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Sobre as manifestações de junho

Luiz Eduardo Soares - Junho 2013
 

Estão aqui reunidas quatro intervenções de Luiz Eduardo Soares, antropólogo e escritor, sobre os movimentos de massa que percorrem todo o país.

1. O que sei e o que não sei sobre as manifestações

Diante de um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a expectativa de estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, de um modo geral, o primeiro impulso é defensivo e visa à autoconservação. Qualquer mudança nos ameaça porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal tão precário e incerto está em risco e pode ruir a qualquer momento. Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos "realidade" é débil e movediço. Para sustentar-se, nossa "realidade" precisa dos outros, do olhar alheio, de seu reconhecimento, de sua confiança, da reiteração de manifestações de amor, amizade e respeito. A "realidade" depende das redes sociais que tecem afetos, valores, símbolos e ideias, tudo isso embrulhado em narrativas cotidianas verossímeis para o conjunto dos interlocutores.

Por isso, a ruptura do movimento contínuo e previsível da vida - que só é contínuo e previsível em nossa fabulação amedrontada, insegura e defensiva -suscita em nós respostas que negam ou exorcizam a mudança. Nesse sentido, há um complô conservador em cada um de nós - e entre nós - contra a mudança, ocorra ela em nós, nos outros ou na sociedade - como escrevi em um capítulo conhecido do Cabeça de Porco.

O que significam, nesse contexto, negar e exorcizar? Negar não significa recusar-se a admitir a existência de fatos, mas sua novidade, sua diferença. Exorcizar quer dizer livrar-se do embaraço que assusta e ameaça nossas crenças, nossa estabilidade, interior e exterior. Qual a melhor maneira de fazer ao mesmo tempo as duas coisas, negar e exorcizar? Explicando. Sobretudo, explicando com as categorias já conhecidas, disponíveis em nosso repertório de crenças e teorias. Quando eu explico um fenômeno novo, o teor de novidade deixa de perturbar meus esquemas cognitivos e valorativos, e as ideias que me ligam aos outros e àquilo que considero a realidade. Minha sanidade, a solidez de minhas verdades, principalmente a solidez de mim mesmo como sujeito, tudo isso salva-se com a explicação, quando, insisto, e apenas quando ela não coloca em dúvida seus próprios pressupostos ou métodos, seu próprio estoque de ideias prontas. O evento, em sua novidade, infiltra um excedente em nossa sensibilidade, em nossas ideias, em nossas emoções e percepções. Por outro lado, prestando um serviço a nosso aparato de autodefesa, a explicação domestica a diferença, circunscreve seu potencial subversivo e sua força questionadora. Meu argumento é simples: se um evento coloca um problema para meus esquemas mentais e práticos, deixa de fazê-lo quando estes últimos demonstram a capacidade de descrevê-lo (e integrá-lo) sem que haja resíduos, sem que seja necessária a invenção de novas estratégias descritivas e práticas, novas categorias e procedimentos. Na verdade, em vez de conhecimento, estaria em jogo apenas a confirmação de meu repertório prático, moral, ideológico e cognitivo.

Estas reflexões não pretendem ser o elogio à ignorância ou a crítica obscurantista ao conhecimento. Pelo contrário, visam distinguir a tarefa do conhecimento do comodismo classificatório reassegurador, que nos impede de olhar com os olhos de ver, de escutar para ouvir, projetando menos o que já sabemos ou supomos fazer, e nos abrindo à positividade desafiadora do evento em sua contingência: ação, protagonismos reconfigurando arenas e relações. O ponto a destacar é o seguinte: explicações que funcionam como meras consagrações do que já se sabe - ou se supõe saber - não produzem conhecimento. Se o propósito é conhecer, devemos buscar a compreensão autorreflexiva, a desnaturalização das imagens já constituídas e das descrições correntes. Até porque, nesse campo, todo esforço de entendimento, toda interpretação é também intervenção, é também ação social, uma vez que os intérpretes participamos da atribuição de significado aos fatos. Portanto, a atitude amiga do conhecimento deve exercitar os limites do saber e, onde há limites, há pelo menos dois espaços, ou seja, para abordar o que ignoro, devo afirmar o que sei, ou julgo saber.

