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Brasil e Argentina no século XX

Vicente Palermo - Maio 2011
 

Comparar trajetórias políticas ao longo de um século supõe um esforço muito maior de esquecimento do que de memória. Tentarei aqui converter uma grande quantidade de matérias analíticas muito heterogêneas em algumas conjeturas popperianas. Elas podem provir de qualquer parte e podem ser submetidas à corroboração ou à refutação. Ou seja, trata-se de um processo inverso à tarefa estritamente acadêmica. Em certa medida, estou recomeçando "desde o zero" o meu trabalho [1].

O movimento principal da política no Brasil, no século XX, deu-se entre elites no âmbito regional. O poder político oscilou entre o governo federal e os estados, entre elites centralizadoras e elites descentralizadoras do poder, no que se denomina atualmente de "eixo federativo". Já na Argentina, o movimento principal da política deu-se em torno do eixo social - entre elites e setores sociais populares. Essa hipótese, acredito, sustenta-se bem se levamos em conta as periodizações mais convincentes, para cada caso, ao longo do século.

No que tange à Argentina, consecutivas experiências extraordinariamente significativas de ampliação do sistema político, com patente incorporação de setores sociais até então excluídos, deram lugar a uma série de contestações reacionárias e excludentes, num registro desconhecido no Brasil. Essas contestações não representaram um amadurecimento cumulativo do sistema político, o que fica bem claro até mesmo naquelas experiências políticas mais propícias à análise comparativa, como o populismo.

Não é por acaso que o conceito de "cidadania regulada" surgiu num texto brilhante de um brasileiro, Wanderley Guilherme dos Santos (1987), e não de um argentino. A própria idéia de populismo como "estado de compromisso", de Francisco Weffort (1980), é também brasileira.

A dimensão de incorporação política preventiva e controlada tem uma predominância no caso brasileiro que não tem no argentino. Tentar entender o peronismo com esse conceito seria francamente impossível. O mesmo acontece com nossas experiências autoritárias comuns. O modelo de Guillermo O'Donnell (1982), de regime burocrático autoritário, é útil para compreender a trajetória do regime militar brasileiro em suas diferentes etapas entre 1964 e 1985. Porém, no caso argentino, somente permite entender a ditadura implantada em 1966. Já a consideração do "Processo" (a ditadura militar entre 1976 e 1983) obriga-nos a uma conceituação muito diferente, a uma identificação da ditadura argentina com regimes política e economicamente reacionários e neoliberais, aproximando-o muito mais do autoritarismo chileno de Pinochet.

Talvez ajude ao leitor o estabelecimento de periodizações correspondentes para cada caso. Assim, no caso brasileiro, o poder mais descentralizado da República Velha deu lugar à experiencia de centralização que culminou no Estado Novo. Em seguida, teve lugar uma nova tendência descentralizadora, durante os anos de democracia, entre 1945 e 1964, e uma forte recentralização com a implantação do regime autoritário. Este, contudo, criou as bases para uma nova etapa de descentralização, protagonizada pelos governos estaduais, antes da transição democrática. Essa descentralização aprofundou-se com o retorno à ordem constitucional e alcançou talvez seu ponto culminante com a Constituição de 1988. As orientações das reformas modernizantes de Fernando Henrique Cardoso já supõem uma significativa recentralização. Já no caso argentino, a ampliação da participação popular, desde 1912-1916, foi violentamente revertida em 1930. Essa reversão por sua vez deu lugar a nova e relevante experiência de participação política ampliada, a partir de 1945, a qual foi violentamente cancelada em 1955, abrindo um processo que culminou em uma ampla ofensiva popular (com traços antiditatoriais e também revolucionários), que, por sua vez, culminou, em 1973, com o retorno de Perón. A situação foi brutalmente revertida pela reação militar e terror estatal a partir de 1976. O retorno da democracia, em 1983, marca uma nova etapa de participação popular.

