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Lembrando os anos 1930

Luiz Sérgio Henriques - Janeiro 2012
 

No fim de um ano dramático, que fez desfilar diante de nós os penosos desdobramentos da crise iniciada com as hipotecas podres americanas e que, agora, atinge em cheio o projeto de unificação europeia, seria irresistível a tentação do pessimismo e até a adoção de tons apocalípticos, não fosse a lição do poeta, mineiro e universal, a nos advertir que o último dia do ano não é o último dia do tempo, muito menos o último dia de tudo.

Feita a ressalva poética, cuja ironia nos autoriza a manter, apesar dos pesares, o otimismo da vontade, cabe admitir em sua abrangência os efeitos de uma situação que começa a extravazar poderosamente da economia para a política, suscitando opiniões que aludem, por analogia, a um dos períodos mais críticos do século XX. De fato, o que agora crescentemente se toma como referência é o período que testemunhou a longa guerra civil europeia, iniciada em 1914 e concluída com o conflito generalizado entre 1939 e 1945. No meio de tudo isso, a Grande Depressão dos anos 1930.

Então, como agora, havia um diagnóstico generalizado em diversas áreas políticas e vocalizado de modo semelhante por intelectuais do amplo espectro democrático, com exceção, naturalmente, dos adeptos das soluções corporativas e nacionalistas representadas pelo fascismo e pelo nazismo. O diagnóstico considerava que o século XX, além de assistir à emergência irresistível das massas, padecia de uma contradição insanável. Por um lado, os laços econômicos se internacionalizavam e tornavam os diferentes sistemas nacionais cada vez mais dependentes uns dos outros; por outro, a incapacidade de governar politicamente tal internacionalização fazia com que nações-chave se fechassem nas próprias fronteiras, estimulando um nacionalismo agressivo ou, no caso do nazismo, abertamente belicoso.

O contexto crítico dos nossos dias, com a depressão econômica que se aprofunda, parece suportar a analogia. Pode-se hoje falar, sem metáfora de nenhum tipo, de uma economia-mundo, ou seja, de um sistema econômico mundial, formado, no entanto, a partir de forças de mercado livres de qualquer regulação democrática. O esvaziamento da política ou sua irrelevância como expressão da soberania popular assumem por vezes níveis inéditos. Para dar um exemplo desta irrelevância, veja-se a Bélgica, um país que, de resto, é a "capital" da Europa unificada. Pois este país emblemático, das eleições parlamentares de meados de 2010 até há poucas semanas esteve sem governo formalmente constituído, como se isso fosse rigorosamente dispensável.

Deixemos de lado a especificidade belga constituída pela fratura interna entre flamengos e francófonos, que não é o caso de analisar aqui. O exemplo só nos interessa como sintoma de que, uma vez mais, os fatos da economia parecem um "processo histórico natural", não governado ou pobremente governado por instâncias políticas incapazes de propiciar segurança social e garantir aos cidadãos, seja no plano nacional, seja no das instituições supranacionais, um mínimo de participação e sentido de pertencimento.

A mais recente voz a fazer soar o alarme foi Paul Krugman, ao sublinhar a precária situação da democracia em outro pequeno, mas representativo, país da mítica Mitteleurope. Na Hungria, diz-nos Krugman, o partido Jobbik comporta-se segundo o ritual e os "valores" do nazismo, a começar pelo antissemitismo e o patrocínio de um "braço armado". E o partido de governo Fidesz, amplamente majoritário, desenvolve políticas de ocupação permanente do poder - anulando a diferença entre partido e Estado -, partidariza e "aparelha" o Judiciário, além de promover a inviabilização da alternância e de estatizar a mídia, tornando-a veículo de propaganda dos donos eventuais do poder. Um quadro no qual, segundo Krugman, embora não haja um Hitler à vista, a possibilidade de colapso do euro seria um problema relativamente menor para as elites políticas europeias e o projeto de unificação.

Nos anos 1930, como se sabe, havia uma esquerda comunista à frente de um Estado poderoso, que, num percurso acidentado por parte de todos os envolvidos, terminaria felizmente por se associar às democracias ocidentais para derrotar o desafio nazifascista à civilização. Ainda no Ocidente, especialmente na França e Espanha, comunistas e socialistas puderam se encontrar em trincheiras comuns, ao lado de democratas "burgueses", como então se dizia, a partir das políticas de "frente popular". (E até no Brasil, em contexto diverso, a experiência da ANL, em 1935, sem contar o desastrado desfecho violento, merece figurar como sinal de aglutinação das massas urbanas e tentativa de ampliar a democracia.)

Tudo isso é verdade e deve ainda inspirar aqueles que, à esquerda, preocupam-se hoje com o destino dos seus próprios países e, ao mesmo tempo, mantêm como horizonte uma sociedade mundial cosmopolita, culturalmente articulada e socialmente mais justa.

É verdade, mas não toda a verdade. O comunismo histórico, portador de reivindicações de mudança substantiva comandada por uma "classe universal", nascera de uma ruptura com a democracia política, cujo sistema de garantias deveria ser suspenso na hipótese de uma tomada revolucionária de poder e construção da nova sociedade sem classes. Aí, como ficaria sempre mais claro, o seu "pecado oriental", de que derivariam sociedades fechadas, as quais seriam repudiadas pelas respectivas populações nos acontecimentos sintetizados simbolicamente na derrubada do muro de Berlim.

Para evitar este resultado catastrófico e, também, atuar produtivamente na crise atual, uma estratégia sensata deveria levar as esquerdas a dialogar com a tradição liberal, reformando-se para incorporar, entre outras, a dimensão do pluralismo.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.




Fonte: O Estado de S. Paulo, 1 jan. 2012.

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