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Um clássico à parte

Antonádia Monteiro Borges - 2002
 

Raimundo Santos. Caio Prado na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. 325p.

Em sua mais recente monografia, Raimundo Santos transforma em literatura de idéias um árduo trabalho historiográfico que vem realizando. A paixão comovente do autor por seu principal personagem se traduz em minúcia, rigor e reverência. O centro deste estudo é a práxis intelectual e política de Caio Prado Júnior, porém, ao longo do livro somos convidados a percorrer processos paralelos: da vereda caiopradiana um privilegiado ponto de vista nos traz não só a história de seu partido, o PCB, mas da própria esquerda ao longo do findo século.

A publicística de Caio Prado Júnior a um só tempo fascina e afugenta. Raimundo Santos bem o sabe e por isso trata de nos familiarizar com esta forma de expressão própria do universo cultural pecebista. Neste percurso são recuperados muitos dos hiatos responsáveis pela incompreensão do tempo presente, principalmente do tempo das esquerdas. Reavivando debates adormecidos, que povoam os sonhos ou pesadelos daqueles que não podem desconsiderar a memória do PCB, mas inacessíveis a uma geração política sem passado, este livro torna-se imediatamente uma referência.

A própria classificação da obra caiopradiana, a partir de um conjunto específico de categorias, nos revela um modo peculiar de ler e compreender o valor deste pensador social. No livro de Raimundo Santos o "marxismo estranho" de Caio Prado Júnior se torna compreensível a partir do resgate tanto da sua obra, quanto de intérpretes seus. A interpretação de Raimundo Santos acerca de outras tantas interpretações da obra de Caio Prado Júnior, mais do que um caminho hermenêutico ou espiral de conhecimento - com seus avanços e recuos - nos revela o esteio básico sobre o qual se fundou grande parte dos debates políticos - notadamente os comunistas - no Brasil: o texto, ou melhor, os "eventos-texto".

O trabalho de Raimundo Santos não apenas levanta dados da cultura política dos comunistas, como reafirma a importância das revistas, editoras e dos intelectuais na conformação de uma política moderna no Brasil. Em torno de debates continuados, levados a tribunas públicas, se instituiu esta publicística que Raimundo Santos trata de animar, ao esclarecer o contexto de sua produção: seu foco não são as teses em separado, mas a efervescência de seus desdobramentos.

Raimundo Santos procura os autores - principalmente Caio Prado Júnior - em seus escritos. Esta busca cuidadosa traz à tona inúmeras leituras que tendem a se complementarem - sem enrijecimento - ao longo do livro. Na primeira parte de seu livro, o autor empreende um diálogo explícito com uma das percepções mais canônicas da obra caiopradiana, ou seja, aquela que valoriza sobremaneira seu caráter econômico. Este recorte, porém, não trata de corroborar os rótulos habitualmente atribuídos aos ensaios de Caio Prado Júnior. Raimundo Santos destaca a dimensão econômica, muito enfatizada da obra caiopradiana, qualificando assim seus interlocutores. Mas, ao mesmo tempo, demonstra que este apodo, por vezes derrogatório, pode ser recuperado de uma outra forma. A face econômica se encaixa na face política trabalhada detidamente a seguir, e ambas passam a conformar um mesmo rosto, assimétrico e paradoxal como todos e, por esta razão, verdadeiramente humano.

É justamente o semblante humano de Caio Prado Júnior o que nos cala mais fundo nas páginas de Raimundo Santos. A interpretação de passagens escolhidas da obra do pensador social tece uma espécie de fio de Ariadne através do qual somos conduzidos pelos labirintos - ora muito sombrios - de uma trajetória intelectual íntegra, com todas as implicações daí decorrentes. A luta política quixotesca de Caio Prado Júnior dentro de seu partido indica, segundo Raimundo Santos, um estado de solidão marcante em sua vida. Esta solidão resultava de um processo sabido e sentido por Caio Prado Júnior. Sem fatalismo, Caio Prado perceberia em sua própria história (de vida e a que construíra sobre o Brasil) as causas de seu isolamento.

Raimundo Santos neste volume procura dar conta deste processo de isolamento: como - um clássico político - pôde se tornar um dissidente de um partido que supostamente prezava o trabalho intelectual como base nítida de seus avanços rumo à revolução? Através de indícios recolhidos nas obras de Caio Prado Júnior, bem como nas reações a estas, Raimundo Santos constrói um argumento interpretativo da teoria caiopradiana, buscando esclarecer possíveis razões dos conflitos vividos pelo pensador.