É verdade que a história democrática argentina, no século XX, é mais longa do que a brasileira. Todavia, essa diferença não invalida a comparação. Minha hipótese concisa é a seguinte: na política democrática brasileira, a dimensão institucional é dominante - as instituições, de fato, representam o lugar em que se dão as interações e em que os atores coletivos se configuram. Em compensação, nessas instituições, a inclusão tanto social como política tem sido fraca [2]. No entanto, no caso argentino, a dimensão inclusiva tem sido dominante, com o prejuízo indubitável da dimensão institucional. Na política democrática argentina, participaram "todos". Na política democrática brasileira até 1964, a estabilidade baseou-se na exclusão - por exemplo, na exclusão (ou alienação, segundo tenha sido o caso) das massas rurais [3]. Daí que, paradoxalmente, a política brasileira aproxime-se muito mais de um padrão representativo (embora elitista) do que a política argentina. Nesta última, o padrão é decididamente movimientista [4].

A participação popular no Brasil do século XX era dominada pelo jogo representativo interelite - o qual era cooptativo, sim, mas também representativo no sentido que Manin (1998) dá ao termo. Em contraste, a participação popular na Argentina desenvolveu-se na matriz movimientista. O movimientismo é, a seu jeito, uma forma representativa, mas contém um potencial de destruição institucional extremamente poderoso. Entre outras razões, isso se dá porque a representação movimientista é tendencialmente autoritária e tem um pendor antidemocrático e até totalitário. Ela tem um impulso endógeno de ocupar a "totalidade" e adota a fórmula populista-antagônica - a mesma que Ernesto Laclau (2005) vê emergir recentemente por toda a América do Sul - como o jeito normal de dar conta dos problemas políticos e de governo. Agora, problemas políticos existem do mesmo modo como a chuva: tanto um como o outro são inevitáveis. Sendo assim, o problema principal do movimientismo não é tanto o exercício da oposição, mas o do governo, porque a explosão política nesse caso é inevitável.

É interessante ressaltar que o termo movimiento, expoente importantíssimo do jargão político argentino, tem um significado muito diferente do brasileiro. No caso brasileiro, trata-se de um termo usado de forma quase banal pelos partidos, como é o exemplo muito claro do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), ou então diz respeito aos "movimentos sociais". Ao contrário, o conceito dominante de movimiento (político e social) argentino apresenta dois aspectos centrais: é forçosamente excludente, porque autopostula-se como totalidade legítima da nação e/ou do povo (diferente dos significados brasileiros) e é uma forma "não representativa" de representação. Ele expressa e encarna diretamente os referenciais sociais ou políticos. Não se trata de uma mediação ou de uma "relação agente-principal" que cancela os "representados" como tais. Ainda que comumente identifique-se o movimientismo argentino com o peronismo, a concepção movimientista da política é muito anterior a este.

De forma complementar, podemos dizer que a dinâmica política brasileira é marcada pela estratégia de composição - o que se chama de uma "gramática de conciliação" -, enquanto a dinâmica política argentina é de contraposição. Aqui recuperamos a distinção, de raiz clássica, de Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero (1986), entre política como composição e política como contraposição. Acredito que essa perspectiva seja complementar porque a composição é eficaz, ainda que, por definição, seja excludente. Não há composição se não existirem terceiros que ficam excluídos. Isso tem um correlato social, na diferente dinâmica do conflito social ou de classes, em cada país. Não tratarei dessa questão agora, salvo para dizer que, na perspectiva comparada, dá para ver que, ao longo do século XX, o potencial de conflito social tem sido bem menor no Brasil do que nos outros países do Cone Sul, com os quais a comparação poderia fazer algum sentido. Embora o Brasil tenha fundado um partido trabalhista de novo cunho, o componente de luta social interclasses tem relevância explicativa maior na história argentina, chilena ou uruguaia. Deixo para o leitor tirar suas próprias conclusões no que tange à positividade ou negatividade desse traço social, mas parece-me claro que o imaginário social brasileiro - mais hierárquico e menos plebeu do que, por exemplo, o argentino - continua sendo de integração mais que de contraposição.

O que foi dito até agora pode projetar luz na arena da cultura política. Um importante pensador conservador mexicano, Escalante Gonzalbo (1995), estabelece a distinção, de cunho aristotélico, entre repúblicas burocráticas e repúblicas mafiosas. Escalante argumenta que num mundo de repúblicas, como é de fato o mundo contemporâneo, existiriam essas duas grandes categorias. As primeiras seriam aquelas nas quais os governantes são escravos da lei e ajustam seus comportamentos a ela - aproximando-se, assim, ao que, num enfoque menos cínico, podemos entender como governo (republicano) da lei (rule of law). Já nas repúblicas mafiosas, os governantes servir-se-iam da lei para viabilizar seus próprios interesses. Neste caso, não seriam escravos da lei, mas a lei é que seria um instrumento, apropriadamente maleável, de que eles lançariam mão quando necessitassem. O Brasil do século XX aproximou-se bem mais do tipo ideal de república mafiosa [5].