Contemplemos o objeto que nos interroga tanto quanto o interrogamos: os eventos em que milhares ocupam as ruas de várias cidades brasileiras, protestando contra o aumento de tarifa do transporte coletivo. O que ousaria dizer que sei a seu respeito? O que não sei? Ou melhor, que boas perguntas posso formular para as quais não disponho de respostas?

I. Sobre o universo temático das manifestações

Sei que o aumento de tarifas afeta a maioria e que atinge o bolso dos trabalhadores em um momento marcado pelo aumento da inflação. Sei que o poder executivo, nas três esferas (municipal, estadual e federal), adotou mecanismos de proteção aos interesses populares, postergando uma medida que dificilmente seria evitável. Esse fato tornou a elevação dessas tarifas um fato raro, especial, destacado, descolando-o da expectativa internalizada relativa à dinâmica geral dos preços de alimentos e serviços. Sei que o valor do transporte é apenas a cabeça de um imenso iceberg, formado por sua qualidade e pelo verdadeiro drama em que se converteu a mobilidade urbana - e não só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sei, portanto, que a cadeia metonímica no imaginário individual e coletivo transporta os significados do preço da tarifa às jornadas desumanas a que os trabalhadores têm sido submetidos, estendendo-se daí a outros aspectos negativos da experiência popular nas cidades: a precariedade do emprego ou do trabalho, as condições desiguais de moradia, saúde, educação, segurança e acesso à Justiça.

Os elos de contiguidade simbólica e política conectam problemas entre si, acentuando sua marca permanente: a desigualdade. E o fazem em um contexto normativo e institucional, o Estado democrático de direito, no qual o princípio cantado em prosa e verso é a equidade. Por isso, os significados negativos se agravam, acentuando a intensidade emocional em que são apreendidos e comunicados: eles se destacam porque remetem à desigualdade, a qual contrasta fortemente com as expectativas geradas pelo pacto constitucional. Afinal, a conversa sobre cidadania é ou não para valer?

Há ainda cinco tópicos conectados na teia metonímica: (a) os chamados grandes eventos esportivos, e um religioso, que dominam o calendário oficial e governam as agendas dos governos, sinalizando prosperidade e abundância, uma vez que bilhões são investidos, em descompasso com demandas por equidade e qualidade de vida. (b) O modelo econômico parece ter feito o desenvolvimento refém da indústria automobilística, na contramão do que seria racional para reduzir o caos urbano, que obstrui a mobilidade, afetando os interesses de todos, em especial dos que dispõem de menos recursos e alternativas. (c) A reputação dos políticos permanece negativa e o ceticismo popular esvazia a legitimidade do instituto da representação, sem que as lideranças deem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu - e aprofunda-se, celeremente - entre a institucionalidade política e a opinião da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se. (d) O executivo prestigiado, em contexto de dinamismo econômico, pleno emprego e redução de desigualdades, sob a aura carismática de Lula, freou o desgaste do Estado, já avançado em sua face parlamentar. Quando o modelo começa a dar sinais de que está claudicando, a corrosão contamina a legitimidade (a credibilidade) de todas as áreas do Estado. (e) Tocqueville nos ensinou que os grupos sociais mais dispostos a agir e reagir não são os mais pobres e impotentes, mas aqueles que têm o que perder. Isso significa que os avanços sociais das últimas duas décadas ampliaram a faixa da população potencialmente disposta a resistir ante o risco de perda. Aqueles que ascenderam não entregarão sem luta suas conquistas.