O autor elege, por exemplo, a questão agrária como pretexto para nos aproximarmos de Caio Prado Júnior. Esta escolha não é desinteressada. O agrarismo sindical ou o seu destino foi também, segundo Raimundo Santos, em grande parte, o destino do PCB e de muitos de seus militantes. Mais uma vez, Caio Prado Júnior e seu partido mostram-se entrelaçados. A terra e os camponeses formavam categorias próprias de um simbolismo comunista, em torno das quais convergiam inúmeras teses. Apesar dessa consonância, em função de razões, habitus ou espíritos nacionais específicos, em cada país, diferentes teorias, práticas e representações políticas acerca do campesinato emergiam. O teor do debate brasileiro não fugia a essa regra. Também o argumento de Caio Prado Júnior decorria de sua posição nesta sociedade e assim sucedeu com seus oponentes. Todavia, na leitura de Raimundo Santos, o trabalho de Caio Prado Júnior consistia em subverter esta adaptação serena dos modelos.

Tais posições divergentes não só orientaram o caráter do comunismo nacional, mas a própria idéia de revolução. Para Raimundo Santos, Caio Prado Júnior, como todos os clássicos pensadores sociais, tinha por objetivo finalizar a construção da Nação. Para Caio Prado, a nacionalidade brasileira continuava inconclusa, com economia e sociedade em assimetria (não por acaso, esta é a mesma dissociação que se costuma atribuir vulgarmente à sua obra, quando aprisionada no escaninho da "história econômica"). A promoção de um verdadeiro processo civilizador ocorreria somente a partir de uma construção cívica da República. Esta República se sustentaria sobre um tripé formado pela força do trabalhador livre, da opinião pública e dos partidos. Sem fortalecer tais instituições - Caio Prado Júnior não falava da opinião pública forjada ou dos partidos poleiros, tão comuns no final dos anos 20!- não haveria fóruns consistentes e portanto debates responsáveis em favor da "republicanização da República" (p.147).

O modo como Raimundo Santos expõe sua interpretação da teoria caiopradiana revela um efeito mimético curioso: o modelo que Caio Prado Júnior construíra para o Brasil, assim como suas propostas políticas, caiam como uma luva para o seu próprio partido. Conforme Raimundo Santos, Caio Prado olhava ao seu redor, para a força das massas (assalariados e semi-assalariados e não pequenos proprietários ou camponeses) e não aceitava a idealização de um ator político quimérico, sendo que outros, mais fortes e adequados ali estavam, mesmo que não correspondendo ao padrão do PCB.

Lúmpen ou não, este era o povo brasileiro. Mais ainda, era a massa dos empregados rurais que deveria ser qualificada em seu potencial revolucionário. Na interpretação de Raimundo Santos, Caio Prado Júnior via especialmente no sindicalismo agrário o espaço para esta tomada de um lugar no mundo. A valorização do trabalho conformaria um indivíduo que, ao reivindicar melhores condições de trabalho e de consumo, acabaria se inserindo a um só tempo numa sociedade civil e num mercado interno (ambos em formação e em transformação). A reivindicação e o associativismo conformariam as bases de uma democracia que dependia de uma maior incorporação, possível apenas com a crescente institucionalização das relações sociais.

A revolução agrária proposta por Caio Prado Júnior intimamente vinculada à expansão do consumo não guardava semelhanças com nenhum modelo clássico. Nem revolução, nem consumo, eram categorias em seu sentido trivial, como pareciam apontar algumas interpretações de sua obra. O consumo, menos que uma categoria teórica, tratava-se, na obra de Caio Prado Júnior, de uma proposição utópica. Seu objetivo não era a formulação de uma nova teoria ou uma revisão do marxismo, mas subverter um olhar rotinizado, atento apenas à metade produtiva de um elo único.

Raimundo Santos sugere em sua leitura que a inovação interpretativa de Caio Prado Júnior era de tal monta - tanto no campo dito econômico, quanto no político - que só passou a ser incorporada pelos militantes do PCB, já nos derradeiros instantes de sua existência. Em alguns momentos, como depois de 45, Caio Prado Júnior insistia em resgatar uma memória que se queria efêmera. Seus vaticínios previam os episódios vistos em 64 e em toda a década seguinte. Infelizmente Caio Prado Júnior se antecipava, encontrando ao seu redor somente a compreensível descrença de quem era refém do tempo presente.

Uma das exceções era Elias Chaves Neto. Raimundo Santos nos apresenta uma leitura da obra deste jornalista, mostrando o quão árdua foi sua tarefa como aprendiz de Caio Prado Júnior, em meio àquele isolamento. Elias Chaves Neto era o intérprete mais próximo e o principal divulgador da obra de Caio Prado Júnior. Vemos os dois como numa dança, porém solitários no salão. Ambos insistiam na redefinição da política comunista. Desdobrando teses de Caio Prado Júnior, o jornalista Elias Chaves Neto em seus escritos se contrapunha às ilusões sobre o progresso, basicamente àquelas decorrentes do populismo.

