Uma das profecias mais frágeis de que se tem notÃcia foi aquela que anunciou há pouco mais de vinte anos, com a implosão do comunismo "realmente existente", o fim de toda a história. TerÃamos chegado a uma forma polÃtica definitiva - uma versão débil da democracia liberal, concebida como mero rodÃzio de elites incapazes de visões alternativas -, homóloga em relação ao funcionamento de certo tipo de mercado, com crescente dominância financeira, livre das regulações social-democratas do pós-guerra ou mesmo, um pouco antes, da época do reformismo rooseveltiano.
A ideia, tornada senso comum, é que terÃamos passado a viver um eterno presente, capturado eficientemente pelo famigerado acróstico "Tina" - there is no alternative - da lavra de uma das dirigentes mais endurecidas do novo curso inevitável das coisas. A palavra "social" aparecia como um adjetivo inútil, e, radicalizando este modo de pensar, melhor seria dissolver a noção de "sociedade" e considerar apenas indivÃduos e interesses particulares que a compõem à maneira de átomos.
Não cabe adotar aqui o ponto de vista do juÃzo final e decretar retoricamente a falência do capitalismo. Mais ainda, deve-se admitir que os espÃritos animais do capital globalizado, liberados, golpearam definitivamente até as novas muralhas da China, ocasionando uma das mais surpreendentes transformações da história e promovendo a vinda ao mundo moderno de centenas de milhões de pessoas. Com todas estas cautelas, é autoevidente que os acontecimentos destes anos, com a Grande Recessão que remete aos idos de 1930, feriram de morte a ideia de um capitalismo sem crises e de uma democracia débil, submetida ao império das categorias econômicas.
Na verdade, a dissonância entre polÃtica e economia parece estar no centro do mal-estar que nos aflige. A impotência da primeira manifesta-se, entre outros sintomas, na falta de instrumentos de governo da dimensão sistêmica da economia, que se tornou global e unificou definitivamente o gênero humano, ainda que de uma forma desigual e, ao que tudo indica, ambientalmente insustentável.
Podemos estar no começo de um bem-vindo retorno da polÃtica - e dos sujeitos -, num movimento que, como nos anos 1960, abrange situações muito diversas, como as praças das revoluções do mundo árabe, os indignados da Porta do Sol em Madri e outras cidades europeias, para não falar dos surpreendentes "habitantes" da Praça Zuccotti, em Nova Iorque. Neste último caso, os acampados podem até ceder diante da inclemência do inverno próximo, o que, no entanto, não autoriza diminuir o sopro de renovação que podem vir a ter para a esquerda dos Estados Unidos, no seu sentido lato, e de todo o mundo.
Os habitantes da Praça Zuccotti situam-se num mundo em que o virtual e o real se cruzam de modo muito significativo. O idioma que falam está longe de ser unÃvoco e talvez esteja mesmo fadado a ser plural - contraditoriamente plural -, com acentos utópicos e possivelmente irrealizáveis. Em suas assembleias gerais, conduzidas segundo os procedimentos de uma "democracia direta", formulam-se exigências claras de responsabilização do setor financeiro e de luta contra as desigualdades crescentes que minaram o sonho americano de uma grande sociedade constituÃda majoritariamente por extensas camadas médias.
Mas há mais do que isso, pois o desafio é também a um sistema polÃtico que não funciona e parece entrincheirado, como que constituÃdo por uma só casta incapaz de representar adequadamente a cidadania. Critica-se não só o Partido Republicano - capturado sectariamente por uma direita anti-intelectual, à s turras com boa parte da ciência contemporânea, especialmente a que estuda o clima, e até com Darwin -, mas também o Partido Democrata, como se ambos fossem pura e simplesmente os dois braços de um mesmo partido: o da grande propriedade.
Pode haver nisso uma certa pulsão anti-institucional, uma vontade de não se dobrar à "cooptação", o que é compreensÃvel em momentos inaugurais. Mas a tentação de constituir-se obstinadamente em contrassociedade, oposta ao mundo "convencional", muitas vezes termina em opção pelo espÃrito de gueto, incapaz de falar a todos. E a experiência histórica também ensina que uma outra obstinação - a ênfase unilateral nos mecanismos da democracia direta - tem redundado em formas complicadÃssimas (e, portanto, absurdamente indiretas) de exercÃcio de poder, com escasso ou nenhum respeito pelas minorias e pelos processos de alternância normais numa comunidade polÃtica moderna.
A esquerda americana e, em geral, a esquerda em toda parte só foi capaz de mudar suas respectivas sociedades, nelas imprimindo a marca de justiça social, quando conciliou produtivamente participação e representação. Foi assim no perÃodo áureo do reformismo rooseveltiano ou das social-democracias europeias: a construção do Estado de bem-estar social não foi dádiva ou projeto gestado por elites "esclarecidas", mas fruto de intenso conflito entre diferentes ideias de convivência. Um conflito travado, evidentemente, segundo as regras de uma democracia polÃtica que se reinventou e aprofundou, garantindo, por exemplo, a livre organização dos trabalhadores e universalizando os direitos polÃticos.
É provável que estejamos no limiar de um ciclo de grandes esperanças. A nova esquerda dos anos 1960, portadora de instâncias antiautoritárias que em parte se cumpriram, em algum momento deixou-se levar pela tentação da violência, favorecendo a grande maré conservadora que se seguiria. Hoje, a indignação dos jovens - e não tão jovens - merece tornar-se força transformadora e capacidade hegemônica, o que só é possÃvel através de uma democracia renovada por atores comprometidos com um explÃcito regime de liberdades.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.