E quanto à Argentina? No século XX, ela tem sido uma república muito precária - tanto assim que precisamos de muito boa vontade para falar de "história republicana argentina" durante o último século. Muitas vezes, afirmo, em ambos os países, que, com a corda no pescoço e diante da obrigação de fazer uma distinção resumida entre nossas culturas políticas, tentaria salvar-me dizendo: enquanto no Brasil se diz "ao inimigo, a lei", na Argentina, usa-se al enemigo, ni justicia. Aliás, "ao inimigo, nem justiça" não é uma expressão que eu tenha imaginado em pesadelos, ela foi concebida (ou recuperada) por Juan Perón. Gostaria de enfatizar que ela fez escola, não somente entre os peronistas, mas também entre os "gorilas". É claro que isso tem uma justificativa movimientista, tanto em uns como em outros: se os inimigos são inimigos da pátria, do povo, da liberdade, da razão, da justiça, então por que haveriam de merecer nossa justiça? E a validade do dictum torna-se rotineira, porque todo adversário é "inimigo de" e todo conflito de interesses transforma-se em "política" de inimizade. Na Argentina dos extremos, tem-se apagado a lei, enquanto, no Brasil dos extremos, tem-se utilizado a lei como instrumento a serviço de quem está, por condição social e estatal, acima dela.

Ainda estamos longe, em ambos os casos, do rule of law [6]. Mas, seja como for, aproximamo-nos a partir de pontos de partida muito distintos. Quando uma pessoa faz a outra calar-se - ao dizer: "Você está falando com uma autoridade da República" -, é quase impossível que essa outra não sinta que a "república" é apenas uma garantia que a primeira tem para impor sua vontade injusta e perpetuar a desigualdade que a favorece. Como discute Guillermo O'Donnell, num ensaio imperdível (1984), que parte do texto clássico de Roberto Damatta - Carnavais, malandros e heróis -, lá onde os setores subalternos podiam "escolher" apenas entre obedecer ou morrer de fome, prosseguiu imperando a deferência. E, embora a legitimidade das instituições republicanas talvez não seja maior neste caso, os pobres e os trabalhadores abaixaram a cabeça ante a pergunta ominosa: "Você sabe com quem está falando?". Ali onde, como na Argentina, os setores subalternos tinham possibilidades reais de optar, tendo, contudo, instituições republicanas profundamente afetadas por um padrão oligárquico, ganhou vulto a rebeldia plebeia - a qual constitui um universo simbólico igualitário em que qualquer diferenciação entre os indivíduos é vista como uma injustiça social [7]. À pergunta que tinha por intuito colocar o afoito en su lugar, este respondeu: a mí qué cuernos me importa?, cristalizando assim uma oposição muito pouco feliz entre democracia e república.

Mas a cultura política não se limita às respectivas relações entre política, sociedade e lei: ela atinge também questões identitárias. E, no que tange a essas questões, gostaria de acrescentar alguns pontos sobre o padrão mais elitista-representativo, num caso, e movimientista, no outro. Falando sem rodeios, acredito que no Brasil temos populismo e nacionalismo de Estado, enquanto na Argentina temos populismo e nacionalismo de sociedade. O conceito de Schmitter, sobre neocorporativismo estatal (1974), de pouco nos serve aqui, porque a estruturação autônoma de interesses (própria do modelo ideal de neocorporativismo societal) não é encontrada em nenhum dos dois casos. Mas o poder societal do populismo argentino - como complexo sociocultural, histórico e político extraordinariamente denso - não tem equivalência no Brasil, onde, em compensação, o populismo apresenta um legado estatal duradouro e indiscutivelmente bem-sucedido. Tanto que, na década de 1990, uma agenda democrática de reformas - chamadas de neoliberais - teve como retórica o desmonte do Estado varguista, retórica essa que foi utilizada tanto por detratores como por partidários. Sem querer exagerar, pode-se dizer que o populismo argentino legou atores políticos e culturas, enquanto o populismo brasileiro legou Estado e instituições. Nesse sentido, resulta útil o instrumental analítico desenvolvido por Edson Nunes (2003) a respeito da "gramática" política brasileira, porque revela interessantes contrastes nos quatro itens: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos.

