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Esquerda, partidos, instituições

Luiz Sérgio Henriques - Setembro 2012
 

A esquerda política, compreendida na variedade das suas manifestações, nem sempre teve uma atitude madura em relação à institucionalidade democrática e aos seus efetivos problemas de funcionamento na vida real. Muitas vezes absorvida no tema do partido e da chegada ao poder, a partir do qual se transformaria toda a sociedade no sentido da justiça e da igualdade - em si, finalidades inatacáveis -, aquela parte do espectro político em geral não considerou devidamente, quando não os abandonou de todo, aspectos inerentes ao exercício do poder e às suas articulações institucionais, como, entre outras, a questão da alternância ou aquela outra, crucial, dos direitos e garantias individuais diante de todo e qualquer tipo de poder - inclusive nas sociedades "pós-revolucionárias", a exemplo daquelas surgidas a partir de 1917 e que hoje, como sabemos, são apenas um retrato na parede.

Deixando de lado a vertente social-democrata do movimento operário e concentrando-nos na tradição comunista, era evidente, na esteira de 1917, a expectativa messiânica na instauração, em prazo mais ou menos curto, de uma "internacional" de trabalhadores, acima e além de divisões tidas como secundárias, como aquelas demarcadas pelas fronteiras nacionais.

A "democracia burguesa" não tinha cabida num cálculo que entendia estrategicamente toda a época como a da passagem para a revolução proletária: ela, a democracia, era antes um dispositivo puro e simples de dominação em contextos mais sofisticados, uma vez que, em situações extremas, a aberta ditadura de classe revelaria a verdade oculta sob o véu diáfano da fantasia. Estabelecida a existência das duas classes fundamentais em luta frontal, o dispositivo democrático permitiria a dominação da classe burguesa sobre a proletária e o controle sobre os demais estratos intermediários, certamente majoritários na sociedade, mas não estrategicamente situados no mundo fabril, quer como proprietários, quer como assalariados.

Uma tal descrição sintética de fatos pretéritos, necessariamente empobrecedora, não pode ignorar que esta mesma vertente comunista da tradição das esquerdas conheceria com o tempo, especialmente nas nações mais avançadas do Ocidente capitalista, alterações significativas. Na luta contra o fascismo, estabeleceram-se frentes populares com democratas e liberais, apesar da pesada hipoteca stalinista. No pós-guerra, partidos comunistas de países importantes, como a Itália, a França e até o Brasil, tiveram papel proeminente no reerguimento das repúblicas democráticas abertas ao tema social. E a ilegalização destes partidos, onde ocorreu, teria efeitos catastroficamente duradouros não só sobre a esquerda em particular, na representação que lhe é própria (mas não exclusiva) dos setores populares e subalternos, mas sobre o sistema político como um todo.

Desgraçadamente, foi o caso do velho PCB e do Brasil, e está aí, para comprová-lo, o livro admirável de Gildo Marçal Brandão sobre A esquerda positiva e as duas almas do PC – a alma revolucionário-insurrecional, que fez a sua irrupção estridente no putsch de 1935 (mas não no movimento de massas da ANL que o antecedeu e bem merecia um outro desfecho, não militarista); e a alma reformista, propugnadora, precisamente, de reformas econômicas e sociais, que ampliassem progressivamente o capitalismo brasileiro e democratizassem a sociedade nos quadros da Constituição de 1946.

Pode-se dizer, hoje, que aquelas duas almas não se conciliaram e do seu conflito não surgiu uma solução fecunda. A própria adesão plena e consciente de uma parte dos comunistas do velho PCB à institucionalidade democrática só se daria, efetivamente, nos caminhos da resistência ao regime de 1964: desde o primeiro momento, aquela alma reformista esteve presente ao lado de liberais e democratas na resistência legal ao regime, aproveitando os espaços eleitorais e demais formas de mobilização pacífica, recusando a luta armada e colocando como perspectiva as bandeiras da anistia e da Constituinte.

A história é pródiga em ironias: dois ícones liberais da velha frente democrática, Tancredo e Ulysses, jamais recolheriam o fruto do seu inalterado empenho cívico dos tempos de chumbo. Ulysses, aliás, teria votação pífia nas primeiras eleições presidenciais sob a vigência da nova Constituição. À esquerda, com a crise global do comunismo e, no plano interno, do velho partidão, havia emergido um partido novo, com vocação hegemônica, supostamente consciente das limitações da experiência do socialismo real e dos seus partidos comunistas. Contudo, um dos atos mais emblemáticos deste novo partido seria recusar a presença de Ulysses no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, assim como, pouco antes, tergiversara canhestramente na assinatura e na homologação da mais avançada das Constituições brasileiras, bem ao contrário da atitude do PCB em 1946.

O retrato na parede, de itabirana memória, talvez não seja de todo inocente. Pode ser que esteja ali a nos lembrar o quanto os malogros e as insuficiências do passado - em primeiro lugar, a situação de ilegalidade ou de mera tolerância, entre 1958 e 1964, a que esteve submetido o PCB - pesaram, e ainda pesam, sobre a nova esquerda dos nossos dias. O desprezo pelo Parlamento, demonstrado nos fatos que originaram a Ação Penal 470, ou a perplexidade diante de um Judiciário no uso normal das suas atribuições de poder da República, possivelmente derivam, feitas todas as mediações históricas, de velhas categorias que relegam a um plano secundário as formas tidas como "vazias" da democracia política, quando, segundo este raciocínio torto, os valores mais altos de um processo "substantivo" de transformação supostamente se alevantam.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Estado de S. Paulo, 21 set. 2012.

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