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Finança, inovação e aquecimento global

Marcos Costa Lima - Setembro 2011
 

1. Introdução

No período 1992-2000, que ficou caracterizado como aquele da "Nova Economia", os Estados Unidos da América vinham de conhecer a mais longa fase de crescimento ininterrupto de todos os tempos, ao ponto em que alguns analistas declararam que o crescimento havia se tornado estrutural. Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, Banco Central dos Estados Unidos, afirmava em 6 de maio de 1999 que as NTICs (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação) estavam na origem do essencial dos ganhos de produtividade e do novo crescimento sem inflação [1]. É importante salientar aqui o papel da grande mídia internacional econômica e financeira - da manipulação simbólica -, como suporte e enraizamento do mito da "Nova Economia" como um fenômeno global que privilegia os objetos imateriais (informação, produção intangível e interconexão em rede). Este grande aparato, articulado pelas universidades do mainstream e a "mídia especializada", não fazia qualquer alusão a outras realidades sociais, de economias deprimidas, estagnadas ou absorvidas pelo endividamento externo, nem tampouco refletia sobre quaisquer problemas, tais como o de saber se estas formas observáveis de desagregação social tinham qualquer relação com a "exuberância irracional" demonstrada, principalmente, pela economia estadunidense.

Seis características desta "Nova Economia" se destacam. Trata-se de uma economia: i) de forte crescimento; ii) baseada na produção de novas tecnologias de informação e comunicação; iii) baseada na expansão dos empregos no setor de serviços; iv) exigente de um nível mais alto de flexibilidade do trabalho e do mercado de trabalho; v) uma economia de mercado profundamente desregulada; vi) exigente de um novo modo de "governo" das empresas. Esta nova forma de governance mantém relações muito estreitas com os mercados financeiros desregulados: livre circulação, livre especulação e desengajamento do Estado (Gadrey, 1960, p. 34). 

A lógica interna do processo se daria na seguinte cadeia: o novo crescimento estável e sem inflação é tornado possível pela difusão das NTICs, por um lado, e, por outro, pela flexibilidade e mobilidade do trabalho. As NTICs, por sua vez, aumentam a produtividade, fazem baixar os custos e, portanto, reduzem a inflação, criando desta forma empregos qualificados e estímulos às Bolsas de Valores. Com base neste novo crescimento, o nível de vida progride e a demanda por serviços pessoais aumenta substantivamente, ampliando o emprego de forma massiva e, por conseguinte, reabsorvendo o desemprego. O modelo parece funcionar, no entanto ele só se realiza sob três condições: i) a extensão do mercado concorrencial na direção de atividades e de regiões do mundo que ignoram ainda estes benefícios; ii) um novo modo de governo das empresas que transfere o poder aos acionistas - capitalismo acionista - para que reduzam a rigidez e os custos das burocracias gerenciais; iii) e, sobretudo, mercados financeiros liberalizados e globalizados, os únicos capazes de praticar racionalmente uma performática "seleção das espécies", conforme expressão de Gadrey (Id., p. 36), que equivale às fusões e aquisições que têm provocado o enriquecimento de poucos e os efeitos perversos para muitos. Já é conhecida e analisada, em muitos de seus aspectos, a falência desta "Nova Economia" (Chesnais, 2003a, p. 11-24), quando a poupança de centenas de milhares de pequenos portadores de ações desapareceu como uma nuvem de fumaça [2].

O impacto desta economia cassino atropelou os trabalhadores, gerou um desemprego estrutural crescente, aboliu conquistas históricas dos trabalhadores, provocou imensos desgastes ambientais, pelo ritmo alucinante do dia a dia na Bolsa de Valores, das bolhas imobiliárias e do mercado dos intangíveis, a produzir sistematicamente desequilíbrios ambientais e sociais de toda ordem (Chesnais, 2003a, p. 13) [3]. O Intergovernamental Panel of Climate Change (IPCC) lançou um relatório em fevereiro de 2007, no qual afirma que "o aquecimento do sistema climático é inequívoco, como agora se torna evidente a partir das observações do crescimento nas médias globais das temperaturas do ar e do oceano, generalizando o degelo de neve e gelo e o aumento do nível do mar. No plano continental, regional ou em escalas oceânicas, foram observadas numerosas mudanças climáticas de longa duração" [4].

