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Ciências sociais e pesquisa no Brasil

Marcos Costa Lima - Março 2011
 

Talvez o maior desafio das ciências sociais contemporâneas seja entender as mudanças e transformações radicais vividas no século XXI. E, ainda mais, serem propositivas, mas nunca dogmáticas. É sempre difícil comparar os períodos históricos e daí a importância da longa duração. Vivemos hoje no início de um novo século que traz consigo muitas dúvidas e perplexidades. Talvez o fenômeno mais avassalador tenha sido a proliferação de novas tecnologias que alteraram por completo as formas de trabalho, o acesso às informações, os deslocamentos de pessoas, de fluxos financeiros, o cotidiano das famílias, o imaginário coletivo, os ambientes construídos, as novas dimensões do espaço, a sensação da "aldeia global".

Todos falam da vertigem da velocidade, da falta de tempo, das rupturas com o passado, da síndrome de pânico, dos grandes aglomerados urbanos, do ruído, dos engarrafamentos. Em grande medida busca-se conceituar tudo isto com um "pós", como se a humanidade houvesse atravessado ou ultrapassado um umbral e de onde ainda não tivesse certeza de para onde vai. A célebre pergunta de Gauguin: "De onde vim, onde estou e para onde vou". Então, intitulamos diversamente esta nova "realidade" de global, de sociedade do conhecimento, do aprendizado, de economia e sociedade da informação, de sociedade midiática, de pós-modernidade.

David Harvey, ao sucintamente explicitar a tese de seu prestigiado livro, afirmou com simplicidade: "Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais, bem como político-econômicas [...]. Essa mudança abissal está vinculada à emergência de novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço" [1].

As transformações se dão na produção e consumo dos alimentos, na produção de sementes e transgênicos, nas práticas médicas associadas a máquinas sofisticadas e intervenções corpóreas e ao uso de fármacos sofisticados, ao menos para os que podem ter acesso. A velocidade das inovações é inversamente proporcional ao seu uso inicial, que é proibitivo, até que a produção em escala cada vez mais gigantesca reduza os custos e permita a ampliação do acesso. É o saber perito por todos ambicionado, como diria o sociólogo Giddens, e que estabelece as distinções de natureza diversa, de poder, de riqueza, de prestígio, de bem-estar.

Eis-nos no mundo dos computadores, da internet, do virtual, do trabalho e da produção incorpórea, das máquinas quase perfeitas que incorporam novas invenções, o Ipod, o Twitter, o Google, o Skype, cada equipamento introduzindo novos campos de relações, novas formas e práticas de cotidiano.

Enquanto toda essa dimensão da vida, dos processos e das articulações homens-máquinas ganha complexidade e inovação constante, também alguns problemas se acumulam. E são problemas de envergadura, a começar pelas iniquidades produzidas pelo capitalismo hegemônico em escala planetária, que concentra riquezas em poucos lugares, cidades, estados, regiões, e em poucos grupos sociais, submetidos a uma lógica padronizada de alienação do trabalho e consumo. Aí está o grande contingente mundial de excluídos, de pobres, de sem-teto, de sem terra, que, em que pesem todos os avanços tecnológicos et pour cause, como diria Celso Furtado, produzem a política das diferenças.

Um segundo problema estrutural é justamente a vertigem da obsolescência sistêmica da produção, articulada que está também e, sobretudo, com as finanças globais, com o capital rentista de banqueiros, aplicadores das bolsas e de fundos de pensão. A necessidade intrínseca do capitalismo de aumentar a escala da produção traz consigo a necessidade de incorporar mais matéria-prima, mais água, mais novos materiais e, grande contradição, menos trabalho. O mais trabalho só se dá quando a remuneração pelo esforço é cada vez mais diminuta. O padrão de desenvolvimento sem sustentabilidade e regido apenas pelas leis de mercado tem gerado os conflitos ambientais espacializados e, mais do que isso, tem levado à exaustão a capacidade física de equilíbrio climático e dos ecossistemas. Como nos falam os sociólogos Andréa Zhouri e Klemens Laschefski: "As atividades causadoras de impacto ambiental são, frequentemente, localizadas em áreas ocupadas pela população mais marginalizada e vulnerabilizada da cidadania, ou seja, as camadas sociais de baixa renda, as quais coincidem, muitas vezes, nos Estados Unidos, com as comunidades afro-americanas, ameríndias e asiático-americanas" [2].