O mesmo acontece, no meu entender, com o nacionalismo, a começar pelo fato de que as variantes argentina e brasileira são bem diferentes. Parece-me evidente que o nacionalismo brasileiro é bem menos tóxico do que o seu irmão argentino. Este é atormentado, carrancudo, é uma flor cultivada no fértil terreno da decadência (não estou sugerindo que a Argentina seja um país decadente, não cabe discutir isso aqui) e carrega um amargo toque de ressentimento. É um nacionalismo que pode, para lançar mão de um exemplo recente, dar lugar à reação crispada do governo - e mesmo de uma parte da sociedade argentina - perante o Uruguai, no que diz respeito ao conflito sobre as papeleras, em Fray Bentos [8].

Esta reação contrasta de modo evidente com a do governo brasileiro no conflito com a Bolívia a respeito da Petrobras. Embora não faltassem intelectuais ostentando a bandeira da dignidade nacional, estes não tiveram, ainda bem, a repercussão nem social nem oficial por eles esperada. É evidente que os esforços para a recuperação da autoestima, que sucessivos presidentes brasileiros adotaram (Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva têm apresentado uma perfeita continuidade nesse ponto), levam a uma certa empolgação nacionalista, mas este é um traço um tanto festivo e não mostra a típica indignação argentina contra o mundo: "Puxa - pergunta-se Lula -, como é que nós brasileiros podemos ter uma visão muito mais negativa do Brasil que a de fora?". Essa questão poderia envolver-nos em apaixonantes discussões comparativas de chavões brasileiros, como o "complexo de vira-lata" (criado por Nelson Rodrigues) ou a "teoria da jabuticaba", contrastados com chavões argentiníssimos, como o mejor negocio del mundo, o "destino de grandeza" e a indignação argentina com uma comunidade internacional que nunca chega a reconhecer lo importante que somos e el papel fundamental que nos tocaría merecidamente desempeñar [9]. Ou, por que não, o conceito brasileiro de "miscigenação", contrastado com o argentino de crisol de razas, aparentemente semelhantes, embora tão sugestivamente diferentes em quase tudo.

Mas o tempo não me permite estender essa digressão e obriga-me a voltar ao nacionalismo. Porque uma outra diferença é que o nacionalismo argentino é um nacionalismo de sociedade, muito enraizado nos atores e grupos sociais, na cultura e nas identidades políticas, enquanto o brasileiro é um nacionalismo de Estado: é este, no imaginário social brasileiro, a expressão principal da nação. Quando, por exemplo, Lula diz: "Gente, se conseguimos fazer uma coisa tão boa como a Petrobras, como é que não poderíamos ir para frente?", sabe muito bem o que sua fala evoca e para quem.

E creio, com sinceridade, que essas diferenças tornam-se evidentes, atualmente, nas formas, nos conteúdos e nas predominâncias das propostas identitárias, como é o caso do nacionalismo, tão estudado no passado e hoje posto de lado - com poucas exceções - na sua dimensão contemporânea [10]. O que é e como atua o nacionalismo hoje? Não tratarei desse assunto agora, mas estou pronto para argumentar que existem significativos contrastes nas formas como o nacionalismo argentino aborda a questão da soberania na Patagônia e o nacionalismo brasileiro, a soberania na região amazônica. Esta última é uma questão que vem se deslocando para o centro da agenda política brasileira e que, no meu entender, está destinada a constituir um tema crucial da política e da cultura política de um futuro não muito distante.

As diferenças que tentei identificar até aqui podem ser projetadas para o plano das dinâmicas institucionais, quer dizer, das morfologias político-institucionais de cada país e dos processos políticos. Examinemos brevemente as últimas décadas democráticas do século XX em ambos os países. A Argentina e o Brasil levaram quase uma década para conseguir estruturar coalizões democráticas reformistas relativamente estáveis: o processo começa com Carlos Menem, em 1991, e com FHC, em 1995. Ambos os países foram capazes de estabelecer núcleos de governabilidade, recuperaram capacidades estatais, puderam fazer política econômica e formular e executar uma agenda de reformas. Mas qual foi o tópico político, a arena política central em cada caso? Qual foi a capacidade de criação institucional e de sustentabilidade em cada caso? Atrevo-me a dizer que o cerne da interação, no caso brasileiro, foi institucional e representativo: a Presidência, o Congresso, o relacionamento entre o Presidente, a Presidência e o Congresso. Algo bem diferente registrou-se no caso argentino: lá, as interações tiveram por atores privilegiados os agentes econômicos e as corporações, com papel central na pessoa do Presidente, que era ao mesmo tempo o chefe de governo e o articulador exclusivo e único da coalizão. São também notoriamente diversas a criação institucional-estatal, a consolidação de atores políticos no jogo de governo-oposição em torno da gestão reformista, assim como a continuidade de políticas [11].