O objetivo deste trabalho é aprofundar a articulação entre processos de financeirização, impulso tecnológico e crise ambiental. A partir da Segunda Guerra Mundial, inclusive em decorrência dos investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para a tecnologia militar no período do conflito, ocorreu um substantivo avanço nas tecnologias de transporte, comunicação e informação militar, realizado pelos Estados Unidos da América, que resultou em três características fortes do novo quadro capitalista: i) ampliou-se o conhecimento científico e tecnológico através das novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs), que passaram a ser entendidas como geradoras de vantagens competitivas; ii) promoveu-se uma maior integração do espaço econômico no âmbito mundial, seja pela queda sistemática das barreiras alfandegárias, seja pela expansão das corporações multinacionais e pela instrumentalização das NTICs; iii) aumentou a competição entre as empresas multinacionais, atuais controladoras de grandes fatias do mercado mundial [5].

2. A financeirização

Com a configuração contemporânea das relações de propriedade e das relações políticas, essa dinâmica assume como traço essencial a dominação financeira, tornando-se, portanto, necessário aprofundá-la e verificar o seu raio de propagação.

Há mais de trinta anos as finanças deixaram de ser conduzidas pelos governos; passaram então a ser dirigidas pelo mercado, cuja extensão mundial alterava as repercussões das perturbações econômicas entre os países e os riscos ligados à instabilidade dos mercados financeiros. Tais perturbações e riscos passaram a ter grande importância, provocando um contágio generalizado, com efeitos ainda mais dramáticos naqueles países de baixa industrialização e que já acumulavam um elevado endividamento externo. Como afirma argutamente Michel Aglietta (2003, p. 19), "o risco se tornou um traço maior das finanças modernas".

Para que a análise econômica não venha a subsumir a dimensão da política, das particularidades histórico-culturais e possibilidades nacionais, da ação dos sujeitos políticos capazes de produzirem alternativas ao sistema capitalista vigente, o aporte teórico-analítico introduzido por François Chesnais (2004, 2003b) é fundamental. Aí encontramos uma reflexão madura que, ao articular o fenômeno da mundialização do capital à dimensão da financeirização e à produção do conhecimento, ilumina algumas destas questões.

Para Chesnais, o poder das finanças se construiu sobre o Estado endividado. Sob o efeito das taxas de juros superiores ou muito superiores à inflação, como ao crescimento do PIB, a dívida pública faz "bola de neve". A subida das taxas é acompanhada de efeitos quase mecânicos de divergência entre os que têm poupança (um excedente com relação ao consumo) e podem comprar ações, títulos, e aqueles que têm nível de renda que não lhes permite poupar. Esta é a primeira etapa do processo da financeirização, que permitiu o caminho às privatizações. A segunda etapa do "regime de acumulação financeira" ocorre quando os dividendos se tornam um mecanismo determinante da apropriação do valor e os mercados de Bolsas, as instituições mais ativas da transferência rentista. As altas taxas de juros provocam, por parte do Estado endividado, fortes pressões fiscais sobre os que recebem menores salários e têm menor mobilidade. Exigem austeridade orçamentária e redução dos gastos públicos.

Assim sintetiza François Chesnais: "O capitalismo contemporâneo busca, indubitavelmente, acentuar e exercer diretamente um controle tanto sobre os lugares como sobre os atores que detêm conhecimentos ou um potencial de criatividade técnica no domínio da produção, do comércio ou da organização". Mas pergunta ele: "Quem exerce o controle, e em função de quais interesses?" (Chesnais, 2003b, p. 2).

Portanto, para se compreender a dimensão e as implicações desse controle, mas também as resistências, contradições e desperdícios que ele comporta é relevante definir a princípio a configuração específica das relações de produção enquanto relação de propriedade. E, uma vez entendendo que os efeitos da privatização do saber correspondem a um estágio do capitalismo no qual o controle do conhecimento detém um papel central (através, entre outros, dos mecanismos da propriedade intelectual), uma síntese entre uma teoria crítica do capital cognitivo e a crítica do capital patrimonial pode e deve ser esboçada, sob a condição de que a questão da propriedade privada dos meios de pesquisa e de produção seja abordada de frente.