Um terceiro problema estrutural, que se articula com os dois anteriores, é aquele da hegemonia e da política mundial, ou seja, de uma elite de poder, da plutocracia internacional e dos políticos de grande influência, dos grandes capitalistas de variada natureza que, sob o véu da democracia, praticam toda sorte de arbitrariedades contra os commons. Estabelecem certa normatividade e sabem proteger-se juridicamente, inclusive de processos milionários de corrupção e dos ganhos ilícitos. Lembra-me aqui o famoso poema de Bertold Brecht a propósito dos banqueiros. A mídia multinacional é um fator de cristalização dos discursos e práticas dominantes e poderosa construtora e articuladora de consensos. De tempos em tempos ocorre um Wikileaks ou uma revolução no Egito, que ainda precisam ser estudados, tendo em vista seus aspectos de novidade.

Um quarto problema estrutural está na geopolítica do conhecimento das ciências sociais. Conforme a rica reflexão do sociólogo Sérgio Costa, "a produção e a validação de conhecimentos nas sociedades modernas reproduzem formas coloniais de dominação" [3]. Esta tradição eurocêntrica da modernidade, segundo o sociólogo, é "a convicção de que a história moderna representa a contínua e heroica ocidentalização do mundo, isto é, a expansão das instituições, das formas culturais de vida e modelos de sociabilidade surgidos na Europa Ocidental a partir do século XVIII para todas as regiões do planeta acompanha a Sociologia [e a Política] desde o seu berço. Dessa convicção deriva uma orientação metodológica que persiste, de algum modo, ainda hoje, qual seja, assumir as normas sociais, as estruturas e os valores encontrados nas sociedades denominadas ocidentais como parâmetro universal que define o que são sociedades modernas".

Sem sombra de dúvidas, o movimento tectônico produzido pela China desde 1998, e com taxas de crescimento inauditas desde então, levanta para as Ciências Sociais contemporâneas novas interrogações acerca da articulação de um mix de modelo de capitalismo com fortes traços de acumulação primitiva a um Estado totalitário, com nuances marxistas e da tradição confuciana.

Poderíamos indicar ainda novas questões estruturadoras desta pós-modernidade (?), mas já temos o suficiente para explicitar os desafios das ciências sociais brasileiras, que não são unívocos, mas contraditórios e multiparadigmáticos, são universos de conflito e em conflito.

A vitalidade e os campos da produção das ciências sociais no Brasil

É difícil tratar de temas de tamanha abrangência num espaço tão exíguo, pois como afirmou um dos sociólogos mais criativos que já pude ler, Theodor Adorno [4], as ciências sociais, e a sociologia em particular, têm um caminho em direção ao entendimento que não ocorre nos mesmos termos em que aprendemos Matemática na escola, ou seja, progredindo do simples ao complexo em passos claros e inteiramente evidentes para nós. Adorno combatia o modelo positivista, cartesiano e gradualista, cuja validade absoluta considerava incerta.

Para ele, a continuidade da forma de apresentação, da sistematização dos fenômenos sociais por essa tradição contém em si - mesmo inconscientemente - a tendência a excluir na explicação as contradições constitutivas da sociedade. Como exemplo de destaque, a tese dos liberais de conceber os sistemas econômicos como autorregulados, pela premissa da tendência ao equilíbrio na economia. O positivismo, diz Adorno ao tratar de Augusto Comte, lamenta que "a ciência da sociedade ainda não tenha a confiabilidade absoluta, a transparência racional e, sobretudo, a fundamentação unívoca em fatos rigorosamente observados, tal como ele atribuía à ciência natural" [5].

Em meio às muitas concepções do fazer científico, ao progresso realizado pela epistemologia e à consideração da necessidade de estabelecer pontes, interfaces e relações com as demais práticas científicas, e mesmo buscando estabelecer os limites destas articulações do conhecimento, as ciências sociais contemporâneas discutem as suas aproximações com a história, a geografia, a economia e a filosofia, para não falar das contribuições de um Foucault com respeito ao campo da saúde, do corpo, da loucura e do direito.

