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Silêncio, Cuba - com outros olhos

Sérgio Augusto de Moraes - Janeiro 2012
 

Claudia Hilb. Silêncio, Cuba. A esquerda democrática diante do regime da Revolução Cubana. Trad. Miriam Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 111p.

Antes de comentar o livro de Claudia Hilb, faço uma consideração sobre uma frase de Fernando de la Cuadra, autor de resenha sobre o mesmo publicada no site Gramsci e o Brasil.

Não me parece condizente com a história - não a contada pelos escribas ou pela mídia ligados ao sistema hegemônico liderado pelos EEUU, mas a história real - a afirmação de de la Cuadra: "[...] o socialismo real se apresentava aos nossos olhos - junto com o fascismo - como um grande pesadelo do século XX [...]".

Não fazer uma distinção clara entre esses dois sistemas - por suas origens, teorias inspiradoras, seus valores, seus fundamentos políticos, econômicos e filosóficos, suas realizações - é miopia histórica e não contribui para enriquecer a biografia do jovem pesquisador.

Mas vamos ao ensaio de Claudia Hilb [CH]. Seu ponto de partida declarado é desvendar o porquê do silêncio da esquerda democrática frente aos traços autoritários do regime cubano. Entretanto, por mais que se busque, não aparece em seu livro se a esquerda democrática à qual CH se refere visa ultrapassar ou não o capitalismo. Daqui a primeira carência do ensaio: que alternativa, que via deveriam os revolucionários cubanos buscar para, nas condições dos anos 1960 e 70, fazer uma revolução na educação, uma reforma agrária profunda, levar saúde para todos e instaurar um regime com mais justiça social e mais democracia?

Também não me parece correto assinalar um "silêncio cúmplice" das esquerdas em relação aos erros da revolução cubana, deixando de lado as inúmeras críticas que partidos e personalidades de esquerda, em todo o mundo, dirigiram aos métodos e concepções dos dirigentes cubanos. O próprio Partido Comunista Brasileiro, logo após o golpe de 1964, encaminhou críticas aos dirigentes cubanos, em particular ao modo como eles encaravam o combate às ditaduras na América Latina.

CH aponta com relativa precisão problemas que me parecem reais no curso da Revolução Cubana. A concentração de poder nas mãos de Fidel Castro, o cadente entusiasmo de boa parte do povo, a redução progressiva do espaço interno para críticas, etc. Mas ao buscar as fontes de tais desvios ela comete alguns erros: em primeiro lugar não leva na devida conta o que marcava a fundo aquela época, a Guerra Fria, a luta de morte entre dois sistemas mundiais, um deles liderado pela URSS, o outro pelos EEUU. Se estes fizeram o que fizeram no Vietnã, do outro lado do mundo, não é difícil imaginar sua reação à uma tentativa de implantar o socialismo a 160 quilômetros da Flórida.

"Só nos primeiros 14 meses após a invasão da Baía dos Porcos (abril de 1961), os EEUU patrocinaram, financiaram ou organizaram 5.780 ações terroristas contra Cuba, 700 delas contra fábricas, usinas de açúcar e equipamentos industriais, causando prejuízos incalculáveis e tirando a vida de 234 pessoas [...]. Em 1971, com Nixon na Casa Branca, a CIA desembarcou em Cuba um contêiner contaminado com um desconhecido vírus africano da peste suína, que provocou o sacrifício de 500 mil porcos [...]. Não houve um só dia, ao longo desses 47 anos, em que o país não tivesse sido vítima de atentados a bomba, sequestros e provocações de toda sorte" [1]. Como ignorar que Cuba era (e continua sendo) um país sitiado e que em tais casos é difícil tratar de maneira democrática as divergências e dissidências políticas?

Outra falha de CH é não considerar devidamente o viés negativo das condições internas de Cuba, anteriores à Revolução, nos acontecimentos posteriores à mesma. Cuba só chegou à independência em 1898 e daí até 1959 sofreu várias ditaduras, tinha uma sociedade civil pouco desenvolvida, uma economia centrada na monocultura da cana-de-açúcar, uma indústria pouco diversificada, e era um paraíso das máfias.