3. As políticas científicas e tecnológicas e os sistemas nacionais de inovação

A ideia de uma política específica relativa à organização da ciência em nível nacional e a atribuição de recursos para a pesquisa são de aplicação recente e vêm do pós- 2ª Guerra mundial, muito embora autores como Bernal (1939) já desenvolvessem, ao final dos anos 30, uma reflexão consistente sobre o papel social da ciência (Freeman, 1992).

O Reino Unido cria em 1945 o Comitee on Future Scientific Policy e, em 1947, o Advisory Council for Social Science Policy. Alexander King afirma que a OCDE, no início dos anos 1960, estabelece o Relatório Piganiol, a primeira apresentação pública do que hoje se designa por "política de ciência" (King, 1974). Também para Salomon (1977), só a partir da 2ª Guerra mundial é que as intervenções públicas para a ciência e a tecnologia adquiriram uma forma explícita, organizada e institucionalizada, dando ao novo campo o reconhecimento através de organismos estatais, com mecanismos, procedimentos e um corpo burocrático e político especialmente dedicado a lidar com C&T. Tanto Salomon como King chamam as tentativas norte-americanas e soviéticas antes desse período de pré-política científica.

De acordo com o trabalho de Piganiol e Villecourt (1963) (Ruivo, 1998), a política científica deveria corresponder a dois objetivos maiores: permitir aos cientistas desenvolverem seus trabalhos de descoberta de explicações para fenômenos ainda incompreendidos e permitir às autoridades públicas e privadas assegurar a utilização desses conhecimentos e orientar certas investigações no interesse do maior número de pessoas. Já Salomon entende por política cientifica as medidas tomadas por um governo para, por um lado, encorajar o desenvolvimento da investigação científica e tecnológica e, por outro, explorar os resultados da pesquisa, tendo em vista os objetivos de políticas gerais (Ib., p. 65). Vê-se que, neste período, a compreensão da política de C&T incorpora uma visão "idílica" da produção do conhecimento, ainda relegando à sua "apropriação" um caráter secundário.

No início dos anos 60 uma abordagem mais sistemática da inovação tecnológica será desenvolvida, com os trabalhos pioneiros de Nelson, Rosemberg e posteriormente Freeman, Perez, Dosi, entre outros. Nelson, falando do "tecno-nacionalismo", dizia que ganhava força uma "forte crença", segundo a qual as capacidades tecnológicas das firmas de uma nação seriam a chave de seu poder competitivo e que estas capacidades, em um sentido nacional, poderiam ser construídas por uma ação interna a cada nação. Esse entendimento e mesmo o clima da época geraram grande interesse nos sistemas nacionais de inovação, entre suas similitudes e diferenças, bem como na dimensão e na forma pela qual estas diferenças explicam a variedade de performances econômicas (Nelson, 1993).

O conceito, ainda na expressão de Nelson, representa um conjunto de instituições cujas interações determinam a performance da inovação das firmas nacionais. O sistema não representa aqui o fato de que as instituições que o constituem ajam coerentemente e de forma tranquila, mas simplesmente que os atores institucionais dele participantes jogam um papel que influencia a inovação.

Por outro lado, em muitos campos da tecnologia, a exemplo dos campos farmacêutico e aeronáutico, um número de instituições é ou age de forma transnacional. Isto levanta inclusive um problema sobre a pertinência do conceito de sistema nacional de inovação, pois, num mundo onde as firmas, os mercados, a tecnologia e os negócios são cada vez mais mundializados, faz sentido ainda hoje falar em sistema nacional de inovação?

A definição de sistema nacional de inovação, como inicialmente proposta por Freeman (1987), o considera uma rede de instituições nos setores público e privado cujas atividades e interações iniciam e difundem a nova tecnologia. A relevância das instituições está diretamente relacionada ao reconhecimento de que uma boa parte do conhecimento incorporado no processo de inovação é tácita e, portanto, se configura em pessoas e instituições. A estrutura institucional científica e tecnológica e a rede (network) de relações de cooperação que apoiam a inovação num país provêm de uma instância em que a questão "quem somos nós?" - o "nós" representando as firmas e instituições imersas numa rede de relacionamentos ativadas para a inovação num determinado país - é de extrema importância. Redes de instituições acumulam conhecimento tecnológico ao longo do tempo e quanto maiores são seus conhecimentos, mais fácil é descobrir e absorver conhecimento novo. A dimensão cumulativa da ciência e da tecnologia provê as bases para crescentes retornos na acumulação de conhecimento e mesmo a persistente aglomeração de atividades tecnológicas particulares em algumas regiões e lugares, na medida em que não são destruídas por mudanças radicais nos paradigmas tecnológicos ou por fortes políticas adversas e atitudes estratégicas de corporações (Freeman & Perez, 1988).