Às vezes, fico com a impressão de que nós, cientistas políticos, damos a entender que adentrar o campo da cultura leva-nos ao diletantismo. Creio que vale a pena atentar mais nesse campo e dialogar com quem, com seus próprios meios e sem precisar de nós, ocupa-se dela, como os antropólogos. Então, como exemplo, gostaria de chamar a atenção para um cruzamento extremamente revelador, e muito pouco estudado, entre política e cultura: o mundo dos jargões políticos. Porque, se ficamos imersos em nossos próprios âmbitos nacionais, talvez não encontremos nada de interessante nisso; mas, se saímos deles para comparar, percebemos que as diferenças são tão assombrosas quanto expressivas.

Foi em Emilio De Ipola (1988), parafraseando, se não me engano, Lévi-Strauss, que deparei com a mais bela definição metafórica de política que conheço. Cito-a de memória: Es ese espacio tan cercano a la muerte, pero erigido contra ella, donde la palabra encuentra su lugar. O vínculo entre a política e as palavras - ou, de outro modo, a relação entre a política, as palavras e a morte - foi muito distinto no Brasil e na Argentina do século XX. Na Argentina, as palavras estiveram próximas demais da morte, e a política tem sido um espaço erigido com muros precários demais contra ela. É claro, vocês poderão dizer que esse é também o caso do Brasil. Não sei. Sei, sim, que as famílias de palavras políticas são muito diferentes. Não há no Brasil, por exemplo, nada semelhante a uma família inteira de palavras vetadas, como foi o caso das palavras peronistas na Argentina: peronista, justicialista, Perón, Evita, marcha peronista e outras, que durante anos estiveram proibidas por lei [12].

A palavra zurdo (gíria de conteúdo depreciativo que significa "esquerdista"), tão importante no léxico político argentino, não tem um equivalente aceitável no Brasil. Existe em português a palavra trotsko, que não tem a preeminência de zurdo nem um alcance social tão amplo. E a mesma coisa acontece com seu antípoda, porque a palavra facho não é um sinônimo coloquial de fascista nem possui um análogo funcional ou semântico no jargão político brasileiro, léxico no qual a expressão correr por izquierda, tão comum na Argentina, não quer dizer nada [13]. Ao mesmo tempo, gorila, contrera, peronista, antiperonista levam-nos de chofre ao mundo das identidades radicalmente contrapostas da Argentina do século XX, identidades que não se definem por positividade, mas sim por oposição: ser antiperonista é a identidade que se coloca por cima das identidades prévias, assim como ser peronista supõe - no século XX - um mandato identitário de peronización da nação.

No Brasil, algo ligeiramene semelhante foi "descoberto" por cientistas políticos: Fabio Wanderley Reis (2000), lançando mão de metáforas futebolísticas, sustenta que a política eleitoral brasileira vem se caracterizando pelo que chama de "síndrome de Flamengo", definida pelo eixo oposição-situação. Por fim, enquanto no Brasil, sipaio é somente um termo de origem persa (que significa pertencente à cavalaria), na Argentina o termo equivalente, cipayo, ganha, no jargão político, o conteúdo de "colonizado culturalmente, servidor do imperialismo" e desfruta ainda hoje de uma popularidade bem maior do que seria de se desejar.