Outro aspecto que me parece decisivo é o acesso à internet, a participação em redes e a fixação de um modelo globalizado de tomada dos espaços públicos como método de democracia direta ou de ação política não mediada por instituições, partidos e representantes. Evidentemente, o modelo remete à ideia clássica da democracia direta como tipo ideal, sem cumpri-lo inteiramente, uma vez que as mediações nunca deixam de atuar, conectando diferentes procedimentos à energia da massa nas praças. O que conta, neste cenário dramatúrgico, são a memória idealizada e a linguagem comum, como se os eventos se citassem mutuamente, construindo uma constelação virtual de hiperlinks. Nesse contexto, tornam-se possíveis o orgulho, a vaidade, a máscara do herói cívico, a política vivida em grupo como entretenimento cult antipolítico (mas também risco iminente de morte), a experiência gregária fraterna (ante um inimigo tão abstrato e fantasmático quanto óbvio e imediato, com o rosto policial e o sentido da tragédia), experiência que enche o coração de júbilo, exaltando os sentimentos e os elevando a uma escala quase espiritual, a convicção de que se pode prescindir de propostas e metas, ou da negociação de métodos para inscrever o curso da prática na vida da cidade, não só no chão das ruas.

II. Sobre os manifestantes

São muitos e diversos, e seus propósitos são múltiplos. São grupos semiorganizados que debatem as opções nas redes sociais, são aqueles atraídos para a praça por solidariedade, a qual se fortalece não porque o tema principal, o preço da tarifa, mobilize intensamente, mas porque a brutalidade policial, isto é, a violência do Estado suscita a coesão dos que a repudiam - e, de novo, nesse repúdio estende-se toda a cadeia metonímica referida. Há, é claro, como é natural e inevitável, militantes políticos que percebem a oportunidade de enfraquecer os adversários que estão no poder, considerando-se a visibilidade do país e dos governos estaduais e municipais, na conjuntura em que transcorrem os grandes eventos esportivos e religioso. Há o cidadão comum, revoltado com a tarifa, a (i)mobilidade urbana, a qualidade dos serviços públicos e o rosários de problemas já elencados. Haverá sempre alguns provocadores, animados pelas mais variadas motivações, em um ambiente caracterizado pela falta de lideranças claramente reconhecidas ou consensuais e pela falta de experiência ou de expertise nessa modalidade de ação coletiva, o que favorece a ação daqueles dispostos a ações violentas, obviamente minoritários e deslocados. Neste ponto, sublinhe-se a falta que faz o PT na oposição, ou a falta que faz qualquer partido popular não cooptado. Por mais que sejamos críticos da forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza.

III. Sobre o Estado, em suas diversas instâncias, em especial, as polícias

Sei que as polícias militares agiram, sobretudo em São Paulo, com brutalidade criminosa e, desafortunadamente, como é de praxe, seu comportamento foi defendido pelo governador, reproduzindo a postura que tem promovido a impunidade dos policiais que cometem execuções extrajudiciais. Sei também que a polícia militar organizada como exército está condenada a inviabilizar-se como instrumento a serviço da cidadania e da garantia de direitos. Sei que é injusto acusar os policiais, individualmente, ainda que cada indivíduo deva ser responsabilizado por seus atos. Seus atos exprimem a orientação que recebem e a educação corporativa, o que amplia o espectro da responsabilidade por ações criminosas, incluindo as instituições policiais e os governos.

IV. O que não sei

Este é o tópico decisivo. Não sei o que há a mais nas manifestações (mas sei que há), além do que pude ver, apoiado no que o meu esquema cognitivo me permite ver. Ou seja, não sei o que esse movimento, em sua heterogeneidade, está inventando e nos está dizendo, e está dizendo a si mesmo, ao constituir-se. Não sei que narrativa nova produzirá, ou melhor, já produziu. E aqui estão as perguntas que me parecem chave: por que, no marasmo gerado pelo ceticismo político, tantos vão às ruas, apaixonando-se pela ação coletiva, correndo risco de ferir-se, ou mesmo morrer, ou de ser preso? Qual o novo sentido de um grupo que se forja nas redes e nas ruas, tecendo sua unidade na diferença, caminhando lado a lado, experimentando uma solidariedade de outro tipo, uma fraternidade sem bandeiras, a despeito da (e por causa da) multiplicidade de desejos provavelmente muito diferentes e objetivos difusos?

