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Para que reformar a universidade

Luiz Werneck Vianna - 2004
 

Como cultura e civilização, o Brasil já é uma presença afirmativa no mundo. A marca da tolerância nas relações raciais e religiosas, o reconhecimento do direito à diferença, por si sós, testemunham a qualidade dos valores humanos presentes na constituição do tecido da sua sociabilidade ao longo da história, grande parte deles amparada na Constituição, em que pesem todas as condições negativas que afligiram e ainda afligem a formação do seu povo. Em um vasto território continental, regionalmente diversificado, estabeleceu-se, aqui, uma comunidade lingüística e se fincaram profundamente os alicerces da unidade nacional, bem antes que o mercado pudesse se comportar como força organizadora efetiva. Obra dessa envergadura, que países mais desenvolvidos e etnicamente mais homogêneos que o nosso ainda não conseguiram realizar plenamente, foi filha da cultura e da política, tendo recebido um decisivo impulso com a Revolução de 1930, quando se adotou o tema da identidade nacional como uma política pública de Estado, influente, em particular, no sistema educacional. Nesse sentido, a moderna ação do mercado, incluindo o seu segmento que atua nos meios de comunicação de massas, apenas veio a completar o esforço das gerações anteriores.

É também no plano da cultura que o mundo da vida dos brasileiros comuns se projeta na moderna história brasileira. Não conhecemos a oposição, como em tantos países mais avançados que o nosso, entre cultura popular e cultura erudita. Longe de se deixar confinar no folclore, as manifestações culturais da sociabilidade popular, à medida que foram admitindo a mediação dos intelectuais, um bom número originário dela mesma, se credenciaram, por sua capacidade expressiva, a se tornar intérpretes da sensibilidade nacional, conservando as raízes da sua autenticidade. Assim, quando sobrevêm as tendências ao cosmopolitismo, por força dos processos de globalização, a identidade nacional vai se achar ancorada na dimensão da cultura como tradutora da subjetividade popular.

A civilização brasileira é essa cultura mais o empreendimento material e institucional que nos levou à montagem de um dos parques produtivos mais modernos entre os países de desenvolvimento econômico retardatário, à posição de país emergente na produção científica, com um sistema de pós-graduação sem paralelo, pelo seu alcance e amplitude, no nosso subcontinente, à rica e plural presença da sua vida associativa e ao nosso moderno sistema de direitos individuais e coletivos, consubstanciado na Carta de 1988. Essa civilização não é filha do acaso, e não poucas vezes esteve diante de obstáculos que ameaçaram a sua projeção afirmativa no mundo. Sempre que isso ocorreu, a intervenção oportuna dos seus dirigentes políticos, com freqüência em resposta à pressão popular, encontrou saídas que garantiram o seu rumo à frente.

Vivemos, no Brasil e no mundo, um tempo de mudanças. Aqui, pelo avanço da democracia política, mais recentemente confirmado na última sucessão presidencial, quando se elegeu, pela primeira vez na história republicana, um governante vindo do campo popular. Estão abertas, pois, novas fronteiras para o aperfeiçoamento da vida democrática, em especial no que diz respeito à participação do povo na vida pública e, sobretudo, na redefinição do Estado e de suas instituições no sentido de dar partida a um amplo movimento de incorporação social. Tal movimento, além da indispensável democratização das políticas públicas, supõe a descoberta e a invenção de novas estratégias e procedimentos que mobilizem as energias nacionais para um desenvolvimento econômico que tenha como norte fins socialmente relevantes. Os sinais que nos vêm do mundo são contraditórios: se os ideais de paz encontram crescente audiência nos fóruns internacionais, vive-se um tempo de guerra e de ódios religiosos; se os avanços da ciência parecem prometer melhores condições de vida para a humanidade, o domínio dos países mais desenvolvidos sobre a sua produção, reproduzem, continuamente e em escala ampliada, as desigualdades entre Estados; se a mundialização da economia contém em si a possibilidade de coordenar, no plano internacional, a produção da riqueza social, ela tem resultado no aprofundamento das assimetrias entre nações.

Esse mundo, tal como está configurado, não se apresenta como um lugar promissor para um país como o nosso, ainda retardatário em termos de desenvolvimento econômico e de conhecimento técnico-científico, circunstância agravada pela imensa hipoteca social que pesa sobre a emergente democracia brasileira. O desafio da hora presente é o de inscrever o país no movimento do mundo a partir de suas próprias razões. Essa inscrição não pode ser meramente adaptativa às novas circunstâncias, de resto, nada afortunadas. Ao contrário, requer a liberação, no plano do conhecimento, das forças da criatividade e da imaginação, tendo em vista a realização dos objetivos estratégicos da democracia brasileira, entre os quais relevam o da incorporação social e o do domínio dos meios científicos e tecnológicos que nos assegurem uma participação competitiva e soberana nos negócios do mundo.

A Universidade é, por definição, o lugar dessa criatividade. Em boa medida, a Universidade brasileira, no curso da sua breve existência - se comparada com a de outros países -, tem sido capaz de responder às demandas trazidas por sua sociedade. Assim com a formação dos quadros das profissões liberais, dos destinados ao exercício das funções docentes em todos os níveis, e, nas últimas três décadas, com ênfase na difusão de um sistema de pós-graduação, responsável, hoje, pelo avanço da pesquisa científica e tecnológica no país. Ao lado disso, embora ainda em escala modesta, a Universidade tem atendido expectativas de mobilidade social, facultando o acesso de setores da população tradicionalmente excluídos dela. A Nova Universidade, cuja instituição se põe como um imperativo do momento, tem esse rico inventário como seu ponto de partida.

Contudo, para ser efetivamente nova, não pode se limitar a responder a demandas que lhe são feitas. Trata-se, agora, de prever oportunidades, visualizar atalhos, exercer domínio reflexivo sobre as circunstâncias e apostar forte na descoberta e na invenção. Além do cumprimento desse papel, a Universidade deve ser de massa, escola de cidadania e de promoção do bem comum, republicana e democrática, e, como tal, aberta ao que há de vivo e enérgico na sociedade, fonte de estímulo e inspiração para o que ainda se mantém em estado de passividade. Por isso, há de ser plural e admitir, no que se refere ao seu propósito de intervir no mundo, vocações diferenciadas, que devem variar consoante às necessidades da comunidade sobre a qual atua.

A Nova Universidade deve nascer da convicção de que, no terreno do conhecimento e da cultura, ela está investida, pela vontade do povo expressa na Constituição, da representação legítima para interpretar, da sua perspectiva, o mundo e a sociedade. É nessa condição que a Nova Universidade deve se auto-atribuir a missão institucional de se envolver com o Brasil e seus desafios, assumindo o papel de sujeito, a um tempo crítico e ativo, no processo civilizador brasileiro, nele distinguindo os valores e tradições a serem preservados e, a partir daí, ancorada no patrimônio da identidade nacional, arremeter com coragem, em meio às incertezas que rondam nosso tempo, em busca do sentido e das oportunidades que motivem os brasileiros a prosseguir com êxito a sua história.

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Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iuperj e presidente da Anpocs.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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