Para Patel e Pavitt (2000), do Science Policy Research Unit da Universidade de Sussex, pode-se definir um sistema nacional de inovação como sendo "a maneira pela qual as instituições são implicadas na produção, na comercialização e na difusão de novos produtos, processos e serviços mais bem-sucedidos (isto é, a mudança técnica), mas também a forma pela qual as estruturas de estímulo e as capacidades destas instituições influenciam a taxa de crescimento e a direção de tais mudanças".

Patel e Pavitt (2000), em estudo no qual procuram estabelecer os elos institucionais entre as atividades de P&D das firmas e a pesquisa fundamental financiada pelos fundos públicos nas universidades e organismos associados, entendem que os estudos empíricos confirmam a existência de sistemas nacionais de inovação. É neste contexto que examinam as incidências da globalização das atividades das firmas sobre os elos tão privilegiados entre a base cientifica nacional e as atividades nacionais de inovação.

Em pesquisa baseada na análise sistemática de 359 grandes grupos mundiais (entre os 500 maiores da lista da revista Fortune), ativos no plano tecnológico nos anos 1990, Patel e Vega (1997) revelam que as firmas continuam a executar uma proporção elevada de suas atividades de inovação nos seus países de origem. As atividades de inovação das firmas japonesas são as menos mundializadas e aquelas das firmas europeias, as mais mundializadas. Na Europa as atividades tecnológicas das empresas levadas a cabo fora de seus países de origem são maiores para as firmas originárias dos pequenos países (mais de 50% no caso das grandes empresas belgas, holandesas e suíças), que para aquelas originárias dos grandes países (um terço no caso das firmas francesas, alemãs e italianas).

"Do início dos anos 1980 à metade dos anos 1990, as grandes firmas aumentaram a proporção de suas atividades de inovação desenvolvidas fora de seu país de origem em somente 2,4%". Os autores assinalam ainda que a maior parte do incremento das atividades tecnológicas no estrangeiro foi muito mais uma atividade decorrente das aquisições de outras empresas estrangeiras, do que efetivamente uma reconfiguração internacional das atividades de P&D [6]. A conclusão destes autores é que os sistemas nacionais de inovação, em que uma base científica forte está ligada às grandes firmas nacionais inovadoras e competitivas, se mostram um caminho desejável, seja para o governo, seja para as empresas, seja para a sociedade como um todo, mas é necessário não esquecer que estes sistemas estão cada vez mais submetidos a tensões crescentes provocadas pela mundialização, que tem acarretado: i) liberalização; ii) desigual nível tecnológico entre países; e iii) extensão do número de competências que as firmas devem dominar a cada dia.

4. A colonização do tecnológico pela finança mundializada

François Chesnais (2003b) estabelece uma diferença importante com a escola evolucionista, ao assinalar a hierarquia conquistada e a amplitude dos meios postos em ação pelos Estados Unidos da América e pelos segmentos mais poderosos do capital, no sentido de preservar as relações de dominação política e social e os modos de vida que o acompanham. Portanto, distancia-se dos neoevolucionistas ao colocar como central a determinação política e social do processo de acumulação de capital. A orientação de parte importante do orçamento científico e tecnológico dos EUA para fins militares e, agora, para projetos "totalitários" de apropriação-expropriação do ser vivo "é a manifestação mais evidente, dando um conteúdo sinistro à sociedade que veria o triunfo do capital cognitivo".

A reflexão realizada por Orsi e Coriat (2003) procurou, na sequência da crise da bolha, do seu impacto sobre a Nasdaq e das inúmeras falências que seguiram a queda das Bolsas, entender o processo de complementaridades construído, principalmente nos EUA, entre um regime de direitos de propriedade intelectual e um conjunto de regulamentações inéditas sobre o mercado financeiro, que permitiram a promoção das chamadas "firmas inovadoras". Tal reflexão reforça a hipótese de Chesnais sobre o lugar prioritário de análise do financeiro e não do tecnológico.