A força da multidão foi reencontrada pelos jovens e pelos cidadãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua - não verbalizada - e uma personalidade. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria - como o negativo ou o avesso - de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão compartilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. As visões negativas correspondem ao preenchimento das lacunas de nossa ignorância com as figuras do que já sabemos. Creio que nos conviria optar pela humildade, em vez de precipitarmo-nos em julgamentos e análises. Não me parece razoável dizer o que o movimento não é, tomando as gerações passadas por molde e vendo como irrealização e incompletude aquilo que é simplesmente diferente e ainda não conseguimos compreender. Há no movimento magnetismo, há conexão metonímica com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala planetária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. Há coragem de perder o medo e de renunciar à apatia. Há, nesses eventos, no movimento pelo passe livre, ou dê-se a ele o nome que se queira, a disposição de aprender, fazendo. Há coragem para criar e, portanto, para errar. De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos esquemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respeitar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa ignorância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a reivenção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja tentar unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar.

2. Entrevista a Ângela Faria (Caderno Pensar, Estado de Minas, 22 jun. 2013).

Que lições a moçada está dando ao país? Diz-se que a "desorganização" do movimento deles pode levar: 1) a nada. 2) ao reforço de posturas conservadoras, dos "neocons" verde-amarelos. Você concorda?

A primeira lição que os jovens nas ruas nos dão é a seguinte: as coisas podem mudar, porque somos nós que fazemos a história, combinando liberdade e limites, circunstâncias e oportunidades, imaginação e ousadia, disposição solidária para empreendimentos coletivos, em torno do interesse público, evocando valores fundamentais - tais como equidade e justiça - e repudiando o autoritarismo tecnocrático dos governos, que desprezam a participação e só dialogam com os lobistas dos grandes interesses privados. As coisas podem mudar se acreditarmos nisso e a alma não for pequena.

Mas mudar como e em que direção, com quais consequências, a que preço? Não sei. Não se sabe em que vai dar o movimento, não se pode saber nem há garantias. E aí está o primeiro ponto sem cujo reconhecimento não produziremos as condições indispensáveis à futura compreensão do que o movimento significa. Nesse momento, é necessário afirmar com humildade nossa ignorância ante um processo cuja natureza nos desafia, intelectualmente. Explico: diante de um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a expectativa de estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, de um modo geral, nosso primeiro impulso é defensivo. Qualquer mudança nos ameaça porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal tão precário e incerto está em risco e pode ruir a qualquer momento. Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos "realidade" é débil e movediço.

Nossa tendência, portanto, é projetar nossas categorias e nosso modo de pensar sobre os fatos novos para descrevê-los exorcizando o que, neles, é novo e inscreve uma diferença em nossos esquemas cognitivos e em nosso sistema de práticas. Projetar o velho sobre o potencialmente novo apenas confirma nossas crenças, apazigua a angústia suscitada pelo desconhecido e presta um serviço a nosso aparato de autodefesa, domesticando a diferença e anulando sua força questionadora.

Em outras palavras: explicações que funcionam como consagrações do que já se sabe - ou se supõe saber - não produzem conhecimento. Se o propósito é conhecer, devemos desnaturalizar as imagens já formadas, inclusive porque, nesse campo, toda interpretação é também intervenção, é também ação social.

Gostaria que vc nos falasse sobre os desafios que esse novo quadro traz para o sistema de segurança pública. Como a polícia e o batalhão de choque devem agir diante dessa nova conjuntura? Como tratar o pessoal que depreda, invade prédios públicos?