CH também parece menosprezar as consequências da forma principal que a luta contra a ditadura de Batista assumiu em Cuba, a luta de guerrilhas e a constituição do Exército Rebelde, sobre o desenvolvimento posterior da revolução. Os fatos são cabeçudos, diz o dito popular. Os anos de ditadura deixaram um vazio institucional enorme que inicialmente foi ocupado pelas incipientes organizações da sociedade civil e pelo Exército Rebelde. Mas, à medida que a Revolução contrariava os interesses das aristocracias locais e internacionais, ficava evidente que aquelas organizações não estavam preparadas para enfrentar a reação daquelas elites, e o Exército Rebelde passou a assumir um papel cada vez maior no país. Criaram-se novas organizações populares, de massa, mas elas não chegaram a ombrear o protagonismo daquele. É claro que isso se refletiu e se reflete na superestrutura política e na cultura do país.

CH acusa as dificuldades na economia cubana, cita rapidamente alguns avanços e se estende sobre os fracassos e retrocessos nesta área. Assinala o fracasso das tentativas "ultravoluntaristas" realizadas na década de 60 e alguns avanços nas décadas de 70 e 80, quando "[...] o regime cubano aceitou seguir completamente as indicações e as condições da URSS [...]" (p. 92).

Cuba fez dezenas de tentativas na área da economia, algumas delas exitosas, em busca de uma alternativa de desenvolvimento independente. Não foi só pelo voluntarismo dos dirigentes, como de fato aconteceu, que muitas dessas experiências fracassaram. Dadas as características do país - seu tamanho, a dimensão de sua população, seus parcos recursos, sua carência de fontes de energia -, um caminho independente, nas condições de globalização da época e na América Latina, era praticamente irrealizável.

Considerando as razões alinhadas acima, que enorme desafio tentar neste pequeno país da América Latina enveredar no caminho para uma organização social superior ao capitalismo! Tal projeto só podia ter alguma chance de êxito com a permanente renovação de condições políticas excepcionais. É isso que foi e está sendo tentado em Cuba, a isso está ligada a transformação de Fidel no símbolo da Revolução. Por quanto tempo, com quantos erros, quantos acertos, a história ainda não clareou. Nem por isso os povos deixarão de tentar uma via alternativa, antes de o capitalismo cair de podre. Porque correm o risco, se esperarem isso acontecer, de o mundo não ser mais habitável.

Em tais condições havia duas alternativas fortes: ou a capitulação diante dos EEUU ou a busca de aliança com a URSS e outros países que também tentavam uma transição ao socialismo. Para seguir no caminho escolhido, a opção por esta última era obrigatória.

Em 1970/73, o povo chileno tentou uma terceira via, pacífica e democrática, sem luta armada, para fazer essa transição. A reação dos EEUU foi terrível. Junto com a direita golpista chilena foi estabelecido um plano para inviabilizar o Governo Allende, que ia do financiamento de grevistas a ataques terroristas e assassinatos. A Unidade Popular tentou até o último lance manter a legalidade democrática. A direita chilena e os EEUU impuseram duas alternativas: a demissão de Allende ou a guerra civil. O que aconteceu no Chile com o golpe de Pinochet foi objeto de inúmeros livros, filmes, relatos, e CH talvez tenha conhecimento disso. Mas creio que a derrota da revolução chilena não significa que os povos devam abrir mão da luta por uma via democrática ao socialismo. Até hoje a Revolução Chilena inspira lutas e movimentos sociais em todo o mundo.

É por não levar em consideração os fatos acima que CH vê a concentração de poder nas mãos de Fidel Castro como fruto, não só da vontade do líder, mas principalmente como função da busca de um "igualitarismo radical". Ela correlaciona a busca da igualação social, as medidas para estender a todos boa saúde e boa educação, com a concentração do poder. As duas coisas aconteceram em Cuba? Sim. Mas a simultaneidade não significa correlação, a concentração de poder tem outras raízes, algumas apontadas acima.

A partir das premissas de CH pode-se concluir que os milhões de miseráveis do mundo podem continuar morrendo de fome, de doenças ou mesmo sendo assassinados - em 2009, no Brasil, segundo a Unesco, 11 adolescentes foram assassinados por dia. Parece que, para ela, a igualação social pode ser feita lentamente, com as migalhas que caem da mesa onde se banqueteia o capital financeiro, e os pobres, os deserdados do mundo podem esperar.

A luta pela ampliação da democracia é sem dúvida o melhor caminho para frear a voracidade do capital. Mas o problema aparece, na via para outra sociedade, quando a revolução avança: aí o adversário, as grandes corporações e os governos que as representam apelam para a violência, como aconteceu centenas de vezes pelo mundo e, em particular, no Chile e em Cuba. As condições do mundo mudaram, a Guerra Fria acabou, mas eles continuam aplicando os mesmos métodos.

