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O enigma da democracia, segundo Lefort

Marilena Chauí - Novembro 2010
 

Luciano Oliveira. O enigma da democracia. O pensamento de Claude Lefort. Piracicaba: Jacintha Editores, 2010. 128p.

Claro, preciso e conciso. Estes qualificativos não são pequenos para referir-se ao trabalho de Luciano Oliveira quando consideramos as peculiaridades do pensador a que este livro se dedica. De fato, como salienta Oliveira, Claude Lefort é "um autor dotado do senso da fórmula e do paradoxo", um pensador que, em lugar de definições e respostas, nos convida à interrogação, um escritor, cujas longas frases e longos parágrafos, num desenvolvimento espiralado interminável, exigem atenção redobrada do leitor, que se vê diante da complicação em ato. Em suma, um "pensador da indeterminação".

Podemos descortinar neste livro três linhas de reflexão: uma delas, biográfica, acompanha a formação filosófica e política de Claude Lefort, a partir das ideias vindas da fenomenologia de Merleau-Ponty e do marxismo; uma outra, apanha a diferença entre Lefort e os modismos intelectuais franceses dos anos 1960-1980, quando imperavam o marxismo althusseriano e o fervor pelos "pensadores da suspeita" (Nietzsche, Marx e Freud); a terceira nos leva ao núcleo da obra lefortiana como pensamento da democracia. Essas três linhas se entrecruzam e incidem umas sobre as outras, dando-nos a ver um filósofo se fazendo (para usamos aqui uma expressão merleaupontyana).

Da fenomenologia, Lefort conserva a interrogação do sentido ou a busca do ser do político, do social, da experiência. Discípulo de Merleau-Ponty, desconfia das teorias, do "pensamento de sobrevoo" que pretende oferecer a explicação sistemática e completa da realidade, incapaz de ver tudo quanto não seja iluminado pela luz ofuscante irradiada dele mesmo. Do marxismo, guarda a exigência de compreender "a experiência de nosso tempo", a luta de classes e o desejo de emancipação, mas afasta-se de Marx não só porque considera impossível a supressão do conflito instituído pela divisão originária da sociedade como também julga que suprimi-lo é cair no abismo totalitário.

Com relação aos filósofos que se dedicaram ao culto da "suspeita", Luciano Oliveira sublinha por onde passa a diferença lefortiana, escrevendo com argúcia que, "à força de ir ver o que está por trás das coisas", esses filósofos acabaram deixando de ver "o que está na nossa frente", isto é, as coisas mesmas. Assim, por exemplo, em lugar de tomar o poder como disciplina e controle que, de maneira oculta e sub-reptícia, percorre capilarmente a sociedade e não deixa qualquer espaço para a ação efetiva dos homens, submetidos irremediavelmente a uma dominação não percebida, Lefort concebe o poder como dimensão simbólica do social e a democracia como abertura temporal que acolhe o conflito e institui ações contra a tirania.

Claude Lefort, filósofo da interrogação e da indeterminação, é o pensador por excelência da democracia, situando-se à distância da concepção liberal - que a toma por um regime político entre outros - e da crítica marxista - que a reduz à expressão política dos interesses da burguesia. Essa dupla distância tem sua raiz, de um lado, na distinção entre a política e o político, e, de outro, na crítica da "boa sociedade" e do "poder incorporado".

Graças à distinção entre a política - o conjunto de práticas e instituições que localizam o poder em algum ponto específico da sociedade - e o político - "modo de aparição e ocultação do modo de instituição da sociedade" -, Lefort pode pensar a democracia como ação histórica aberta, propor a ideia de invenção democrática e o conceito surpreendente do poder como lugar vazio, esplendidamente analisados por Luciano Oliveira.