Os autores examinam a série de mudanças ocorridas nos últimos vinte anos nos Direitos de Propriedade Intelectual (DPI), promovidas pela administração e pela justiça norte-americana. Em primeiro lugar, a abertura do domínio das patentes para novos atores, no caso, as universidades e laboratórios de pesquisa acadêmicos, já que uma nova legislação autorizava o depósito de patentes sobre os produtos de suas pesquisas, quando se trata de instituições financiadas por fundos públicos.

Para Orsi & Coriat, este passo foi dado com a aprovação do Bayh-Dole Act (1980) que introduziu uma série de disposições novas e complementares. A primeira, como já assinalado, foi a autorização para o depósito de patentes sobre os resultados de pesquisas financiadas com fundo público. Por outro lado, abriu-se a possibilidade de cessão dessas patentes sob forma de licenças exclusivas a firmas privadas ou de constituição de joint ventures, associações cujo objetivo será o de tirar partido dos conhecimentos desta forma cedidos, seja para fins de comércio, seja para sua viabilização enquanto produtos comercializáveis. O resultado foi a explosão do número de patentes depositados pelos laboratórios públicos.

O Bayh-Dole Act veio provocar uma mudança fundamental na prática da pesquisa acadêmica, com a formação em todas as grandes universidades norte-americanas dos escritórios de transferência de tecnologia (Technological Transfer Offices). Como consequência direta, estas instâncias passam a jogar um papel decisivo na orientação da pesquisa, com uma ação que privilegia aquelas pesquisas suscetíveis de serem patenteadas no prazo mais curto. Ainda, em numerosos casos, estas ações poderão incidir no retardamento da publicação dos resultados científicos, submetendo-se a publicação a depósitos de patentes prévios. Estes novos procedimentos permitidos pela lei alteram completamente a natureza do entendimento e sentido de "bem público" que revestia até então a informação científica.

Outra mudança forte decorrente do Bayh-Dole Act foi a entrada do capital financeiro no mundo da produção do conhecimento. Em 1984, uma regulamentação da NASD [7] permitiu a colocação no mercado e a cotização de firmas deficitárias, sob a condição que estas disponham de um forte "capital intangível", que se constitui basicamente de direitos de propriedade intelectual. Outras alterações de dispositivos legislativos foram realizadas, como o prudent man, para permitir que os fundos de pensão fossem autorizados a investir uma parte de seus ativos em títulos de risco, o que antes era proibido. Com isto, viu-se a entrada no mercado de valores financeiros de um conjunto de firmas novas, deficitárias, mas julgadas, em razão de seus ativos intangíveis, como de "alto potencial".

Foi desta maneira que se criou no mercado norte-americano uma complementaridade institucional entre os mercados financeiros e os Direitos de Propriedade Intelectual, fazendo com que uma boa parcela da "nova economia" encontrasse aqui sua origem. Os resultados nefastos destas medidas estão, em primeiro lugar, na apropriação do processo do conhecimento por firmas privadas e, em segundo lugar, na condução do mesmo por interesses imediatistas, voltados para a mercantilização. Na prática, como já temos visto, tal mercantilização ocorre de forma inaceitável, seja no caso dos fármacos relacionados à Aids, de modo que as populações mais necessitadas não têm acesso aos medicamentos necessários, seja pelo abandono de pesquisas em doenças que atingem os países pobres, de pouco interesse para os grandes oligopólios.

5. O aquecimento global

Em seu 4º Relatório, publicado em 2007, o Grupo Intergovernamental de Experts sobre o Clima (GIEC), com mandato da Organização das Nações Unidas, confirmou o papel de homens e mulheres no aquecimento global, uma constatação importante no curso da 2ª metade do século XX. 

A tentativa atual de conter a alta das temperaturas em menos de 2° Celsius, para reduzir o risco de mudanças extremas e dramáticas, representa dividir por mais de duas vezes as emissões mundiais e, portanto, ao menos quatro vezes aquelas emissões dos países ricos, até 2050. Alguns países desenvolvidos estão se engajando no processo, e a França, por exemplo, em 13 de julho de 2005, assinou o objetivo "Fator 4", do artigo 2° da lei do programa que fixa as articulações da política energética [8]. A virada do milênio presenciou um número recorde de desastres naturais e extremos de calor: inundação em Bangladesh (1996); ciclone em Orissa (Índia, 1996); inundações na Venezuela (1999); tsunami no Oceano Índico (2004); o furacão Katrina que inundou New Orleans em 2005; a grande estiagem do Rio Amazonas em 2006.

