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Caio Prado e o PCB: encontros e desencontros

Luiz Sérgio Henriques - 2002
 

Raimundo Santos. Caio Prado na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. 325p.

As pouco mais de trezentas páginas dedicadas por Raimundo Santos ao marxismo de Caio Prado Jr. constituem um desafio real para o leitor atento: nelas, com efeito, aparece a capacidade de buscar, na trajetória política e cultural do grande intelectual paulista e de seu partido, temas ainda singularmente relevantes para o moderno pensamento social, uma vez tratados sob uma ótica que saiba ver afinidades entre pontos aparentemente díspares e, inversamente, dessemelhanças entre pontos habitualmente tidos como semelhantes (Raimundo Santos, Caio Prado Jr. na cultura política brasileira. Rio de Janeiro, Maud/Faperj, 2001). Algumas das teses do autor, já expostas em trabalhos anteriores, aqui retornam com todo o vigor: entre elas, antes de mais nada, aquela que reafirma a importância do primeiro marxismo brasileiro - exatamente, o marxismo dos comunistas do PCB -, ainda quando comparado com o marxismo propriamente acadêmico, o "marxismo dos professores", que surge entre os anos 50 e 60, especialmente com os sociólogos da USP.

Esta primeira tradição marxista está longe de caber num bloco monolítico, rigidamente "marxista-leninista" e obstinadamente igual a si mesmo nas mais variadas conjunturas: por certo, há uma ortodoxia partidária e há um estilo muitas vezes fechado de direção e de pensamento, típica de um partido cujos intelectuais - a rigor, nenhum deles alçado à condição de "pensador oficial" - mantêm uma relação tensa, no limite da "dissidência", com esta mesma direção. Mas trata-se, apesar de tudo, de uma tradição variada, varrida por disputas nada formais, especialmente quando, a partir do processo de desestalinização, o grupo dirigente opta paulatinamente, em meio às asperezas e sinuosidades de um "caminho de pedras" - para retomar uma metáfora constante do autor -, por inserir-se de modo positivo nas vicissitudes da vida política nacional. Neste contexto, a presença de interlocutores do porte de Caio Prado Jr., com seu peso específico de "clássico" do pensamento brasileiro, cumpre a função crítica de apontar insuficiências da forma mentis dominante e de abrir alternativas possíveis, ainda que não realizadas ou só parcialmente realizadas.

Estamos, portanto, no terreno denso da história e da política, onde não há geração espontânea de idéias nem elas nascem prontas e acabadas da cabeça dos operadores políticos e dos intelectuais. Há permanentes pontos de contato entre o grupo dirigente pecebista, reorientado pragmaticamente no sentido da política real a partir de 1956, e o grande intelectual, autor, já em 1933, do admirável Evolução política do Brasil, pontos que ajudam a estruturar um "campo" e a compreender uma época: entre eles, em primeiríssimo plano, a solidariedade com a experiência iniciada em 1917, na URSS.

De uma certa maneira, esta ortodoxia é até mais visível em Caio Prado, cujos livros de viagens aos países do socialismo real estão longe de assinalar algum distanciamento crítico - e isso mesmo quando as insuficiências do "socialismo de Estado" já eram tematizadas publicamente desde o XX Congresso do partido soviético, e outros partidos do próprio campo comunista pesquisavam "vias nacionais e democráticas" ao socialismo, como era o caso, em especial, do partido italiano. Estas novas pesquisas, às quais Caio Prado, salvo erro, jamais se refere, tinham impacto real em setores minoritários do grupo dirigente, setores nos quais circulam, por vezes, nomes altamente significativos, como, por exemplo, Togliatti. Também parece difícil apontar nas diferentes obras de Caio Prado sobre a teoria do conhecimento qualquer "desvio" maior em relação à ortodoxia comunista predominante: pela linguagem e pelas categorias usadas, só com uma poderosa lente de aumento se poderia ver nesta obra filosófica - como o faz Jacob Gorender - infiltrações idealistas próprias do neopositivismo lógico (cf. p. 300).

Resta o fato indiscutível de que Caio Prado, mais além da adesão ao campo soviético e à teoria do conhecimento do diamat, é um dos pais fundadores da moderna ciência social, dotado de uma visão processual da história típica dos desbravadores de novos territórios: típica, precisamente, dos "clássicos". Em sua análise pioneira do estatuto colonial, Caio Prado, como se sabe, estabelece o fundamento de uma original teoria do Brasil: colônia de produção (e não de povoamento, como no modelo norte-americano, que Caio Prado, em sua obsessão "produtivista" e "americanista", sempre tem em mente), há desde o início o pecado original de um descompasso entre a economia - determinada por impulsos vindos de fora - e a população, entre a produção e o consumo, entre a nação que se iria constituir ao longo dos séculos e a imensa maioria do povo que iria habitá-la e constituí-la. A idéia de país sem povo - lembra-nos Raimundo Santos - é um dos grandes topoi dos clássicos brasileiros, e a preocupação recorrente de Caio Prado, por muitas décadas, seria a de construir uma economia política original, adequada à particularidade brasileira, que tomasse como ponto de partida e critério de eficácia a satisfação das necessidades de consumo da imensa maioria, mergulhada em imensa e inaceitável miséria material e espiritual. Para tanto, a tarefa política que se impunha e que, cumprida, teria significado uma completa inversão do sentido original da colonização - esta tarefa seria a reforma agrária.

