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Uma nova classe feita de batalhadores

Rodrigo Dutra da Silva - Dezembro 2010
 

Jessé Souza (Org.). Os batalhadores brasileiros – nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

"Matar um leão por dia" é uma frase cara ao ideário de uma grande parcela de brasileiros acostumados a um dia a dia de trabalho duro, e que não por acaso se entrecruza com o cotidiano da sociologia crítica, que tem como objetivo compreender "não apenas os dramas, mas os prazeres" de uma sociedade e de suas parcelas por esta vertente retratadas. Esta relação é possível ao nos depararmos com o novo livro de Jessé Souza e colaboradores.

O livro retrata e desmistifica o perfil da nova classe trabalhadora brasileira, que é descrita pela literatura dominante como "nova classe média", favorecendo um entendimento parcial e incorreto do novo momento econômico vivido atualmente no Brasil. Aqui temos a relação entre a dura rotina de trabalho desta nova "classe social" e o pensamento proposto por Jessé Souza e sua articulação de conceitos para apreender tal realidade: abandonar as categorias fundadas em preconceitos de classe e em conceitos ultrapassados e, com um árduo trabalho que contemple teoria e pesquisa empírica, buscar explicações novas e plausíveis, dotadas de um enfoque crítico e imparcial para a compreensão de um momento incontestavelmente novo.

Parte deste arsenal que dá suporte à sua refinada sociologia crítica reside em compreender como os novos arranjos institucionais e econômicos são incorporados e tornados "carne e osso", assim entrando inegavelmente em prática na sociedade. Falar em uma nova classe brasileira, tachada prematuramente de "nova classe média", é utilizar mecanismos tacanhos e acríticos, dignos da tão atacada pseudociência.

O conceito de classe é de importância primordial para o entendimento da crítica e da teoria propostas neste livro, uma vez que as duas vertentes que concorrem na designação deste conceito na sociedade brasileira se escondem em critérios incompletos, que obscurecem sua real compreensão, tornada possível pela sociologia crítica. A primeira vertente, economicista, conservadora, de direita, aplica o conceito de classe em relação à renda, independentemente de outros fatores, como origem social e situação familiar, repousando no senso comum do mundo moderno, onde os homens são soltos e desconexos, sem vínculos com suas origens, podendo se valer apenas de sua relação com a renda obtida para a construção de sua identidade social.

A segunda vertente vem de um enfoque diametralmente oposto politicamente, de uma esquerda envelhecida que não reconhece sua imobilidade no tempo e não assume a cicatriz narcísica de se desprender de críticas ultrapassadas do mundo como ele é; esquerda esta que considera como aspecto principal da classificação por classes o lugar ocupado pelo cidadão na cadeia produtiva.

O que ambas as concepções de classe fazem é esconder o principal aspecto que faz a noção de classe social crucial para o trabalho da sociologia crítica: esconder a gênese sociocultural destas classes, fundamento imaterial que embasa relações sociais assimétricas que, uma vez tornadas opacas pelo senso comum - o qual propaga a classificação dos indivíduos em taxas de conversão de renda, pela "direita", e ocupação na cadeia produtiva, pela "esquerda" -, confere validade científica e legitimação a uma das sociedades mais desiguais do mundo. Toda a herança imaterial, que é recebida e tornada pré-reflexiva pelo convívio, relações afetivas e socialização dentro de um ethos de classe, é tornada invisível, facilitando a dominação e a opressão de indivíduos que não têm dúvidas em assumir a culpa pela incapacidade na disputa por melhores condições de vida.

Distante de caracteres econômicos, vemos na construção do conceito de classe proposto no livro que dinheiro, puramente, não fornece o substrato que confere valor aos indivíduos. É o capital cultural que opera na distinção entre as classes. Apesar da importância do capital financeiro, as classes estabelecidas se valem de um "estilo de vida" e ainda de algum capital cultural para que assim se tornem distintas dos novos ricos, sem modos, conhecimentos, atitudes e práticas consideradas "de bom tom" pelos integrantes deste seleto círculo social.