Como diziam alguns cartazes, no Rio: "Desculpem o transtorno: estamos mudando o país". Ou: "Não é Turquia, não é a Grécia, é o Brasil despertando da inércia". Em outras palavras, não se muda sem turbulências. Perdão, pedestres, a cidade está em obras para servi-los. Como sabemos, reformar faz barulho. Tumultua. Não tem jeito. É claro que a participação massiva traz problemas para a segurança pública, mas não pode ser definida como um problema de segurança. Trata-se de um dilema que está longe de ser simples, pois é preciso respeitar a liberdade de manifestação, preservar o patrimônio público e garantir os direitos violados por eventuais agressões violentas, as quais têm ocorrido, mas, é necessário sublinhar, apenas por iniciativa de minorias e contra a vontade manifesta da massa. Não há solução perfeita, nem receitas, mas princípios gerais que, observados, pelo menos reduzem os danos: a polícia não pode estar armada; e, atenção: não há armas não-letais - as assim chamadas são menos letais, porém também matam e ferem gravemente. A presença policial deve restringir-se a locais estratégicos, visando a defesa de posições chave. Todos devem compreender que os policiais não são inimigos dos manifestantes e vice-versa. Mas essa compreensão depende de atitudes claras por parte dos policiais. Deve-se difundir a ideia de que cabe a todos evitar a violência de todo tipo em benefício da coletividade e do próprio movimento. Mesmo não havendo lideranças formais ou consensuais, está patente o intuito pacífico da imensa maioria dos que se envolvem - e disso dou testemunho como participante. Quem pratica violência agride o próprio movimento, segundo a percepção da maioria. A tendência é que o próprio movimento iniba a ação dos que traem seu espírito. Se a polícia usa recursos que realimentam o ciclo vicioso, contribui, paradoxalmente, para recompor a unidade do grupo, quando seria mais saudável que autogestionariamente as dinâmicas coletivas múltiplas inventassem meios não-violentos de reduzir a violência, diferenciando-se, internamente, e pactuando suas condições de convívio ou de existência política.

Não há dúvida de que a brutalidade criminosa de segmentos policiais, em algumas cidades, ofereceu o combustível que faltava para que o movimento mudasse de escala, ampliando-se extraordinariamente as adesões. Os custos materiais (e pessoais) de algumas ações violentas e condenáveis cometidas por manifestantes foram infinitamente menores do que os prejuízos que advieram das tentativas policiais, mesmo as bem intencionadas, de evitá-los. É momento de confiar mais na responsabilidade coletiva dos cidadãos que se manifestam, porque o fazem justamente em torno de temas republicanos e democráticos, por mais que sejam variadas as motivações. Esse não é momento de polícia. A segurança tem de ser a da massa que se manifesta. A praça é do povo. Ou a coletividade em movimento respeitará limites ou terá de arcar com o desafio de ver-se traindo, na prática - em função de divisões internas que são inteiramente naturais e incontroláveis -, alguns de seus valores, em se considerando aqueles que têm sido evocados, nas manifestações. Isso envolve riscos, claro, mas não há alternativas melhores. Digo isso porque é irrealista supor que alguma polícia do mundo possa controlar multidões nas ruas, sem consequências trágicas em grandes proporções, sem aumentar o mal que, supostamente, deseja evitar, e sem fortalecer o segmento sectário e violento da massa de manifestantes - segmento que, no Brasil, é residual. A questão é perigosa para a segurança pública, por óbvio, mas não há nada que as instituições da segurança possam fazer, além de reduzir danos e envolver-se o mínimo. Esse é o tempo da sociedade e dos políticos, de negociação e abertura ao diálogo, de criatividade e flexibilidade, de autocrítica profunda, de repactuação em torno do próprio sistema político. Tempo de imprevisibilidade e sustos, riscos e ameaças, mas também de beleza: o novo insinuando-se pelas frestas de nossa democracia, que sofre de esclerose precoce.

No âmbito da inadiável repactuação nacional, inclui-se a reforma da arquitetura institucional da segurança pública, o que envolveria a refundação do modelo policial, particularmente a desmilitarização das polícias ostensivas. Não se trata de viés ideológico. As PMs são incompatíveis com a democracia, malgrado esforços de tantos de seus profissionais, porque estão organizadas à semelhança do Exército, cuja finalidade é defender o território nacional e preservar a soberania do país, fazendo a guerra, no limite. Precisa funcionar com a metodologia do pronto emprego, para cumprir seus objetivos constitucionais. Necessita de centralização e vertebração hierárquica rigorosa. A missão constitucional de uma polícia ostensiva e preventiva, uniformizada, é garantir a vida, a incolumidade física e os direitos dos cidadãos, fazendo com que as leis sejam observadas. Como se vê, os fins são inteiramente distintos. Por que a organização deveria ser a mesma? Sabemos que a melhor forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento das finalidades da instituição. Portanto: fins distintos, formatos organizacionais diferentes. As PMs envolvem-se em confrontos armados, é verdade. Mas esses enfrentamentos correspondem a 1% de suas atividades diárias. Para fazer face a esse tipo de desafio, há espaço para a formação de unidades especializadas. É absurdo comprimir 99% no molde ortopédico que, quando muito, equivaleria à necessidade de 1%.