Para dar conta das exigências da modernidade ou da pós-modernidade, para além dos avanços teóricos nos campos disciplinares que compõem as ciências humanas, que, rigorosamente falando, são traços de giz, a sociologia, a antropologia, a política e as relações internacionais bebem em diversas fontes. A vitalidade destas ciências não está apenas em seu crescimento quantitativo, no número de mestres e doutores formados a cada ano, de que trataremos no item a seguir, no crescimento vertiginoso das membresias de cada uma das suas associações de pós-graduação - a ABCP (Política), a ABA (Antropologia), a ABS (Sociologia), a ABRI (Relações Internacionais) -, no número de programas operando no Brasil e na consolidação da pós-graduação em todo o território nacional. Vemo-nos diante de um avanço significativo também pela qualidade, diversidade e número das pesquisas realizadas e, ainda, uma ampla diversificação de objetos, subcampos, metodologias e teorias em processo.

Na sociologia, e não é possível ser aqui exaustivo, temas clássicos como estratificação, desigualdades, classes, mudança social e sociologia das religiões, as questões urbanas, de identidade, da educação e da saúde, dos movimentos sociais, do pensamento social, da violência, as questões de gênero, do meio ambiente, da inovação, da mídia, cultura e informação. Sem falar de um amplo arco de recorrências e interfaces disciplinares.

Na antropologia, os temas de cor, etnia e raças, a etnobiologia, a etnolinguística, os estudos da família, de parentesco, das mitologias, da alimentação, das religiões, as antropologias do campesinato e das comunidades rurais, a antropologia urbana, das profissões, os estudos de gênero e sexualidade, da cultura, da música, das festas e do folclore, a antropologia visual.

Na política, os estudos sobre a filosofia política, a história das ideias políticas, o Estado, a democracia, os regimes políticos, as formas de governo, Justiça e Poder Judiciário, os estudos legislativos, a burocracia e as estruturas organizacionais, os partidos e os sistemas partidários, as instituições políticas, o federalismo, a sociedade civil, a participação política ampliada, os direitos humanos. 

O campo das Relações Internacionais, em processo de expansão disciplinar, tem consolidado seu corpus teórico e analítico. Como nos dizem Sebastião Velasco e Cruz e Felipe Mendonça, tendo "raízes plantadas na história diplomática, no Direito Público Internacional e no ramo correspondente da Economia, com o passar do tempo as Relações Internacionais adquirem identidade própria e nem sempre seus praticantes se reconhecem como cientistas políticos" [6]. A aposta que fazemos, com o avanço dos processos de globalização, é que rapidamente este campo disciplinar tenderá à sua autonomização.

Seja em termos de tradições, inovações, continuidades e transformações do conhecimento do social, seja em escala macro, micro ou meso, o que se observa é uma ampliação do leque dos enfoques e abordagens. São tentativas de enfrentar a diversidade dos fenômenos. Adorno dizia, então, que "não há nada, mas nada mesmo, sob o sol que, por ser mediado pela inteligência humana e pelo pensamento humano, não seja ao mesmo tempo também mediado socialmente" [7].

O financiamento da pesquisa no Brasil contemporâneo

Concluo este breve texto apresentando alguns números presentes nos Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia, de 2010 [8]. Estes nos dão, sinteticamente, resultados sobre o financiamento da pesquisa no Brasil de hoje, que apresentam graves assimetrias regionais e também com relação à participação do governo federal no financiamento e consolidação das áreas de pesquisa e de formação científica. Por exiguidade de espaço me furtarei de comentar as estatísticas, que são autoexplicativas em muitos de seus aspectos.

Em termos de dispêndio nacional em C&T, em valores correntes relacionados ao Produto Interno Bruto (PIB), em 2008 os gastos foram de R$ 43,09 bilhões, ou 1,43% do PIB, dos quais 54% públicos e 46% empresariais.

Dos dispêndios públicos em P&D por objetivo socioeconômico, o maior valor vai para as instituições de ensino superior, ou 58,1%, seguidos de pesquisas não orientadas, 11,02%, e agricultura, 10%. A indústria e a Saúde recebem em média 6% cada uma.