Na classe média "tradicional", este comportamento se mostra preponderante na capacitação de indivíduos que disputarão as melhores colocações, com vantagens competitivas obscurecidas pelo economicismo. Noções "ensinadas" dentro de casa permitem a incorporação das características mais importantes para a aquisição do capital cultural: "disposição para o aprendizado, concentração e disciplina". Diante de exemplos domésticos, como leituras de livros, operação de computadores e prática de línguas estrangeiras, por exemplo, esta classe arma seus descendentes com as melhores qualidades, que embasarão todo o diferencial competitivo e, assim, realimentarão todo o círculo de privilégios dominados por esta parcela da sociedade.

Neste livro, o mero distanciamento do paradigma puramente econômico para a definição de classes sociais não é a única contribuição de peso para a compreensão da realidade brasileira, desempenhada com maestria por Jessé Souza. Entender como estas práticas se perpetuam ou se modificam, criando classes sociais novas dentro do panorama institucional e econômico brasileiro, é uma outra importante e árdua tarefa a ser desempenhada pela sociologia crítica, ou seja, mais um leão a ser morto.

Para Jessé Souza, o capitalismo é a categoria chave utilizada para a compreensão da sociedade moderna, e uma análise crítica do modus operandi deste capitalismo é parte importante do movimento de reconstrução dos sentidos e movimentos desta sociedade. Com uma bem articulada síntese entre o pensamento de Max Weber e Luc Boltansky, há a compreensão da necessidade de um "espírito do capitalismo" para a aceitação e legitimação de um caractere irracional que passa a ser o agente principal do capitalismo moderno: a acumulação do capital. Esta acumulação não tem como fim necessidades humanas ou sociais, servindo apenas como um fim em si mesmo. Esta voraz atividade deteriora os laços sociais, utilizando-se das "desculpas" contempladas neste "espírito" para que toda a sociedade aceite complacentemente a desigualdade de forças na luta por esta acumulação primitiva de capital.

Uma peculiaridade que torna o capitalismo uma força sem precedentes na história das sociedades humanas é sua capacidade de cooptar e valer-se de movimentos ideológicos e sociais contrários às suas ideias. Boa parte do poder de ação deste capitalismo se baseia em apreender e reverter o ataque: todo movimento que tem por intuito o fim do regime econômico funciona como mola propulsora para a instauração do "novo espírito", legitimando o futuro movimento deste "capitalismo antropofágico". Nesta legitimação estão inclusas a aceitação ativa e o comprometimento dos atores, fator primordial para sua eficácia simbólica.

Diferentemente do observado originalmente por Max Weber, a legitimação do capitalismo moderno se afasta da moralidade religiosa e se vale da ciência e mais especificamente da economia, ciência estéril e afastada da moralidade, para o engrandecimento, valor e legitimação de seu espectro de ação. Ao lado desta mudança, para a legitimação científica do capitalismo, temos a ideia de bem comum como algo intrínseco à atividade econômica, transformando a imagem do país na figura de uma grande empresa.

Um primeiro passo no intuito de analisar a gênese do capitalismo tem como ponto de partida a produção fordista. Este capitalismo, que tem como característica a produção em massa, o controle dos operários por um forte aparato de vigilância e o trabalho repetitivo, logrou sucesso por ser vinculado a bons salários e possibilidades de acesso ao consumo de uma parcela até então distanciada destas possibilidades.

A mudança do padrão fordista para o toyotista foi desencadeada por uma revolução expressivista, baseada em movimentos fortalecidos pelos filhos das elites do período fordista de produção, que se valeram da boa educação e das boas oportunidades que desfrutavam para embasar as críticas ao modelo de produção pesado e pouco motivador. Aliado a este movimento, uma iniciativa advinda do Japão, uma nação oriental sem tradição na luta de classes, mudou o panorama do capitalismo pesado para o então dominante capitalismo leve e, posteriormente, a vertente financeira.

Seguindo uma linha de argumentação contundente, iniciada em obras anteriores, o autor reconstrói a forma de disseminação da nova ideologia ou espírito do capitalismo: inicia-se nas universidades de países irradiadores de influência e é divulgada por pensadores, jornalistas e formadores de opinião, que apoiam o lado mais forte do poder simbólico. Após esta etapa, esta ideologia ganha as ruas sob a roupagem de senso comum. As novas formas flexíveis e dotadas de uma aura expressivista lograram sucesso em se disseminar pelo mundo e logo demonstraram seu poder de influenciar tanto instituições quanto indivíduos. A classe estabelecida que lançou mão de suas críticas expressivistas ao capitalismo agora ocupa os melhores lugares da disputa por poder simbólico. A visão do Estado sofreu perdas incalculáveis com a visão flexível do capitalismo, que via a economia como geradora de bem comum, não devendo, por esta característica, ser "incomodada" pela intervenção estatal, até então única instância de articulação entre os detentores de poder simbólico e os relegados aos lugares pouco glamorosos do processo produtivo.