Conforme interpreta Raimundo Santos, na visão de Elias Chaves Neto, a luta econômica, mesmo que necessariamente desequilibrada, deveria se dar dentro do mundo legal dos direitos. Por esta razão, para o jornalista, um movimento de democratização do país urgia. E, se a democracia política constituía o único mecanismo de real aperfeiçoamento da sociedade, coerentemente defendia Elias Chaves Neto a Constituição. Para ele este esteio formal tratava-se de condição necessária para qualquer processo revolucionário almejado. Neste sentido a contribuição de Elias Chaves Neto à cultura política local mostra-se autêntica, ainda que de pouca monta. Seus escritos prefiguravam, através de leituras e divulgação do comunismo italiano, nada menos que a bandeira da democracia, em torno da qual os pecebistas viriam a se unir num período não muito distante.

Elias Chaves Neto é fruto direto de uma semeadura caiopradiana e sua aparição no presente volume se deve à minuciosa investida historiográfica do autor. Este modo de tecer o texto na busca incessante da extensão do pensamento caiopradiano tem seu coroamento quando Raimundo Santos nos apresenta "o lugar de Caio Prado Júnior no pecebismo contemporâneo". A coleta de vestígios que marcaram momentos de inflexão derradeiros na tradição pecebista no Brasil - a saber, "o gradualismo político democrático reformador" - se volta mais uma vez para o papel de direção e análise atribuído ao intelectual e ao mercado editorial como meio de resistência naqueles tempos. Raimundo Santos toma a produção publicística de outra geração de intelectuais (e.g. Leandro Konder), a exemplo do que fez à exaustão com Caio Prado Júnior, como se fossem parte de uma teia em expansão.

Estes publicistas ocupavam um lugar semelhante ao de Caio Prado Júnior: eram a um só tempo dissidentes e militantes. Nem mesmo suas posições eram menos paradoxais que a do grande mestre. Embora isolados no partido, atuavam como militantes, apostando incondicionalmente na concretização da República através da via partidária. A reedição dos fóruns de debate - neste momento, mais do que nunca, através da circulação de artigos, principalmente na Revista Civilização Brasileira - continuava em busca de "uma melhora do marxismo brasileiro". Mesmo diante do cerceamento, a resistência destes intelectuais permitiu instalar um debate em novos moldes, que se propagou até o silêncio terminal de 1968. Além da inusitada difusão de Antonio Gramsci - "um teórico que fizera o seu marxismo em função da política" - houve também espaço para adesões não menos insólitas às querelas em torno do estruturalismo. Para Raimundo Santos, foi neste período, em meio a distintos investimentos comunistas na conquista da democracia, que as faces dos vários marxismos se tornaram mais nítidas.

Devemos notar o quanto estes debates exumados nos fazem refletir sobre um dos efeitos mais perversos dos anos de chumbo sobre a consciência política no Brasil. Por vezes, as reflexões, enterradas à força nos anos 60, nos parecem mais modernas que aquelas que se conseguiu construir nos últimos 30 anos sobre seus escombros. Passadas duas décadas da abertura, Caio Prado Júnior, como interpretado por Raimundo Santos, mantém-se perene. A que se deve tal fenômeno? Sem dúvida ao teor clássico da obra deste pensador social, mas também, por outro lado, à persistência das mesmas mazelas nacionais contra as quais Caio Prado Júnior se indispunha. A dimensão profunda da obra caiopradiana - a saber, a acuidade histórica e o interesse translúcido pela práxis concreta - trata-se ainda hoje de uma preciosidade analítica. Raimundo Santos se pergunta, em tom de absoluta reverência, se haveria atualmente no Brasil condições intelectuais e políticas de se compreender a obra e os dilemas de Caio Prado Júnior, de seus intérpretes e sucessores, no sentido proposto em seu livro.

Felizmente, tanto sua pesquisa, quanto a de outros intelectuais com quem dialoga, aponta luz no fim do túnel. O surgimento de uma abordagem mais distanciada acerca deste período da história política brasileira e de seus frutos intelectuais revela as implicações do tempo na compreensão do vivido. Um grupo expressivo de intelectuais se encontra recentemente na posição rara do engajamento distanciado, com a possibilidade concreta de resolver o impasse já apontado por Caio Prado Júnior entre resignar-se a uma teoria de caráter cosmopolita ou agir efetivamente. O presente livro de Raimundo Santos é um alento neste sentido, um testemunho e uma tradução hábil dos avanços na teoria e na militância de esquerda brasileira.

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Antonádia Monteiro Borges é cientista social e doutoranda no Departamento de Antropologia Social na Universidade de Brasília.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

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