Diferentemente do PCB, no entanto, Caio Prado insiste, coerente e imperturbável, no caráter não-camponês da reforma agrária: aqui se tratava, antes, de generalizar os direitos trabalhistas da massa rural, de organizar sindicatos, como o modo adequado de valorizar o trabalho e erradicar a miséria em escala nacional. Descartada a figura social do camponês, Caio Prado via na luta direta pela terra uma questão residual, circunscrita a determinadas regiões de conflito social agudo, que não devia ser posta à frente de uma inteligente e generalizada luta por reformas nas relações de trabalho, que terminasse, por assim dizer, a tarefa abolicionista. Este agrarismo "ocidental" de Caio Prado deveria cumprir a promessa de reconciliação entre país e povo, entre economia e sociedade, fornecendo o sólido ponto de apoio para a reconstituição da própria economia moderna e industrial em termos efetivamente nacionais. Eis o cerne do processo da revolução brasileira, segundo Caio Prado: uma revolução simultaneamente agrária e nacional, enraizada na especificidade da história do Brasil e radicalmente voltada contra o vício congênito de nossa formação social.

Raimundo Santos, neste ponto, tem a lucidez de indicar, por trás da retórica revolucionarista do tempo, o sentido profundo do programa de Caio Prado Jr.: na verdade, sem nunca abandonar a previsão do socialismo, de algum modo se chegava à idéia de um capitalismo submetido a reformas radicais, dotado de dinamismo econômico endógeno - capaz de satisfazer, em primeiro lugar, as necessidades de consumo de seu povo - e igualmente dotado de instituições políticas representativas, vivificadas pela incorporação política e social dos seres subalternos. Num só movimento, por assim dizer, seria possível "completar" a formação da nacionalidade: ao mesmo tempo, se apagaria o hiato entre país e povo e se quebraria a barreira entre país legal e país real, para mencionar um segundo topos da grande reflexão sobre o Brasil.

Em 1945, Caio Prado aparece como adepto da aliança com os liberais e crítico severo da aliança com Vargas. Nos anos 50, ei-lo, intransigente, contrário às "agitações políticas estéreis" e ao ufanismo desenvolvimentista, reprovado segundo os critérios caiopradianos de plena reconstrução nacional. No imediato pré-64, e também na Revolução brasileira, de 1966, ei-lo crítico do capitalismo burocrático, ao qual, segundo Caio Prado Jr., havia se subordinado a política comunista na conjuntura supostamente revolucionária dos anos 60. Pior ainda: este capitalismo burocrático, de vocação meramente negocista e gerado à sombra do Estado, reproduzia-se na nova ordem militar, em sua versão de direita. É que, segundo Caio Prado, na inteligente percepção de Raimundo Santos, o PCB "ocidentalizava-se" lenta e incompletamente: a revolução nacional e democrática dos comunistas ainda trazia a carga inútil do projeto "oriental" de revolução antiimperialista e antifeudal. Devia parecer insuficiente a Caio Prado, por exemplo, a interessante e progressiva defesa da democracia política efetivada por documentos partidários, como a "Declaração de Março" de 1958, ou por Nelson Werneck Sodré, em 1962, na Formação Histórica do Brasil (cf. p. 20, no livro de Raimundo Santos); do mesmo modo, insuficiente seria o agrarismo sindical pecebista, formulado, entre outros, por Alberto Passos Guimarães, ao não situar explicitamente em posição subordinada a questão da luta pela terra, enfatizando decisivamente a luta pela generalização de direitos no mundo agrário.

No novíssimo contexto da ditadura militar, no entanto, Raimundo Santos registra alguns limites da teoria política caiopradiana em relação a seu próprio partido. Como, aqui, não se fala de experiências in vitro, mas de opções tomadas por indivíduos e forças sociais no calor da hora, segundo determinadas ideologias e orientações de valor, teve seqüência e desdobramento a capacidade reencontrada pelos comunistas para "fazer política". Na segunda grande transição de que participa ativamente, o PCB - seu grupo dirigente, seus militantes, sua "sociedade civil" - amadurece, depois do período traumático das cisões favoráveis à luta armada, e presta o último grande serviço à sociedade brasileira: o PCB, como se sabe, é um dos atores que se entregam à árdua tecitura da ampla frente única estabelecida em torno do tema específico da democracia política, exercendo a moderação e a prudência em nome de um ideário que só podia nascer, em última análise, de uma visão moderna e "ocidental" de país.