O 4º Relatório do IPCC afirma que não houve tendências claras sobre ciclones tropicais e tornados, mas que aumentou a frequência de secas mais intensas e duradouras e de episódios de muita chuva desde 1970. Outro dado é que a temperatura global média do ar aumentou 0,74º C entre 1906 e 2005. Isso significa que a primavera no Hemisfério Norte está sendo antecipada em 10 dias.

Outras conclusões presentes no mesmo relatório são: 11 dos 12 últimos anos foram os mais quentes desde 1850; o nível médio do mar aumentou 1,6 milímetro por ano entre 1993 e 2003 (ao longo do século 20, foram cerca de 17 centímetros); a cobertura de neve e a extensão das geleiras diminuíram nos dois hemisférios; a área máxima coberta sazonalmente por gelo no Hemisfério Norte decresceu 7% desde 1990 (ou seja, os invernos lá estão menos rigorosos).

Estas constatações foram reforçadas no recente pronunciamento de Rajendra Pachauri (2008) perante o Fórum de Davos, quando, baseado no 4° Relatório, afirmou que, se não forem mitigadas, as mudanças climáticas podem ter sérias implicações para o bem-estar econômico da sociedade humana. E apontou dois dos maiores achados do estudo:

• O aquecimento do sistema climático é inequívoco, como fica evidente pelas observações sobre aumento das temperaturas do ar e dos oceanos, amplo derretimento da neve e do gelo e aumento do nível do mar.

• Também são mais fortes e agudas as descobertas relacionadas à influência humana sobre a mudança climática transmitidas pelo relatório: a maior parcela dos aumentos nas temperaturas desde a metade do século XX é devida a fatores antropogênicos.

Conclusões

Poder-se-ia continuar com novos exemplos sobre os efeitos do sistema baseado no mercado de consumo, nos combustíveis fósseis e na estrutura do atual capitalismo de corporações e das finanças. Mas é necessário chamar a atenção para o fato de que estes desastres ambientais impactam com muito maior força as regiões e populações da periferia. O Banco Mundial (2000) informa que, entre 1990 e 1998, cerca de 94% dos maiores desastres mundiais ocorreram nos países em desenvolvimento, onde também ocorreram 97% das mortes a eles relacionadas.

Atividades predatórias, que interferem na vida econômica, social e ambiental como o desmatamento, as queimadas, a inexistência de saneamento básico nas áreas da pobreza urbana e rural, a destruição indiscriminada dos manguezais, as construções habitacionais em zonas tidas como non aedificandi, são resultantes da pobreza, da pressão por moradia e da luta pela sobrevivência (Costa Lima, 2002). Esses processos são decorrentes da forma de acumulação vigente no capitalismo, que emprega cada vez menos pessoas nos circuitos formais da produção, provoca ou estimula a obsolescência programada dos produtos industriais num modelo voltado para o consumo de massa. Sabe-se hoje que o grande impacto ambiental, aquele que deteriora massivamente o planeta e gera os desastres ambientais, é oriundo em larga medida dos países centrais, o que não quer dizer que os países periféricos e a forma de desenvolvimento por eles adotada não contribuam para o agravamento do problema.

Nos últimos 50 anos, o total da produção econômica global cresceu de U$ 4.9 trilhões para mais de U$ 29 trilhões, aumentando em seis vezes a riqueza, quando a população mundial aumentou duas vezes (Worldwatch Institute, 2000). Hoje, a escala e o ritmo da produção e do consumo industrial (incluindo a agricultura neles envolvida) estão utilizando os recursos naturais de forma mais rápida do que a natureza pode repor. Estão destruindo os ecossistemas que fornecem serviços vitais e os sistemas que garantem a vida, bem como danificando as funções essenciais da Terra, como a circulação da água, do nitrogênio e do dióxido de carbono. A Terra não tem sido capaz de absorver dejetos, prover os recursos naturais nem manter as reservas de água limpa e de ar tão rapidamente quanto se está demandando.

