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Lula, a democracia, a república e o progresso social

Marco Antônio Coelho - Novembro 2012
 

Luíz Inácio Lula da Silva é uma figura de relevo na vida brasileira. Por duas vezes foi eleito para a Presidência da República. É a principal liderança do Partido dos Trabalhadores e desfruta de grande prestígio no país, tendo reconhecido carisma, mesmo porque sabe utilizar bem os meios de comunicação.

Algumas vezes, faz pronunciamentos irresponsáveis que, inclusive, criam problemas para os próprios petistas. Possui projeção internacional e influencia a atividade política em outros países da América do Sul.

Foi líder sindical no setor metalúrgico no ABC, em São Paulo. Após um papel destacado nas greves durante a ditadura militar, tornou-se uma personalidade nacional. Nunca fez um curso superior, mas tem um bom diálogo com setores da intelectualidade. Na condição de líder sindical, entrosou-se com alguns acadêmicos e com personagens progressistas da Igreja Católica para organizar o Partido dos Trabalhadores.

Com um projeto de renovação da luta política no Brasil, o PT em poucos anos tornou-se um partido de relevo, pela conquista do poder federal, de alguns governos estaduais e muitas prefeituras, além de possuir uma importante bancada nas duas Casas do Congresso Nacional, inclusive a presidência da Câmara dos Deputados.

Após cumprir um segundo mandato no Palácio do Planalto, Lula conseguiu eleger Dilma Rousseff para substituí-lo. Há especulações de que ele, em 2014, disputará novamente a Presidência da República ou poderá optar pela tentativa de reelegê-la.

Que fatores influíram para explicar o prestígio de Lula? Como chegou a ser um líder no cenário nacional? Para se entender esse fenômeno, é indispensável analisar o quadro político e a realidade da economia. No final do regime militar, por articulação do general Golbery do Couto e Silva, numa estratégia de dividir e enfraquecer o MDB, foram criadas facilidades para que se organizassem novos partidos, com uma plataforma de volta ao Estado de Direito democrático. Porém, há muitos anos existe uma crítica generalizada à atuação da maioria dos partidos e uma pressão irrefreável em favor de uma reforma política.

O PT se destacou por surgir como algo inteiramente novo na vida política nacional, colocando-se contra tudo e contra todos. Enfatizando a ética como elemento central de seu comportamento, colocou-se como o defensor dos interesses dos operários e das camadas marginalizadas do povo, em contraste com a maioria dos outros partidos que nunca defenderam os brasileiros mais pobres. Apresentando-se dessa forma, o PT ganhou prestígio entre os trabalhadores e as pessoas que defendem a causa de uma sociedade mais justa.

Ao mesmo tempo, o PT se distinguiu por ser uma organização diferente dos outros partidos, estimulando a atuação de seus militantes de base, sobretudo os do movimento sindical e de associações de moradores, particularmente os das Comunidades Eclesiais, surgidas com a Teologia da Libertação, da Igreja Católica.

Mas, para conquistar a Presidência da República, Lula e o PT resolveram conquistar setores conservadores da sociedade. Assim, nasceu uma contradição entre o programa, a conduta do PT e a prática de sua política de apoio a poderosos grupos financeiros e empresas que realizam grandes obras no país.

Agora, na eleição de prefeitos e vereadores, o PT teve nacionalmente uma expressiva votação, mas perdeu eleições em importantes estados, como Minas Gerais e Pernambuco, apesar de neles ter havido uma interferência direta de Lula e Dilma. Evidenciou-se um fato que é apontado pelos analistas. Diversas correntes e personalidades que antes apoiavam irrestritamente o PT não aceitam mais as decisões de Lula. E no PT já surgem críticas ao fato de o ex-presidente impor autoritariamente sua vontade pessoal na escolha dos candidatos nos pleitos eleitorais.

A realidade atual do Brasil

Do ponto de vista da economia, que análise pode ser feita sobre a política e a conduta do Partido dos Trabalhadores e de seu líder?

Lula e Dilma Rousseff fazem loas sobre o panorama econômico de nosso país. Na verdade, há dados positivos. Nossa situação é melhor do que a de outros países atingidos pela crise econômica. No quadro mundial, estamos colocados na categoria dos países em desenvolvimento. Nem pobres nem ricos. Nos últimos anos, participamos ativamente no mercado internacional, como grande exportadores de commodities.