Seja como for, a grande família de palavras políticas da Argentina fala-nos de um mundo muito diferente daquele que se pode entrever no jargão brasileiro correspondente: caudillo (que tem muito pouco a ver com o "coronel" brasileiro), montoneros, o sintagma civilización y barbarie, causa nacional, reforma universitaria, movimiento, gorila, oligarquía, gobierno nacional y popular, partidocracia, proyecto nacional, demoliberal, intransigencia, patota e os irmãos gêmeos que se odeiam, dictadura y tiranía. E também palavras que começam por patria: patria socialista, patria peronista, patria metalúrgica, patria contratista, etc., e os aumentativos azos: cordobazo, rosariazo, santiagazo, etc.; e, evocando a capacidade argentina de perfazer e aturar choques, rodrigazo. Que eu saiba, por exemplo, "tirania" é um conceito amplo no Brasil, enquanto na Argentina temos primera tiranía, segunda tiranía, assim como a oposição hipócrita, por parte de nosso liberalismo, entre tirania (popular) e ditadura (temporária ou provisória). Os vocábulos, em português, também existem, mas com significados completamente diferentes, como é o caso de "movimento", que no Brasil faz alusão ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB) - ou ao PMDB - e aos "movimentos sociais".

Não sei tão bem como vocês quais são os membros conspícuos da família brasileira de palavras políticas, mas, modestamente (se é que vocês acreditam que um argentino possa ser modesto...), posso apontar o que vejo. No Brasil, despolitizaram-se as palavras, como é o caso do termo "camarada", ou não se chegaram a politizar palavras, como é o caso de "esquerda", ainda amarrada demais ao que é considerado "torto", contrário ao que está bem e, pois, direito. E também vejo como algumas palavras que registraram no século XX uma trajetória bem-sucedida tiveram uma estrada fundamentalmente institucional, mais que societal. Tal é o caso das palavras "cidadão" e "cidadania", que atingiu sua refulgência na Constituição de 1988, a "Constituição cidadã". E conjeturo que palavras como "casuísmo", "voto de cabresto", "coronelismo", "corporativismo", "clientelismo", "patrimonialismo", "cartorialismo", "peleguismo", "cooptação", "Estado Novo", "revolução legalista", "abertura política", "fisiologismo", "presidencialismo de coalizão" (acredito que um jornalista político brasileiro utilize a expressão ao menos dez vezes por ano), "esplanadeiros", "orçamento participativo", próprias do léxico político brasileiro, são marcantes de um contraste nítido demais com o correspondente argentino.

A palavra "transição" não faz parte do léxico político argentino, só tendo uso entre os cientistas políticos. A expressão "nacional-desenvolvimentismo", se comparada com o nosso paupérrimo desarrollismo (e não estou me referindo aos desempenhos históricos de Juscelino e Frondizi, mas ao valor e à carga semântica dos vocábulos no século), corresponde a compararmos um titã com um alfenim. É o caso também dos termos que evocam o Estado e o nacionalismo de Estado, tão típicos do nacionalismo brasileiro, mas tão diferentes do nacionalismo argentino: "o petróleo é nosso", "Petrobras", "50 anos em cinco"; e ainda: "milagre econômico", "modernização conservadora", "modernização pelo alto", assim como "insulamento burocrático", "anéis burocráticos", "ilha de eficiência", etc.

Por prudência, evitei nessa exposição falar muito do século XXI, mas não posso deixar de concluir estes comentários com um lance de humor, que, acredito, vem a calhar aqui: a mais recente expressão do jargão político brasileiro, "anfíbio" (alto funcionário que atua em áreas estratégicas ou com acesso a informação valiosa e que costuma tirar licença sem remuneração para prestar consultoria a empresas privadas, valendo-se dessas informações privilegiadas, e que, quando retorna ao serviço público atua de modo a favorecer seus clientes [14]), encontra correspondente, na Argentina, no termo autoconvocado (vizinho que participa em puebladas de protesto, com diferentes formas de interpelação midiática e envolvimento de direitos de terceiros). Noutras palavras, os novos termos, tanto brasileiros como argentinos, continuam nas trilhas previstas nesta reflexão: estão mais vinculados às instituições, no caso brasileiro, e mais vinculados com a movimentação societal, no caso argentino.