Do ponto de vista da teoria econômica mainstream, do pragmatismo e da mão invisível, há muito a considerar: por exemplo, recursos como água potável, ar, corais e o mar não podem continuar a ser encarados como se fossem livres e inesgotáveis. Um outro grande problema não enfrentado, na prática, pela grande maioria dos neoclássicos é o longo prazo [9]. Suas decisões são quase sempre relacionadas ao curto prazo, sobretudo porque associadas ao rentismo das Bolsas de Valores. O risco de longo prazo, os custos relacionados aos recursos humanos (mão de obra de baixa qualificação) e ambientais são ignorados na maioria das vezes.

Com relação às políticas ambientais, segundo afirmaram Fontaine, van Vliet e Pasquis (2006, p. 17), fica claro que estas não se restringem nem a um mero problema de gestão nem tampouco a um problema de governo. São muito mais "a combinação de estruturas institucionais (regras do jogo e agentes estatais) com processos participativos que envolvem atores sociais e atores de mercado, que definem as condições de qualidade das políticas públicas".

Foram aqui explicitados os elementos que demonstram que o capitalismo contemporâneo, com todos os seus avanços tecnológicos, tem sido incapaz de resolver os problemas relacionados ao emprego, à degradação ambiental, ao bem-estar e às condições condignas da maior parcela da população do planeta. A comunidade mundial necessita construir novas instituições, novas interações políticas que sejam capazes de levar a um desenvolvimento alternativo e a uma mudança de paradigma, na direção da equidade, da democracia real e da sustentabilidade ambiental [10]. Esta não é uma tarefa fácil nem ligeira, sobretudo porque uma comunidade mundial só existe a partir de comunidades nacionais que conformam as relações políticas internacionais. E estas comunidades locais, nacionais, regionais e internacionais precisam se inteirar de fato dos desafios atuais, para poder, juntas, construir alternativas viáveis à destruição e à barbárie.

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Marcos Costa Lima é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Este artigo tem o título original de "Capitalismo financeiro, inovação tecnológica e aquecimento global: as relações complementares".

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Notas

[1] "Comumunication to the 35th Annual Conference on Bank Structure and Competition of the Federal Reserve Bank of Chicago". Problèmes Économiques, 1° dez. 1999.  

[2] O Le Monde (22/10/2002) informava que mais de 8 trilhões de dólares foram "queimados" após a segunda metade do ano de 2000.

[3] Chesnais continua: "Nos EUA, 40 milhões de assalariados titulares de um plano de poupança chamado ‘401 K’ tiveram boa parte de suas aposentadorias ameaçadas".

[4] IPCC. Climate Change 2007: The Phisical Science Basis. Summary for Police makers.

[5] "Cabe destacar que até o final do século XX as mudanças giraram em torno das empresas transnacionais. Em 1985, não mais que 600 destas empresas, cada uma delas com vendas superiores a 1 bilhão de dólares, geraram a quinta parte do valor agregado total (exclusive o ex-bloco socialista) dos setores industrial e agrícola" (Mortimer, 1993, p. 42).

[6] Patel (1995), em pesquisa na qual estudou uma amostra de 600 empresas multinacionais, demonstrou que, no final dos anos 1980, cerca de 60% das firmas não desenvolviam atividades tecnológicas no estrangeiro.

[7] National Association of Securities Dealers, instância que, sob a autoridade da SEC (Security Exchange Comissions), está encarregada de cuidar da regulamentação e da segurança das transações na bolsa Nasdaq.

[8] Algumas associações e ONGs já tomaram a si a responsabilidade de propor medidas capazes de atingir os resultados da emissão de CO2, como propôs a Associação Virage–Énergie Nord Pas de Calais. Na escala regional, como afirma o documento, agir é tanto mais urgente quando a região é mais vulnerável e o conhecimento real dos problemas nesta escala é muito mais próximo aos cidadãos e às instituições, que deixam de perceber os problemas quando muito abstratos.

[9] Autores como Alfred Marshall e seu aluno e sucessor na cátedra de Economia Política em Cambridge, Arthur Cecil Pigou, também intitulados de economistas neoclássicos, tiveram preocupações com questões sociais e defenderam a intervenção do Estado em áreas onde existiriam "falhas de mercado". Pigou, inclusive, desafiou doutrinas econômicas vigentes e a tradição neoclássica em relação à substituição da ação industrial privada pela do Estado. Os seus trabalhos, portanto, ficaram conhecidos como Economia do Bem-Estar (Welfare Economics).

[10] Por democracia real estamos nos referindo aos processos de participação política ampla, que representem também maior participação na distribuição do produto e das relações de poder.

Referências

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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