A instituição da Comissão Nacional da Verdade, mediante diploma legal sancionado em novembro de 2011, com o objetivo de examinar violações dos direitos humanos num largo perÃodo de tempo entre 1946 e 1988, tem o poder de fazer com que encaremos um difÃcil passado de ferro e fogo, torturas e desaparecimentos, concentrados obviamente no regime inaugurado em 1964, com marcado recrudescimento a partir de 1968.
Dizer que assim se luta contra "a morte da memória nacional" é, evidentemente, um bom argumento, que se impõe por si só. Muito particularmente, existem ainda mortos sem sepultura: são os "desaparecidos", uma categoria trágica que macula a história polÃtica não só do Brasil, mas de paÃses vizinhos que também passaram pelo mesmo ciclo de regimes militares e contestação ora armada, ora pacÃfica - e neste último caso muitas vezes programaticamente pacÃfica, diga-se de passagem. Manda a verdade admitir que, entre nossos vizinhos, a tragédia foi incomensuravelmente maior: a violência organizada a partir do Estado, como no caso da Argentina, foi mais concentrada no tempo e cifra-se na ordem de milhares de oponentes mortos, em comparação com as poucas centenas de desaparecidos brasileiros.
Mas as marcas do autoritarismo na vida de um paÃs - e até na vida de cada pessoa - não se deixam reduzir à contagem do número de mortos: de fato, a existência de um só prisioneiro polÃtico, cujas circunstâncias de morte e respectiva ocultação de corpo nos sejam desconhecidas, deveria ser motivo de escândalo e mobilização de democratas de todos os matizes, inclusive aqueles de orientação conservadora ou mesmo de direita - uma orientação, de resto, que se insere legitimamente em regimes constitucionais democráticos com todos os foros de cidadania, hoje e sempre.
Está nas mãos da presidente da República - uma ex-presa polÃtica de um grupo da esquerda armada, submetida a tortura depois da prisão - a indicação dos sete integrantes da Comissão Nacional da Verdade. Pelo fato de ser uma comissão "nacional", o pressuposto é que estes integrantes não incorporem qualquer espÃrito de facção ou de parte, mas, pelo contrário, de algum modo respondam a todas as forças constitucionais da sociedade polÃtica e a todas as expressões e forças livremente atuantes na sociedade civil. Pode ser uma tarefa dificÃlima no contexto da dialética torcida em que se trava a luta polÃtica entre nós, e daÃ, talvez, a relativa demora na indicação. Na verdade, a presidente tem de encontrar nomes equivalentes ao que foram, moral e politicamente, alguns dos "grandes velhos" da República, como, para citar exemplos do passado recente, Alceu de Amoroso Lima, Barbosa Lima Sobrinho e Raymundo Faoro. Ou ainda, para homenagear sentidamente um brasileiro de exceção, D. Paulo Evaristo Arns.
A comissão se quer não só "nacional", mas também da "verdade". Aqui cabe aludir a um delicado problema: sem fazer concessão excessiva ao relativismo, sabe-se que, na democracia, as narrativas são necessariamente plurais e abertas à contribuição de uma multiplicidade de atores. A democracia, decididamente, não é um grande monólogo; antes, pressupõe a diversidade de falas, cada uma delas com maior ou menor capacidade de convencimento (de universalização). Por isso, em algum momento, não obviamente no terreno criminal, mas no terreno da polÃtica, colocar-se-á novamente uma questão espinhosa para o conjunto das esquerdas: por que a "militarização da polÃtica" se revelou uma tentação irresistÃvel para tantos agrupamentos, com o respectivo respaldo dos seus intelectuais e de toda uma cultura difusa que pregava a "crÃtica das armas" e desprezava as "armas da crÃtica", ou seja, a luta nos espaços legais que nunca deixaram de existir?
Em outras palavras, por que, afinal, a resistência democrática e a esquerda armada representaram fenômenos diferentes e até antagônicos, na medida em que bem se pode argumentar que aquela crÃtica das armas contribuÃa, a despeito das melhores intenções, para o endurecimento do próprio regime que se queria combater? Não se trata só de uma questão pragmática, derivada do fato de que assim se escolhia, para travar a "forma superior de luta", um terreno em que o adversário era por natureza mais forte e jamais deixaria de ser, pela própria força das coisas. Trata-se também de uma questão de princÃpio: que tipo de sociedade nova se pretendia alcançar pelos meios da "violência revolucionária"? Como transformar a mudança social - em benefÃcio do conjunto da população - em mera questão de homens e armas ou de assalto violento ao poder?
A conjuntura aberta pela próxima constituição da Comissão Nacional da Verdade pode ser não apenas uma ocasião de lançar luz sobre um infeliz passado recente e resgatar documentos e testemunhos indispensáveis para localizar combatentes desaparecidos ou mesmo as circunstâncias do seu desaparecimento - uma tarefa, aliás, cuja dimensão simbólica faz emudecer a linguagem e o comportamento tÃpicos das ideologias da Guerra Fria. Haverá de ser, ao mesmo tempo, uma oportunidade para que as diferentes esquerdas elaborem, ou em alguns poucos casos reelaborem, uma cultura de paz que não seja instrumental, mas se incorpore aos valores universais que devem defender em toda e qualquer circunstância.
Neste caminho, velhas e novas incoerências poderão ser suplantadas em sentido positivo. Descobriremos, talvez surpresos, que a vida democrática é simultaneamente frágil e resistente. Mesmo nos seus pontos mais frágeis, ainda assim é o mecanismo mais poderoso até hoje estabelecido para refrear, institucionalizar e dar um desfecho progressista às tensões e violências que, ao que parece, sempre estão, e continuarão a estar, de tocaia nas sociedades humanas.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.