Os dispêndios em C&T realizados pelos governos estaduais evidenciam uma impressionante assimetria. Enquanto o total dos estados despende um valor de 5,6 bilhões de reais, a distribuição percentual correspondente é a seguinte:

Tabela 1: Dispêndios em C&T pelos governos estaduais /2008. Em percentagem

Norte

Nordeste

Sudeste

C.Oeste

Sul

Total

1,77

5,45

84,0

1,4

7,5

100.0

Fonte MCT, op. cit.

Vale salientar que apenas o Estado de São Paulo representa 73,4% dos gastos estaduais em P&D.

Finalmente, um conjunto de dados que exemplifica a disparidade dos gastos das instituições federais de ensino superior, por região:

Tabela 2: Dispêndios em P&D das instituições federais de ensino superior /2008. Em percentagem

Norte

Nordeste

Sudeste

C.Oeste

Sul

Total

4,5

20,0

44,0

13,4

17,9

100.0

Fonte MCT, op. cit.

A tabela merece um esclarecimento. Os valores regionais são aqui mais bem divididos. Acontece que o estado de São Paulo tem universidades em maior número estaduais. Assim, o valor total dividido fica maior para as demais regiões. Agora, se considerarmos o montante de recursos gastos em P&D pelas universidades estaduais de São Paulo e o compararmos aos gastos das IFES de todo o País, aquele montante chega a 63,2%. Portanto, temos aí um outro problema estrutural de magnitude e que precisa ser enfrentado.

Uma última tabela evidencia a importância das Ciências Sociais no conjunto das demais ciências no Brasil, aqui comparando a evolução dos alunos titulados nos programa de pós-graduação em ciências sociais de 2000 a 2008, nos cursos de mestrado e doutorado.

Tabela 3: alunos titulados nos programas de pós-graduação em algumas áreas do conhecimento. Valor nominal

Grandes Áreas

2000

2003

2005

2008

Ciências Humanas

mestrado

3.055

4.560

5.152

6.198

doutorado

892

1.283

1.497

1.862

Ciências da Saúde

mestrado

2.933

4.186

4.567

4.967

doutorado

1.038

1.549

1.682

1.959

Ciências Exatas e da Terra

mestrado

1.780

2.408

2.564

2.826

doutorado

892

1.283

1.497

1.862

Ciências

Agrárias

mestrado

1.979

2.577

2.867

3.518

doutorado

550

1.026

1.121

1.319

Fonte MCT, op. cit.

Um último comentário: é que se, hoje, o sistema brasileiro de pós-graduação está consolidado, o que representa um extraordinário resultado para a sociedade brasileira, leituras mais atentas revelam que ainda há muito por fazer, seja do ponto de vista da correção das desigualdades regionais e setoriais da ciência, seja daquele da difusão e retorno das reflexões e produtos da ciência para os brasileiros, sobretudo os que mais dela necessitam.

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Marcos Costa Lima é professor do Deptº de Ciência Política da UFPE. Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e presidente da Anpocs (2011-2012).  Artigo originalmente publicado com o título "Saber para transformar. O lugar das Ciências Sociais e a pesquisa científica no Brasil".

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Notas

[1] Harvey, David (1989). Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, p. 7.

[2] Zhouri, Andréa; Laschefski, Klemens (2010). "Desenvolvimento e conflitos ambientais. Um novo campo de investigação". In: Zhouri, Andréa; Laschefski, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 21.

[3] Costa, Sérgio (2010). "Teoria por adição". In: Carlos Benedito Martins (Coord. Geral). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Sociologia. São Paulo: Anpocs, p. 26 e 28.

[4] Adorno, Theodor W (2007). Introdução à Sociologia. São Paulo: Editora Unesp, p. 51.

[5] Adorno, op. cit., p. 58.

[6] Velasco e Cruz, S.; Mendonça Filipe (2010). "O campo das Relações Internacionais no Brasil. Situação, desafios, possibilidades". In: Carlos Benedito Martins (Coord. Geral). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Sociologia. São Paulo: Anpocs, p. 298.

[7] Adorno, op. cit., p. 72.

[8] MCT (2010). Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia – 2008. Brasília: MCT.



Fonte: O Estado de Minas, 12 mar. 2011.

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