A democracia direta está nas ruas. O que isso significa? Como fica a democracia representativa agora?

Esse é o nervo exposto do dilema nacional. Reitero que, em primeiro lugar, devo dizer: não sei. O que, hoje, dá-se a pensar o será à sombra do reconhecimento de minha ignorância ante eventos que inscrevem a diferença em nossos esquemas cognitivos e nos modelos tradicionais de ação coletiva. Eventos, portanto, que disparam uma dinâmica cujos desdobramentos são imprevisíveis e cuja natureza ignoramos, porque nada está dado e tudo se constitui, no processo, em sua positividade e contingência. Dito isso, ouso sugerir a seguinte interpretação: o movimento declara à nação que o rei está nu, proclama em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, ostentando o mais escandaloso desprezo pela opinião pública. O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças dêem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu - e aprofunda-se, celeremente - entre a institucionalidade política e o sentimento da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se. O executivo prestigiado, em contexto de dinamismo econômico, pleno emprego e redução de desigualdades, sob a aura carismática de Lula, freiou o desgaste do Estado, já avançado em sua face parlamentar. Quando o modelo começa a dar sinais de que está claudicando, a corrosão contamina a legitimidade (a credibilidade) de todas as áreas do Estado. Outro ponto importante: Tocqueville demonstrou que os segmentos sociais mais dispostos a agir e reagir não são os mais pobres e impotentes, mas aqueles que têm o que perder. Isso significa que os avanços sociais das últimas duas décadas ampliaram a faixa da população potencialmente disposta a resistir ante o risco de perda. Aqueles que ascenderam não entregarão sem luta suas conquistas.

Se o que digo faz sentido, ou o Parlamento abre os olhos e os ouvidos e promove uma radical autorreforma, o que implica a transformação profunda do sistema político - não só eleitoral (mas falta grandeza e visão para isso, ou não teríamos chegado onde chegamos) -, ou caminhamos para cenários críticos. Não apocalípticos, mas críticos, marcados pelo esgarçamento das mediações institucionais e a corrosão mais profunda da legitimidade do Estado, em seu conjunto. Quando Estado e sociedade afastam-se, em ambiente normativo democrático, há chances de reconstrução, mas também riscos de bonapartismos aventureiros.

Observemos ainda o seguinte ponto: o valor do transporte é apenas a cabeça de um imenso iceberg, formado por sua qualidade e pelo verdadeiro drama em que se converteu a mobilidade urbana. Formou-se uma cadeia metonímica no imaginário individual e coletivo, que transporta os significados do preço da tarifa às jornadas desumanas a que os trabalhadores têm sido submetidos, estendendo-se daí a outros aspectos negativos da experiência popular nas cidades: a precariedade do emprego ou do trabalho, as condições desiguais de moradia, saúde, educação, segurança e acesso à Justiça. Os elos de contiguidade simbólica e política conectam problemas entre si, acentuando sua marca permanente: a desigualdade.

Portanto, além da questão de método democrático, estão em pauta, nas ruas, as questões substantivas mais graves e urgentes. Isso significa que não só o Parlamento deve abrir os olhos, também os poderes executivos. Um governador sintonizado sairia na frente, propondo uma agenda de repactuação com a sociedade em torno da identificação de um plano modular - mas ambicioso e radical - de reformas, em torno não só do transporte público, da mobilidade urbana e de nosso irracional modelo econômico refém da indústria automobilística, mas também quanto aos investimentos: qual o lugar da Copa em nossa escala de prioridades? Que regiões das cidades vão receber investimentos? Que tipo de investimentos? Onde fica a participação efetiva da sociedade? Como reverter o autoritarismo tecnocrático, que acaba expressando interesses econômicos óbvios? Qual o lugar da sustentabilidade?

