luiz Sérgio Henriques - Junho 2010
 

Nunca é fácil voltar aos anos de chumbo - por definição, um tempo de ferro e fogo, de mulheres e homens "partidos", e aqui a metáfora drummondiana sai da literatura e adquire a cruel realidade de corpos dilacerados e, pior ainda, de "mortos sem sepultura".

Este último tema - referente àqueles sobre cuja morte ainda desce um véu mais ou menos denso de ignorância e cujos restos ainda não encontraram sequer a mera reparação do enterro decente - remete-nos violentamente a um plano além da política. Chorar e enterrar os próprios mortos está na base da convivência humana, tal como a concebemos. E sobre isso não é possível transigir. Antígona que o diga.

Mas não é fácil voltar. Desde logo, porque também é imperioso outro plano de análise mais diretamente prático e mundano, que, sem cancelar de modo algum aquela dimensão simbólica previamente dada, nos remete à realidade rebelde das orientações de valor, das opções e ações políticas feitas por indivíduos de carne e osso em contextos determinados. E neste aspecto a esquerda brasileira, de um modo geral, ainda precisa se debruçar sobre si mesma e examinar ações e personagens que lhe são caros, mas muito provavelmente são limitados e circunscritos, se é que nos movemos - e queremos nos mover - no plano contemporâneo da democracia.

Os anos de chumbo marcam também, entre nós, o surgimento do período moderno da política brasileira. De fato, esta política nasce, contraditoriamente, num contexto de modernização autoritária da economia e da sociedade implementada pelo regime militar. Um autoritarismo que se acentuou, obviamente, a partir de 1968, mas mesmo então nunca configurou uma ordem sem brechas ou fissuras, com arregimentação "total" da sociedade à moda fascista. Uma ditadura "desenvolvimentista", e não desindustrializante, como em outros casos simultâneos da América Latina, e na qual conviveram, na maior parte do tempo, uma precária legalidade constitucional e a realidade, bruta por natureza, dos atos institucionais.

A mudança social impetuosa - mesmo que dirigida "por cima" - foi a marca de um país que se tornava cada vez mais complexo e potencialmente insubmisso aos constrangimentos do autoritarismo. Os sinais desta insubmissão brotavam de muitos lados, alguns insuspeitados. As eleições eram momentos certos de crise de legitimidade, e isso desde os primeiros momentos do regime, como demonstrado cabalmente pela eleição de governadores moderada, mas efetivamente, oposicionistas em 1965 e pela constituição da "frente ampla" de líderes civis deslocados pelo regime militar, inclusive importantes personalidades conservadoras e mesmo da direita política, como o governador Lacerda.

A sequência de atos institucionais curiosamente não impediu - e não podia mesmo impedir - a expansão quantitativa do corpo eleitoral em níveis inéditos, resultado evidente do alistamento e do voto obrigatório. Um fato que, por si só, tinha efeito explosivo sobre as possibilidades de autorreprodução do regime e forçava, quase por inércia, os limites e obstáculos impostos à competição eleitoral – salvo nos casos em que, como em 1970, parcela substancial da esquerda denunciou equivocadamente a participação nas eleições e dirigiu sua crítica, muitas vezes duríssima e desqualificadora, contra o "reformismo" e o "eleitoralismo", apostando todas as fichas numa suposta "forma superior de luta". Referimo-nos, evidentemente, à miragem revolucionarista da luta armada, com seus mitos, seu voluntarismo e - digamos diretamente - o reforço involuntário proporcionado às estruturas da repressão política e aos setores mais duros do regime, quando menos por estimularem na população, e isso na hipótese melhor, a admiração passiva diante da ação de uns poucos heróis e de vanguardas populares autoproclamadas.

Cabe mencionar que não só o mundo da política aos poucos se reconstituiria, resistindo às cassações, aos exílios e aos breves, mas difíceis, períodos de fechamento do Congresso. Em outro âmbito decisivo das relações de força, o fato é que também os sindicatos, em circunstâncias extremamente adversas, puderam na maioria dos casos seguir existindo nos marcos consentidos de uma ação "assistencial" - pelo menos na aparência. Pois facilmente se constata que, quando uma economia industrial se moderniza, mudando toda a composição social, inevitavelmente concentra grandes massas operárias, como no ABC, e aquele assistencialismo inicial, mediante paciente ação dirigente, só pode encorpar-se numa moderna luta por direitos, protagonizada por um associativismo autônomo, amparado por advogados, economistas e profissionais de outro tipo, como no exemplo histórico do Dieese.

Acredito ter descrito, sumariamente, um mundo bem estranho ao que podia conceber a esquerda armada daqueles anos, com sua exaltação da violência como "parteira da história" e da substituição do Estado burguês segundo um leninismo (ou um guevarismo) empobrecido, rumo a algo que costumava atender pelo nome - muito incômodo! - de "ditadura do proletariado".

Pode-se dizer que ninguém mais fala em luta armada. Verdade. Pode-se dizer, também, que ninguém defende "ditaduras progressistas", embora, em nuestra América, o pecado more ao lado e nem todos saibam resistir à tentação. Seja como for, resta por fazer um exame rigoroso de velhas categorias, que, desconfio, talvez resistam sob nova aparência. Se isso for verdade - se a esquerda ainda não tiver esboçado os contornos de uma novíssima trama de conceitos políticos baseada na paz e nos direitos -, toda volta ao passado de chumbo e toda exigência de reparação correm o risco de se perder em recriminação facciosa ou irrealista, alheia aos valores universais que deveriam constituir uma esquerda democrática.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Estado de S. Paulo, 2 jun. 2010.

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