Dois fatores contribuíram para esse desempenho. Em primeiro lugar, porque nos governos anteriores (de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso) houve uma reforma financeira que conseguiu controlar a inflação, problema secular que dificultava o progresso do Brasil. Ao chegar ao Planalto, Lula encontrou uma realidade que permitia avanços posteriores na economia, mas jamais reconheceu essa realidade. Ao contrário, afirma haver recebido "uma herança maldita" do governo de FHC.

Em segundo lugar, no período dos dois mandatos de Lula, a situação internacional beneficiou a economia brasileira. A crise econômico-financeira que atingiu todos os países, inclusive os mais desenvolvidos, só começou no final do sexto ano do governo lulista. Cresceram nossas transações econômicas e financeiras no mercado internacional, e esse fato permitiu a considerável exportação de minério de ferro e de soja a preços elevados, em consequência das enormes importações da China.

Ficaram também evidentes alguns fatores que contribuem para o nosso desenvolvimento. Por exemplo, a existência de um amplo mercado interno e as possibilidades de termos uma grande produção agropecuária. Além disso, contamos com expressivos recursos hidráulicos e de petróleo. Os economistas também assinalam o crescimento do crédito para pessoas e empresas, o que se reflete no aumento da capacidade da indústria.

Todavia, certos dados demonstram a debilidade de nossa economia, em comparação com outros países em desenvolvimento. Neste ano, o crescimento do PIB será de pouco mais de 1%. O país enfrenta uma séria crise na infraestrutura da economia, que determina o elevado custo dos produtos que exportamos. Os fatos assinalam a diminuição dos investimentos nos últimos anos, como ocorreu com a importação e a produção de bens de capital.

Apesar dos incentivos governamentais para viabilizar os investimentos, o setor deverá receber este ano recursos de apenas 1,96% do Produto Interno Bruto. Será o pior desempenho desde o início do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), peça-chave nas atividades e na propaganda do governo federal.

Comprova esse dado a queda dos investimentos em eletricidade, comunicações, transporte e saneamento, comparando esses dados atuais com o sucedido nas últimas décadas, a partir dos anos 1970. Por isso, com razão afirma o economista Mendonça de Barros que o governo, diante dessa dificuldade, "corretamente acena com um grande pacote de concessões, para atrair capital privado em investimentos em estrada de ferro, portos, aeroportos, entre outros" (Folha de S. Paulo, 30/09/2012).

Contudo, segundo o mesmo economista, o governo reage de forma equivocada porque estimula a expansão do consumo ao custo do maior endividamento das famílias e, nas concessões ao capital privado, estabelece condições e regras que dificultam a participação de investidores. Assim, além de repetir que não está realizando uma política de privatizações - tão criticada na ação dos governos de FHC -, sua atividade é contraditória, causando insegurança entre os interessados.

O quadro se complica por alguns fatores. Foram agravadas as dificuldades e insuficiências da Petrobras, como acontece com os projetos das refinarias do Rio de Janeiro e Recife e com a dependência da importação de diesel, gasolina e etanol. A esses dados negativos deve-se acrescentar a queda na produção de petróleo da Bacia de Campos, levando a empresa a perder receitas consideráveis, pois foi obrigada a pagar quase o dobro pela importação de diesel e gasolina, comprados no exterior a preços mais elevados do que os dos combustíveis vendidos aos consumidores no Brasil.

Diversos outros fatores causam problemas para a administração federal, como os sucedidos com a geração e transmissão de energia, assim como dificuldades frequentes com projetos equivocados ou mal conduzidos, como o da usina de Belo Monte e o faraônico plano do "trem-bala".

Em resumo, pode-se dizer aos economistas do governo: "Estúpidos, apesar da propaganda, a economia só nos dá péssimas notícias!".

Cabe mais do que nunca estarmos atentos às advertências do embaixador Rubens Ricupero sobre o erro capital de manter uma estratégia de apoiar nossa economia na exportação de produtos primários. Ele mostra que a crise de competitividade, sobretudo da indústria, atingiu seu ponto crítico. "O Brasil perdeu a capacidade de negociar acordos comerciais, multilaterais ou de qualquer tipo. Como viabilizar acordos que exigem concessões, se essas vão expor mais setores que mal se mantêm de pé, apesar das doses de anabolizantes?" (Folha de S. Paulo, 01/10/2012)

Por que consideramos equivocada a política de Lula?

Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de sua formação de militante sindical, atua como um caudilho no velho estilo latino-americano, impondo sua vontade, passando por cima das leis e princípios fundamentais do processo democrático, assim como de normas e aspirações de diversos setores sociais.

Inteligente e sagaz, contorna suas deficiências culturais com o que vai aprendendo no diálogo com intelectuais. Desde jovem, entendeu o que pode e o que não pode fazer. Porém, dá voltas para obter o que deseja e, diante das críticas, tem respostas inaceitáveis. Contudo, é sensível aos sentimentos dos trabalhadores e mostra muita habilidade na condução da massa operária, tendo uma noção clara da correlação de forças na luta política e paciência para galgar posições. Busca com tenacidade um caminho para impor sua opinião. Em resumo, sabe lutar pelo que deseja, sem se prender a normas estabelecidas.

Vários episódios demonstram como Lula não tem como uma das normas de seu comportamento a ampliação da luta pela democracia e o zelo pelos princípios republicanos.

Seu posicionamento político fica evidenciado pela posição que tomou na Assembleia Constituinte de 1988. Compreendia a importância de elaboração das leis básicas do país, defendeu com firmeza as teses dos trabalhadores e compreendeu que a obtenção de determinadas vitórias tinha limites. Porém, estranhamente, não aprovou o texto constitucional. Finalmente, resolveu assinar a Constituição da República Federativa do Brasil, a mais democrática de nossa história.

Cometeu um erro político que é sempre lembrado: combateu a reforma financeira que instituiu a nova moeda - o real -, simplesmente porque foi lançada pelo governo Itamar e aprofundada por FHC, quando era uma providência básica para reduzir drasticamente a inflação, tormento que prejudicava especialmente os trabalhadores.

Um traço marcante de Lula é seu desprezo pelas instituições e organizações políticas e sociais criadas ao longo dos anos, quando são elas que garantem e impulsionam o progresso social, sendo mais importantes que os planos e projetos dos governos transitórios. Para deixar claro, vejamos alguns exemplos: Vargas tornou-se imortal pela instituição da Justiça do Trabalho e das leis trabalhistas, além da criação de algumas empresas, como a Petrobras; Kubitschek tornou-se inesquecível pela criação de Brasília e pelo impulso dado à industrialização do país; líderes políticos, como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, se conceituaram eternamente pelo fato de conduzirem a batalha pela redemocratização e o restabelecimento do Estado de Direito no país.

A lição é, portanto, clara: governantes passam para a História se construírem ou fortalecerem instituições ou adotarem políticas fundamentais e se não cometerem erros políticos essenciais. Por isso, nada sobrou de positivo na atuação dos presidentes da República durante o regime militar.

Não será esquecida a política de Lula para desmoralizar organizações sociais. A CUT se tornou uma agência mantida por verbas oficiais a fim de aplaudir o governo, e o movimento sindical deixou de ser uma poderosa arma usada pelos trabalhadores. O mesmo aconteceu com a gloriosa União Nacional dos Estudantes. São um marco em seu governo os projetos irrealizáveis, como a transposição do rio São Francisco, o "trem-bala" e paralisação de diversas obras do PAC. Também está destruindo até o Partido dos Trabalhadores, com o arquivamento de seu projeto de reformas sociais e de sua estrutura interna democrática, impondo nas eleições candidatos afinados com o ex-presidente.

Nas relações internacionais, dissipou totalmente a tradição de respeito à soberania e à amizade com os países vizinhos. Sob a inspiração de Lula, o Itamaraty abandonou a política de negociações na Rodada de Doha, na Organização Mundial do Comércio. Deixando de enfatizar a busca de soluções no diálogo multilateral, o Brasil perdeu sua capacidade de negociar acordos comerciais. Assumiu posições equivocadas na América do Sul pelo apoio à política aventureira de Chávez, na Venezuela, criando uma desavença com o Paraguai e desarticulando o Mercosul.

Ao lado disso, Lula interferiu diretamente na política externa, desmoralizando o Itamaraty com declarações contraditórias na defesa dos direitos humanos. Daí suas afirmações como a de comparar presos políticos em Cuba com os criminosos no Carandiru, negar o apoio a adversários do governo do Irã, além de não protestar contra os massacres na Síria.