Estas hipóteses podem estar corretas ou erradas, mas, em qualquer caso, importa dizer que não as estabeleci ex nihilo, como vindas do nada, nem diacrônica nem sincronicamente. Diacronicamente, porque a história do século XX sustenta-se, é óbvio, na do XIX, com escravos, Império, República, legitimidade republicana e guerra da independência, guerras civis, federalismo para obter a unidade e federalismo para manter a unidade (tomando a sugestiva distinção de Stepan, no caminho de Riker [15]), exército nacional (a relação entre exército e nação, tão diferente no século XIX brasileiro e argentino [16]), projeto tabula rasa de uma nação sobre um desierto, imigrantes, nacionalismo liberal, Estado poderoso (no Brasil, muito diferente do significado argentino), educação sarmientiana, homens livres no Brasil escravocrata (cf. Schwarz, 1998), deferência social e alienação política em misturas diversas - enfim, tudo aquilo que configura condições para uma história dos setores populares tão diferente nos dois países. E, sincronicamente, porque com certeza cada uma das hipóteses ou conjeturas que discuti aqui pode imbricar-se com os processos do próprio século XX, com os dramas, as lutas, as lideranças, os conflitos, as controvérsias, as gestões de governo, os períodos de depressão e de prosperidade, as esperanças, tudo, enfim, que constitui a história desse século. Mas encarar essa tarefa vai além do que posso fazer nesta apresentação.

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Vicente Palermo, cientista político, é autor, entre outros, de A ditadura militar argentina 1976-1983 (São Paulo: Edusp, 2007), com Marcos Novaro.

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Notas  

[1] Com o título original de "Algumas hipóteses comparativas entre Brasil e Argentina no século XX", este texto foi apresentado no seminário "Política e Sociedade na Argentina e no Brasil: Estado, Democracia e Cultura", realizado pelo Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em junho de 2008.  

[2] Essa caracterização comparativa corresponde a todo o século XX. Portanto, há matizes que, em outra perspectiva, deverão ser ressaltados. É o caso, por exemplo, do processo de ampliação da participação eleitoral brasileira, no último quarto do século, que se inicia de fato com o regime militar.

[3] De fato, a incorporação das massas rurais não foi senão uma tentativa, vinda de cima, de levá-la a cabo, o que provocou a reação preventiva dos militares.

[4] Uma análise muito sugestiva e polêmica a respeito é a de Hector Leis e Eduardo Viola, que antepõem a "sociedade de corte" brasileira com o mundo social movimientista argentino (cf. Leis & Viola, 2008).

[5] Espero que vocês, brasileiros, não julguem esta afirmação como uma afronta, mas somente como uma provocação de um argentino "metido".

[6] Disponho aqui de pouco tempo para diferenciar este conceito, genuinamente republicano, do conceito conservador de imperio de la ley y el orden, usado na Argentina. Sofia Tiscornia (2007) discute em trabalho recente este conceito conservador e sua utilização atual.

[7] Na Argentina do século XX, acredito, seria impossível encontrar adesivos nos carros, como aqueles que são vistos no Rio de Janeiro, que rezem: "Reencarnação: uma questão de justiça".

[8] Sobre esse conflito, cf. Palermo (2006).

[9] Em uma aula ministrada no Rio de Janeiro, observei que nós, os argentinos, vivemos desconcertados e irritados con o resto do mundo, porque este nunca chega a reconhecer como somos valiosos e merecemos o lugar que nos corresponde, enquanto os brasileiros vivem inquietos frente à possibilidade de que o mundo se dê conta de que valem pouco. Assim, e antes que alguém me entenda mal, o sentimento de superioridade argentino é tão infundado como o de inferioridade brasileiro. Por isso, a diferença entre o "real" e o "percebido" não é o mais interessante; ineressante é que estas percepções são em si mesmas organizadoras de espaços culturais.

[10] Entre as poucas exceções estão Grimson (2007), uma completa compilação de comparações entre Argentina e Brasil, e Palermo (2007a; 2007b), para o caso argentino.

[11] Nem toda explicação dessas diferenças cabe no ponto que discuto aquí, mas creio que é uma variável importante para a explicação.

[12] E que nos legaram a expressão el-que-te-jedi, quando Perón não podia ser nomeado.

[13] No melhor dos casos, é demasiado técnica, demasiado especializada. No Google, aparecem esportes.

[14] Cf. Hage (2006).

[15] Cf. Riker (1964) e Stepan (1999).

[16] No Brasil, como mostra Doratioto (2002), foi só a partir da guerra do Paraguai que o exército pôde construir gradualmente uma identidade associada não mais ao Império, mas à nação. A preocupação está vivamente presente nas páginas de Os Sertões, de Euclides da Cunha, no final do século XIX.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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