Para compreender essas duas noções, precisamos considerar a crítica lefortiana da boa sociedade e do poder incorporado. Desde seu monumental estudo sobre Maquiavel, Lefort colocou no centro do político a divisão originária da sociedade e o conflito de classes, examinando as concepções políticas antigas, às quais se opôs o pensamento maquiaveliano, enquanto fundadas nas ideias de união e indivisão sociais pressupostas nas imagens do bom regime e da boa sociedade, plenamente reconciliada consigo mesma. No estudo sobre Maquiavel, a montagem do imaginário da indivisão conduzia à imagem do bom governante virtuoso; ora, esta figura greco-latina recebeu um forte alento quando a ela se acrescentou a teologia cristã. De fato, lemos no ensaio de Lefort sobre La Boétie, veio acrescentar-se à figura do "bom governo" o imaginário do poder incorporado, isto é, do poder inscrito num corpo, o corpo do rei, portador da identidade entre o poder, a lei e o saber. Eis por que a revolução democrática acontece quando a imagem da boa sociedade una e indivisa e a do poder incorporado se esfacelam sob os efeitos concretos da divisão social e com o surgimento de um sujeito político desprovido de corpo, o povo, desfazendo a identidade entre o poder, o saber e a lei. A destruição dos referenciais antigos ou a desincorporação do político é o advento da invenção democrática. Invenção porque a ausência de corpo identificador abre brechas nas relações entre o poder, o saber e a lei, abre o tempo da ação e alcança o cerne da democracia: o poder como lugar vazio e a criação social de novos direitos.

Essa concepção da democracia incide sobre a crítica lefortiana do totalitarismo. Desde seu primeiro livro, Elementos de uma crítica da burocracia, Lefort já se opunha às ideias de Marx, Weber e Trotski sobre a burocracia, afirmando, contra eles, que ela é uma forma determinada do poder, quando este se exerce conforme os princípios da hierarquia, do segredo e da rotina; e também se opunha à análise trotskista do regime soviético, assinalando, contra Trotski, a presença inegável do totalitarismo. No entanto, somente com o desenvolvimento de seu pensamento sobre o político e a democracia Lefort pôde chegar ao nervo de sua análise do totalitarismo (distanciando-se das análises de Arendt) como tentativa insensata de erguer a boa sociedade una, indivisa e transparente recorrendo ao retorno do poder incorporado, o qual, não podendo ser o corpo do povo, pois este não o tem, ergueu-se como corpo do Partido e, finalmente, como corpo do Dirigente, no qual o poder, a lei e o saber voltariam a se identificar. Ora, o risco totalitário não se encontra apenas nas ideias de Marx - nas quais o proletariado se identifica com a dimensão simbólica do poder e a destrói -, mas também nas democráticas, porque o povo é "uma figura indecisa, mas pronta a se atualizar, avalista sempre latente da soberania, mas portando a ameaça de uma louca afirmação de sua identidade". O totalitarismo não é o mau poder de uma sociedade má; e a democracia não é o bom poder da boa sociedade. A indeterminação é a única chave da história.

Eis por que, como sublinha Luciano Oliveira, Lefort considera que os problemas deixados pelo totalitarismo e pelo comunismo são questões abertas para nosso presente. Ou, como sugere nas páginas finais deste livro, num tempo em que as instituições políticas tradicionais perdem credibilidade, reafirmar a força da invenção democrática, da "palavra viva e livre capaz de produzir a massa crítica" significa que Lefort é "um autor que não deve ser esquecido".

Luciano Oliveira se refere a Lefort como um pensador discreto, que elaborou seu pensamento à margem das correntes predominantes do pensamento francês contemporâneo. Todo leitor das obras do século XVII tem especial interesse pela figura do discreto, que Baltasar Gracián celebrizou ao distingui-la da figura do vulgar. Este, ignorante e ruidoso, contrasta com aquele, sábio e prudente. Sim, Lefort é um pensador discreto.

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Marilena Chauí é professora titular de Filosofia da USP. Este texto foi originalmente publicado como prefácio do livro.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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