Depois da vitória do Exército Rebelde em Cuba, em 1959, as forças revolucionárias queriam e lutaram pela democracia com justiça social. E o acordo que colocou Urrutia na Presidência comprova isso. Os problemas surgiram com a reação violenta e odiosa das elites nacionais e internacionais às primeiras medidas de democratização massiva e de justiça social. Em 17/05/59 é proclamada a Lei de Reforma Agrária; poucos meses depois, em outubro, o presidente Eisenhower aprova um programa de ataques piratas aéreos e navais e a promoção de apoio direto às organizações contrarrevolucionárias dentro de Cuba. E as ações contra Cuba não param de crescer, chegando, menos de dois anos mais tarde, à invasão da Baía dos Porcos, com 1.400 homens, apoiados pela aviação norte-americana.

Depois, em 1962, a URSS coloca foguetes em Cuba, ameaçada de outra invasão, agora direta, dos fuzileiros e da força aérea norte-americana. Chegou-se perto de uma guerra nuclear, porque um país independente não podia se armar com foguetes sem a autorização dos EEUU. São eles que impõem a militarização de uma sociedade que busca uma via independente, se esta contraria seus interesses, mesmo que não seja para o socialismo. Até hoje. Os exemplos abundam.

No final CH chega a uma conclusão reveladora: "Talvez o balanço da Revolução Cubana, o balanço das revoluções de tipo socialista do século XX, deva concluir com o caráter ilusório desse sonho. [...] As revoluções, tal como as sonhamos - como a instauração de uma sociedade na qual o homem em sua livre igualdade estaria acima de qualquer forma de opressão - fracassaram" (p. 98). Analisando as revoluções como faz CH, sem levar em consideração a história e as condições objetivas, pode-se chegar a esta conclusão.

Já que estamos falando de todas as revoluções de tipo socialista, me permito uma citação de alguém que estudou seriamente o assunto: "[...] uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade" [2]. Pois bem, depois de escrever isso em 1859, diante da possibilidade de derrota da Comuna de Paris (1871), Marx que, anteriormente, havia manifestado sua discordância com a oportunidade dessa revolução, diz: "Graças à Comuna de Paris, a luta da classe operária contra a classe dos capitalistas e contra o Estado que representa os interesses desta última entra agora em uma nova fase. Seja qual for o desenlace imediato, conquistou-se dessa vez um ponto de partida novo de importância histórico-mundial" [3].

No século XX o capitalismo passou, em escala mundial, à etapa de domínio do capital financeiro, à sua fase parasitária. E as revoluções deste século, com seus erros e acertos, aqui incluída a revolução cubana, representam um novo patamar de importância histórico-mundial na luta por uma sociedade onde novas e superiores relações de produção dominarão.

Muitos procuram esconder a contribuição da URSS para viabilizar a via democrática para o socialismo. Ela foi muito grande. Não me refiro à sua luta pela coexistência pacífica entre sistemas econômico-sociais diferentes, iniciada logo após a Revolução de 1917, ou à sua contribuição à derrota do nazifascismo. Destaco particularmente o seu retorno ao capitalismo de mercado, realizado de maneira pacífica. A partir daí o caminho para uma nova sociedade não se apresenta mais como algo sem volta, como algo linear. Essa transição, sabemos agora, será complexa, com idas e vindas, avanços e retrocessos.

Por isso a esquerda democrática não silencia diante da Revolução Cubana. Ela se manifesta, encaminha críticas, aponta problemas. Mas acima de tudo ela defende essa e as outras revoluções, revela e valoriza seus acertos na busca de novas vias para superar a formação social capitalista. Com muito mais democracia.

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Sergio Augusto de Moraes é engenheiro, mestre em Econometria pela Universidade de Genebra. Trabalhou no Governo de Salvador Allende de 1971 a 1973 e foi membro do Comitê Central do PCB de 1982 a 1990.

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Notas

[1] Cf. Fernando Morais, "Apresentação". In: Ignacio Ramonet. Fidel Castro – biografia a duas vozes. São Paulo: Boitempo, 2006.

[2] K. Marx. "Prefácio" à Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 6.

[3] K. Marx, "Carta a L. Kugelmann, de 17 de abril de 1871". In: Marx e Engels. Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, v. 3, p. 264.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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