Moderação e prudência: virtudes pouco "heróicas" para um imaginário "oriental" de revolução armada e violenta, mas absolutamente indispensáveis para a concretização do próprio programa caiopradiano de reformismo forte na ordem capitalista. Caio Prado, porém, parece alheio a este movimento em direção ao mundo real das coisas, a esta "obsessão pela política" de seu partido (p. 221), pelo menos nos primeiros anos do regime militar. Parece repetir-se, ao propor sempre - sem que o escutem verdadeiramente, quer em seu partido, quer na esquerda em geral - sua revolução agrária e nacional, desatento à circunstância avassaladora da ditadura. Mas Raimundo Santos nos dá a chave verdadeira desta repetição: em Caio Prado, conecta-se, de modo essencial, o passado e o presente, a visão da história como processo longo; e, por vezes, as motivações históricas mais profundas, capazes de se lançarem até as raízes do Brasil, podem permanecer abstratas do ponto de vista das tarefas políticas do dia.

O pragmatismo do grupo dirigente pecebista, em alguns de seus membros, era muito mais do que mera atitude instrumental: tratava-se, de fato, de um verdadeiro aggiornamento democrático, aberto aos ventos da renovação democrática do comunismo então liderada pelo partido italiano. Tome-se, como exemplo, Luiz Inácio Maranhão Filho, massacrado sob tortura, um comunista e democrata vocacionado para uma política de diálogo com os cristãos à moda dos italianos e de alguns franceses. Este aggiornamento tinha também uma retaguarda intelectual poderosa, à qual Raimundo Santos confere a grande honraria de última floração da tradição pecebista, em posição semelhante à de Caio Prado: os intelectuais ditos eurocomunistas - e nesta área tome-se, apenas como exemplo, Leandro Konder - trouxeram novos temas e novos autores: a revolução passiva gramsciana e a via prussiana do leninismo político, para citar dois casos que tiveram amplo curso além do estrito círculo pecebista, eram, e ainda são, instrumentos analíticos poderosos para continuar o trabalho permanente de construção de retratos do Brasil, assim como se prestam a dar respaldo às exigências de democratização radical de nossa sociedade.

Para Raimundo Santos, este grupo de intelectuais - que, de resto, iria se dispersar de múltiplas maneiras com o fim da experiência comunista - manteve com a maioria do grupo dirigente pecebista uma relação contraditória e conflitiva, mas que sempre deixou marcas nos documentos e na ação política: constituem, como horizonte intelectual, o que se poderia chamar de completa ocidentalização do comunismo brasileiro. A gênese deste grupo na histórica Revista Civilizacão Brasileira, de Ênio da Silveira, é o objeto do último capítulo do livro de Raimundo Santos e do Caio Prado que nos apresenta, como que atando duas pontas perdidas, aparentemente inconciliáveis ou de aproximação difícil. No entanto, para usar uma palavra do gosto do autor, são emblemas de uma tradição, que, não por ter sido derrotada em sua forma histórica, deixa de ser extremamente relevante e produtiva, inclusive em nossos dias.

Raimundo Santos tem cumprido, obstinadamente, um trabalho que só os tontos, que sempre os há, chamariam de arqueológico. Este trabalho talvez seja, na verdade, um dos inúmeros pré-requisitos da reconstrução de uma nova esquerda brasileira, efetivamente plural e moderna, com capacidade de orientar lutas sociais e de governar. Nos encontros e desencontros entre o PCB e seus intelectuais, vê-se um intercâmbio e um percurso extremamente variado e complexo. É certo que mudaram intensamente, nestas últimas décadas, a função e o papel dos intelectuais, assim como dos partidos. A relação entre cultura e política assume novos padrões menos instrumentais, ainda que, mais do que nunca, uma cultura que não seja essencialmente crítica muito provavelmente será cega, e uma política que não se arme de sólidos fundamentos de cultura seguramente será uma pequena operação de cabotagem, sem capacidade de se reinventar e reinventar o mundo.

Raimundo Santos nos diz que para o PCB, "mesmo tardiamente", houve um tempo em que se proclamou a falta de sentido das "lutas sem quartel contra ''revisionistas'' e ''esquerdistas'', como na tradição do partido único", bem como a insensatez da pretensão de se afirmar como "partido portador único de missão histórica-universal ou da representação operária" (p. 283). Da leitura de seu livro, depois de tantas aproximações inesperadas entre intelectuais e idéias de gerações e tempos diferentes, fica a certeza de que a verdade política e teórica, com seu inevitável caráter provisório e inacabado, nunca está com esta ou aquela parte, com este ou aquele homem, mas talvez seja possível encontrá-la entre os homens, se soubermos buscá-la com firmeza, inteligência e generosidade. É preciso tornar esta idéia um patrimônio geral das esquerdas e dos democratas de nosso país.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

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