Tudo isso aponta para um dado central: o colapso do PT como canal que por duas décadas expressou anseios por participação e atuou como instrumento de resistência ao autoritarismo tecnocrático do Estado brasileiro. Os governos petistas cooptaram entidades, aparelharam o Estado e domesticaram movimentos, com absoluto desprezo pela democracia e pelo sentido profundo da participação da sociedade. Produziram um vazio oceânico, que acabou preenchido pelo protagonismo emergente. Assim, a festa democrática nas ruas é também o funeral do PT, não como aparelho que investe no mercado de votos, mas como ator capaz de restaurar a credibilidade na representação. A ausência da UNE é eloquente e escandalosa.

Há forças políticas classificando o novo momento como "manifestação autoral" - Marina disse algo assim no YouTube. Vc concorda? O que de novo isso traz para a cena política?

Concordo. Marina está certíssima. Não faz mais sentido empregar o vocabulário que encadeava classe, organicidade, consciência de classe, partido, vanguarda intelectual, organizações da sociedade civil, enfim, coletividades radicadas em posições estruturais. Os atores, eventualmente, são coletivos, mas tendem a ser, crescentemente, individuais, unindo-se provisoriamente em função de temas circunstanciais, para agir contingencialmente, constituindo e desconstituindo agregações, deslocando-se por constelações de valores e opções práticas como o errante do novo século, o peregrino virtual, o nômade que, em vez de aderir a identidades institucionalizadas e crenças sincréticas, opera como sujeito sincrético, a editar possibilidades, trajetórias e experiências, reinventando-se na bricolage de si mesmo. Esse quadro não se confunde com individualismo, pois este novo personagem individual não se reduz ao ser egoísta e exclusivamente autointeressado nem ao consumidor adaptado, inebriado pelo neon fetichista do mercado.

A implicação política prenuncia-se: talvez tenhamos, como ocorre no campo religioso, menos identificações fixas e mais migração, menos escolha no cardápio que vem pronto e mais composição de dietas políticas idiossincráticas. Esse quadro envolveria rejeição a partidos e apoio a candidaturas avulsas da sociedade por mandatos limitados e não renováveis, por menores períodos de tempo e com mais transparência, etc. E atenção: o tempo da política está sendo reinventado. Deixou de resumir-se ao ciclo eletoral.

Gostaria que vc nos falasse sobre a internet. Sempre se disse que a moçada só sabia se manifestar apertando a tecla do gostei no Face. Aqui em BH, os cartazes "Saí do Face" deram o maior ibope. O que te sugere esse "rito de passagem" da touch screen para a praça? Pertencimento? Todos estão munidos de celulares, registrando com suas câmeras a si próprios e aos colegas...

Sobre a relação dos manifestantes com a internet, escrevi o seguinte, em artigo recente: a participação em redes aproxima os brasileiros do modelo globalizado de tomada dos espaços públicos como método de democracia direta ou de ação política não mediada por instituições, partidos e representantes. Evidentemente, o modelo remete à ideia clássica da democracia direta como tipo ideal, sem cumpri-lo inteiramente, uma vez que as mediações nunca deixam de atuar, conectando diferentes procedimentos à energia da massa nas praças. O que conta, neste cenário dramatúrgico, são a memória idealizada e a linguagem comum, como se os eventos se citassem mutuamente, construindo uma constelação virtual de hiperlinks. Nesse contexto, tornam-se possíveis o orgulho, a vaidade, a máscara do heroi cívico, a política vivida em grupo como entretenimento cult antipolítico (mas também risco iminente de morte), a experiência gregária fraterna (ante um inimigo tão abstrato e fantasmático quanto óbvio e imediato, com o rosto policial e o sentido da tragédia), experiência que enche o coração de júbilo, exaltando os sentimentos e os elevando a uma escala quase espiritual, a convicção de que se pode prescindir de propostas e metas, ou da negociação de métodos para inscrever o curso da prática na vida da cidade, não só no chão das ruas.

