A vida é real e de viés, como lá diz o verso do Caetano, e esta pode ser uma sugestão para tentar decifrar o rumo enviesado que a polÃtica brasileira tomou pelo menos desde 1994, quando dois partidos social-democratas passaram a se enfrentar encarniçadamente nas disputas presidenciais, pelo controle do Parlamento e das instâncias locais. Um enfrentamento que, no quadro atual, vê, por um lado, o poderoso bloco de alianças em torno do partido social-democrata de origem sindical, e, por outro, a minoritária aliança oposicionista cujo eixo é o partido "irmão inimigo", de extração intelectual, imerso ainda por cima em um conjunto de crises que parece abalar sua expectativa de poder nas próximas rodadas eleitorais.
Com seu instinto polÃtico aguçado, sempre muito hábil em demarcar o espaço polÃtico entre amigos e inimigos até o ponto da exasperação, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve meias palavras em definir o que espera do seu partido já para 2012: caberia ao PT agregar mais uma vez os "diferentes", a começar pelo PMDB, e lançar-se decididamente contra os "antagônicos". Pelo visto, se tudo for deixado mais uma vez à mercê do cálculo partidário imediato, preparemo-nos para mais rounds de maniqueÃsmo explÃcito, aos quais, à moda de uma certa cultura polÃtica argentina, se aplicaria o dito: al enemigo, ni justicia.
Veja-se, neste sentido, a reação ao texto recente de outro ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, sobre o que julga dever ser daqui por diante o papel da oposição. O argumento de FHC traz novidades interessantes sobre o processo de socialdemocratização da sociedade brasileira, entendido como exercÃcio permanente de construção de direitos e em curso pelo menos desde a entrada em vigor da Constituição de 1988. Pois a reação inicial e mais exacerbada deu-se porque o ex-presidente supostamente excluiria da estratégia oposicionista o "povão" e os movimentos sociais, aferrando-se, ao contrário, à s novas classes médias como público preferencial, ainda quando este público, por ora, esteja longe da polÃtica institucional dos polÃticos.
No fundo, quanto ao possÃvel novo protagonismo destas heterogêneas camadas emergentes, Fernando Henrique não disse nada muito diferente do que está no discurso de posse da presidente Dilma perante o Congresso, há apenas alguns meses: um largo e generoso reconhecimento ao "paÃs de classe média sólida e empreendedora", que este último perÃodo de intensa mobilidade descortinou - aliás, não apenas no Brasil, mas em muitos outros paÃses em desenvolvimento, e num ritmo muitas vezes até mais pujante do que o nosso.
A crÃtica ao mecanismo de cooptação que programas como o Bolsa FamÃlia podem significar deve sensibilizar todos aqueles que se preocupam com a vigência de um confronto polÃtico menos apaixonado e sectário, e não por isso indevidamente atenuado ou domesticado. Vale lembrar que, num passado recente, aconteceram medidas de repercussão pelo menos comparável ao Bolsa FamÃlia para a construção de uma rede de proteção social, sem que se deixasse de enfatizar o seu caráter de polÃticas de Estado, que não implicaram o erguimento de mitologias para maior glória do lÃder providencial. Refiro-me, por exemplo, à expansão da assistência social no governo Itamar, protegendo idosos e portadores de deficiência fÃsica sem os recursos mÃnimos de sobrevivência digna.
O argumento de Fernando Henrique, ao que parece, se torna particularmente cortante ao alertar para "o triunfo do capitalismo, em sua forma global", um triunfo ao qual teria aderido o lulopetismo, não obstante toda a profissão de fé em contrário. A adesão da social-democracia à moda petista teria agora o contorno de um capitalismo burocrático avesso aos requerimentos de uma moderna sociedade democrática. Da nossa parte, poderÃamos lembrar que, nos anos 1990, ao contrário, o canto da sereia neoliberal andou encontrando ouvidos entre nós, ainda quando, da perspectiva de hoje, se possa ver nitidamente que tivemos, antes, reformas liberais num quadro de crise do velho nacional-desenvolvimentismo, e não a aplicação de um modelo liberal extremado, que, de resto, só teria sido possÃvel com a supressão do regime de liberdades públicas.
Assim é que a intervenção de Fernando Henrique está em linha com a mais recente revalorização do papel do Estado na sua dimensão reguladora, indutora e mesmo em áreas estratégicas da produção. Um Estado, contudo, que se requalifica como radicalmente comprometido com a estratégia democrática e faz desta ação democratizadora o cerne da sua presença nos processos múltiplos e contraditórios de uma moderna sociedade de massas, comprometida com o progressivo acesso de todos aos bens essenciais, como saúde, educação e previdência, que devem ser subtraÃdos à lógica do individualismo selvagem.
A social-democracia europeia do pós-guerra, nos seus momentos mais altos e criativos, não esteve limitada à construção de uma rede de proteção social, por mais importante que seja. Implicou ainda a tentativa, mais ou menos bem-sucedida, de aumentar a incidência de trabalhadores e setores subalternos nos mecanismos da acumulação, orientando-os segundo as exigências de uma democracia econômica. Os excessos do capitalismo desregulado podem fazer com que esse tipo de preocupação pouco a pouco readquira força e vigor.
Entre nós, no entanto, este horizonte criativo parece distante, e decididamente não será possÃvel sem que antes algum diálogo se restabeleça entre as almas partidas da social-democracia brasileira. Pelas artes enviesadas da polÃtica, em algum momento destes últimos vinte anos elas se desavieram, pondo em risco a relação virtuosa entre instituições polÃticas democráticas e avanço social.
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Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.