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De volta à questão democrática

Luiz Sérgio Henriques - Novembro 2012
 

Em vista dos acontecimentos recentes, com a bisonha reação de setores (majoritários?) do petismo às decisões do STF na Ação Penal 470, cabe deduzir, com algum grau de desalento, que há de ser molecular e como que conduzido pelos fatos - no caso, o caráter objetivamente "ocidental" da formação social brasileira, que a torna relativamente imune a surtos prolongados de populismo - o processo de modernização da cultura política da nossa esquerda. Até hoje, pelo menos, por parte de atores decisivos, como os próprios expoentes políticos, os dirigentes das máquinas partidárias e especialmente os intelectuais ditos "orgânicos", os caminhos desta modernização não foram trilhados sem meios-termos.

O salto para o continente novo da democracia política, definitivamente considerada como conquista dos "de baixo" e não instância "burguesa" que mascara ou domestica o conflito de classes - este salto e a consequente queima de navios ainda não foram dados, por esta ou aquela razão. Estamos longe do que um pensador como Giuseppe Vacca chamou de requisito da moderna convivência civil, a saber: a recíproca legitimação dos adversários no contexto do Estado democrático de direito. Tal legitimação dificultaria discursos "refundacionais" que fazem datar do surgimento de um partido, e não da Carta de 1988, o novo início da história do Brasil e remetem os adversários ao limbo da representação dos prévios 500 anos de predação da pátria e do seu povo.

Se de esquerda falamos - e se é um tronco da esquerda que, desde 2002, mantém firmemente nas mãos o poder central, com exceção do período de turbulências da CPI dos Correios -, cabe revirar mais fundo o baú de ossos desta família política, em busca dos primeiros e ainda hesitantes sinais da sua ocidentalização.

Um sinal corajoso, por exemplo, veio de um notável documento do PCB, antigo de quase seis décadas. Os especialistas em remexer naquele baú sabem que se trata da "Declaração de Março de 1958", de que dois signatários - Armênio Guedes e Jacob Gorender - são nossos contemporâneos e representam, cada qual a seu modo, interpretações distintas do documento. E os especialistas sabem, também, que ali começou um difícil caminho de revisão do nexo entre democracia política e socialismo, ainda longe de chegar a um ponto maduro.

Nos termos da esquerda, havia ali, com instrumentos conceituais muitas vezes datados, uma dialética tensa entre "questão nacional" e "questão democrática". A primeira, embebida de retórica anti-imperialista (este mesmo anti-imperialismo que ainda hoje faz estragos, ao levar parte da esquerda, não raramente, a simpatizar com "ridículos tiranos" ou autocratas eleitoralmente competitivos), poderia, no entanto, obedecer já na época a uma concepção não regressiva: tratava-se, afinal, de deslocar para dentro do país o eixo das decisões fundamentais, sem prejuízo dos processos de internacionalização da economia já fortemente operantes.

A questão democrática era ainda mais complicada, como não podia deixar de ser para uma esquerda que, desde o leninismo, se acostumara a dissociar socialismo e democracia. Aparecia, aquela questão, no seu aspecto "substantivo", como incorporação da massa rural à vida moderna, seja por meio da difusão do sindicalismo e dos direitos a ele associados, seja por meio da reforma agrária à custa do latifúndio improdutivo. E todo este movimento ocorria no quadro da legalidade de 1946: uma legalidade formal, que, no entanto, não convinha subestimar e que significava um acréscimo decisivo na qualidade da democracia: no modo de entendê-la e de praticá-la.

O avanço da questão formal da democracia na cultura comunista se daria, paradoxalmente, nas duras condições da nova clandestinidade imposta em 1964. Um avanço que também decorria, entre outras coisas, da verificação dos resultados inesperados da modernização conservadora, como a diversificação da sociedade civil e a imposição da centralidade da política democrática para a derrota do regime militar.

Não é certo, contudo, que este novo patamar da "questão democrática" tenha se generalizado na esquerda. Seu partido hoje hegemônico, de certa forma, esteve alheio a tais desdobramentos desde as origens. Como sabemos, não importava muito a política "de frente ampla" aos olhos de jovens quadros sindicais para quem a CLT é que era "o AI-5 dos trabalhadores". Frase forte, emblemática, que se converteria numa política em que o dado bruto do social - das corporações e seus interesses - seria sistematicamente confrontado com o político e suas instituições. Estas, de resto, como o Parlamento, seriam apenas o palco por excelência de três ou quatro centenas de "picaretas", dispostos, como numa feira livre, em tabuleiros de compra e venda.

Se este argumento fizer sentido, voltamos a viver outro momento decisivo na história da esquerda. Mais uma vez, requer-se a atualização da sua cultura ou, para utilizar um termo em circulação, a própria refundação desta mesma cultura, dos seus procedimentos e das suas categorias. A independência dos poderes, a autonomia do ministério público, a livre dialética parlamentar, bem como uma sociedade civil desembaraçada de tutela estatal e de toda mitologia salvacionista são traços inelimináveis de qualquer vida associada sob o signo da liberdade.

A esquerda não deveria "sofrer" a democracia, como se fosse concessão penosa e temporária aos "inimigos do povo", mas promovê-la, ao lado de outras tendências, inclusive moderadas e conservadoras, como conquista de civilização. Ou, ainda, deveria entender a democracia não como caminho para o socialismo, mas o próprio caminho do socialismo, se formos capazes de retirar deste último conceito a aura de autoritarismo que persistentemente o ronda.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor do site Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Estado de S. Paulo, 31 out. 2012.

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