Após uma brilhante exposição dos temas tratados acima, as atenções se voltam para a "nova classe média" brasileira, que, ao ser analisada, é substrato para a apreensão do novo momento econômico brasileiro. Uma vez que as classes se reproduzem mediante heranças imateriais e materiais, que estão fortemente ligadas ao panorama institucional e econômico, a análise requer a reconstrução das disposições e comportamentos desta classe, uma reconstrução que, distante de critérios econômicos e produtivos, recompõe todos os encadeamentos sociais que explicam a gênese da classe.

A parte empírica do livro é um atrativo fascinante e primordial para a demonstração da gênese e disposições da nova classe trabalhadora. Um grande esforço de pesquisa mapeou batalhadores que, mesmo recebendo salários díspares, morando em regiões distantes, tanto na zona rural quanto nas cidades, e trabalhando em regimes de produção completamente distintos, contemplam as características chave para a compreensão do perfil social "descoberto" por Jessé Souza e colaboradores. Essa descoberta é feita, uma vez que esta classe, designada originalmente como "nova classe média", não tem os mesmos valores e ferramentas simbólicas da classe média "tradicional". Esta dita "nova classe média", na verdade uma classe trabalhadora, não investe em distinção, não se muda ao alcançar novos patamares de renda e, apesar de viver em um arranjo econômico que enfatiza o capital financeiro de cunho toyotista, não está apta ao trabalho flexível nem investe em capacitação continuada para as mudanças do mercado.

O que se observa e se compreende, diante dos exemplos mostrados na pesquisa, é uma nova classe trabalhadora, vítima dos preconceitos de classe que a empurraram para o limbo valorativo da sociedade. Mas esta mesma classe, abandonada institucionalmente (salvo pequenas iniciativas e investimentos em políticas redistributivas e de qualificação desempenhadas pelo Governo Lula), se apropriou da liquefação da produção fordista e se adaptou à produção flexível, buscando qualquer nicho possível de sobrevivência. Como resultado desta busca, após um período de aprendizado nesta condição desfavorável, conseguiu aprender a "matar um leão por dia" e assim atribuir algum valor à sua trajetória, incorporando os valiosos aprendizados que a conduz ao mercado de trabalho: "pensamento e comportamento prospectivos, disciplina e autocontrole".

Essas armas, advindas do aprendizado árduo na luta por alguma dignidade, ficam claras nas palavras e entrevistas destes batalhadores: conjunção de uma ética do trabalho - duro, sob quaisquer circunstâncias, mesmo em adversas jornadas duplas ou em turnos de até 14 horas - com um autocontrole e uma negação do consumo imediato, criando assim um pensamento prospectivo, que conta com o as migalhas economizadas no hoje para semear o ideal de um amanhã farto, digno e mais ameno.

Da junção destas disposições é possível observar mais um fator importante para a instauração de uma característica típica da nova classe trabalhadora brasileira: o "capital familiar". Este mecanismo - que propaga os valores da luta incessante contra as condições adversas de trabalho, que visa à dignidade pelo salário recebido, que impõe sérias restrições aos prazeres momentâneos em benefício de um momento futuro, que contempla o bem-estar de toda a família e nunca perde o horizonte de um futuro melhor "possível" - transmite às novas gerações todo o arsenal simbólico de que poderão se valer no atual momento econômico brasileiro.

Aqui é impossível concentrar todo o conteúdo e aprendizado disponíveis neste impressionante livro, que associa empiria e teoria para a reconstrução de uma parte importante do novo momento econômico brasileiro, ou seja, o da consolidação da dominação do capitalismo financeiro. Muito além de desvendar o direcionamento do capitalismo atual no Brasil, este livro é um manual para a compreensão da sociologia crítica, que, longe do âmbito do senso comum, visa a reconstrução e o real entendimento de uma determinada realidade, com vistas a desvendar toda a opacidade dos critérios parciais de classificação social. E, para tanto, também deve matar um leão por dia.

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Rodrigo Dutra da Silva é mestrando em Ciências Sociais na UFJF.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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