Outro traço indelével da atuação de Lula residiu no fato de, seguindo a trajetória de todos seus predecessores no Palácio do Planalto, não ter como princípio exigir do conjunto da administração pública o zelo permanente pelo meio ambiente. Um exemplo demonstra bem a adoção de medidas que deveriam ser evitadas: os benefícios constantes dados às montadoras de automóveis (todas elas poderosas empresas estrangeiras), quando são evidentes os malefícios dos automóveis particulares para o meio ambiente, notadamente nas grandes cidades. Esses benefícios são dados porque o governo se preocupa em manter os empregos nessa indústria, não considerando que existem soluções alternativas, transferindo essa mão de obra para outros empreendimentos.

Podemos acrescentar ainda outro comportamento equivocado da política de Lula, continuada por Dilma Rousseff: a violação dos dispositivos constitucionais que garantem o direito das comunidades indígenas de serem consultadas sempre que obras sejam projetadas em terras por elas ocupadas. Um exemplo dessa violação ocorre com o projeto de construção da usina de Belo Monte, no estado do Pará.

Então, já se pode perguntar: qual será o legado de Lula?

Além de se preocupar positivamente com algumas reivindicações dos trabalhadores, ele não adotou uma política global para diminuir a desigualdade social existente no Brasil. Ficou no simples assistencialismo do Bolsa Família, assistencialismo em geral criticado nos felizes versos do médico e poeta Zé Dantas, parceiro de Luiz Gonzaga, que proclamou em canção nordestina clássica: "Seo doutor, uma esmola/ para um homem que é são/ ou lhe mata de vergonha/ ou vicia o cidadão".

Assumindo a Presidência da República, Lula entendeu que necessitava de maior apoio no Congresso Nacional e nos meios de comunicação com o objetivo de manter-se no poder por muitos e muitos anos. Para tanto, um grupo de seus dirigentes criou o "mensalão", a fim de garantir a aprovação de projetos de leis encaminhados pelo governo. Era uma estrutura alicerçada em instituições e recursos públicos e de empresas privadas, a fim de obter o apoio de parlamentares de outros partidos.

Como se vê, Lula deixará um legado fundamental: a organização no Palácio do Planalto do chamado "mensalão", por obra de um grupo encarregado de usar recursos financeiros públicos e de empresas privadas para aliciar o apoio de parlamentares à tramitação de projetos de interesse do governo. Essa atuação criminosa foi denunciada pela Procuradoria Geral de República e condenada pelo Supremo Tribunal Federal.

Pela primeira vez no Brasil, as inúmeras sessões do Supremo Tribunal Federal foram transmitidas na totalidade pela televisão. E o rádio e a imprensa acompanharam o desenrolar do julgamento. Um fato se tornou indiscutível - esse julgamento foi conduzido respeitando-se rigorosamente todas as normas jurídicas, notadamente os direitos dos acusados de se defenderem.

O ministro Celso de Mello, no julgamento, fez o seguinte pronunciamento: "Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus, ora em julgamento, ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio ético-jurídico da probidade administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem econômico-financeira do país, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal".

A divulgação desse julgamento mostrou vários aspectos da atuação de alguns dirigentes do PT para assumirem o total controle do país. Ele pôs a nu as táticas para introduzir aqui a estratégia de Chávez, na Venezuela, de ficar definidamente no poder, esmagando a resistência da maioria do povo.

Lula tentou de várias maneiras adiar esse julgamento, cujo processo foi iniciado sete anos atrás. Quando o escândalo foi denunciado, declarou que "nada mais era que caixa dois, esquema utilizado por todos os partidos". Depois afirmou ser uma farsa. Em seguida à CPI dos Correios e à denúncia do procurador-geral da República, em abril de 2006, dissera ter sido traído pelos seus companheiros de partido, os quais deveriam pedir desculpas aos brasileiros. E, agora, quando os dados concretos da trama vieram à tona, na divulgação do julgamento, Lula e o PT declaram que o "mensalão" é um conluio golpista da oposição e dos meios de comunicação para derrubar o governo. Assim, recusam-se a fazer uma penitência diante da nação e não se comprometem a defender a Constituição e os princípios republicanos.

Por isso, em boa hora procede a observação de uma pessoa isenta, uma cientista que acompanha de perto a América Latina. Eliana Cardoso, professora titular da FGV da São Paulo, afirmou: "Teremos sorte se o julgamento do mensalão vier a livrar a sociedade brasileira do lulismo" (O Estado de S. Paulo, 10/10/2012).

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Marco Antônio Tavares Coelho é advogado, jornalista, ex-deputado federal e atual editor da revista Política Democrática, da Fundação Astrojildo Pereira.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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