Que desafios este novo momento impõe aos jornais, à mídia?

O mesmo que impõe a nós todos, a todos os que procuramos entender o que está acontecendo. É preciso saber menos e perguntar mais; julgar menos e escutar mais; prever menos e participar mais, retratando a experiência em curso e a compartilhando, na medida do possível. Criticar a violência de todas as partes, mas evitar os estigmas, as classificações, o vocabulário com que nos acostumamos a pensar e avaliar, como "vândalos", "desordem", "desorganizado", "inorgânico", "sem objetividade", "disperso". Esses são os nomes que damos à distância entre os eventos e nossos esquemas mentais. Vemos o que falta, porque não enxergamos com olhos abertos para ver. O que parece lacunar e negativo na realidade dos novos fenômenos talvez seja apenas o sinal de nossa impotência. Talvez estejamos olhando o espelho. Aposentemos as acusações simplificadoras, as associações precipitadas entre o que está acontecendo e o que já vimos antes. Não, não vimos este filme. Evitemos, por ora, a tentação de explicar.

Que desafios este novo momento impõe a pais e mães?

Eis aí uma bela e rara oportunidade de conversar em família sobre política, vida coletiva, escolhas individuais, caminhos alternativos, horizontes utópicos. Além do consumo e do próprio umbigo, o que dizer sobre o bem público? O que em nossa moral familiar diz respeito à vida em sociedade. Somos corresponsáveis pelas virtudes e deficiências da sociedade brasileira. Que tal dizer isso na mesa do jantar, desligar a TV e assistir, em família, aos documentários sobre nossa história política, de Silvio Tendler a Eduardo Coutinho, de João Moreira Salles a José Padilha. O Estado de Minas poderia sugerir títulos. Além disso, os pais e as mães poderiam convidar os filhos para participar da próxima manifestação, ou aceitar os convites deles. Eu fiz isso e vivi momentos inesquecíveis.

3. O que vem depois da queda da tarifa? (Prosa & Verso, O Globo, 22 jun. 2013).

Há uma semana escrevi sobre o movimento "passe livre", chamando a atenção para o fato de que o novo surpreende e assusta, porque rompe a estabilidade das expectativas, coloca em cheque nossos esquemas cognitivos, revela a precariedade da ordem social e evoca o espectro de nossa finitude. Somos levados a reconhecer que não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos "realidade" é débil e movediço. Por isso, o desconhecido tende a suscitar em nós reações defensivas e explicações que funcionam como a confirmação do que já se sabe - ou se supõe saber. Se o propósito é conhecer, devemos buscar, com humildade, a compreensão autorreflexiva e a desnaturalização das descrições correntes. Até porque todo esforço de entendimento é também ação política.

Na sequência, expus o que sabia e, mais importante, formulei perguntas sobre o que não sabia. Descrevi as cadeias metonímicas que conectam questões conjunturais a dilemas estruturais - as desigualdades como pano de fundo -, e analisei o diálogo tácito do movimento com o imaginário global e o vocabulário das ocupações, formando uma espécie de hipertexto virtual, tecido por citações recíprocas. Finalmente, concluí com otimismo: "A força da multidão foi reencontrada por jovens e cidadãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua - não verbalizada - e uma personalidade. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria - como o negativo ou o avesso - de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão compartilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. [...] Há no movimento magnetismo, há conexão metonímica com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala planetária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. [...] De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos esquemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respeitar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa ignorância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a reivenção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar".

Fiz o que sugeri: uni-me ao coro na rua. Haveria muito a dizer, mas não quero ocupar o espaço com o depoimento do velho peregrino, percorrendo a Rio Branco acossado por memórias de outras jornadas. Prometo poupá-los do tom confessional. Entretanto, antes de mudar o canal, mantenho a primeira pessoa para compartilhar o que vi, assombrado e comovido. Assisti a uma cena inverossímil: lado a lado, 100 mil e depois mais de 300 mil pessoas em festa celebravam o estar ali e evocavam o que ainda não é, enquanto, silenciosa e inadvertidamente, sepultavam o que havia sido, seguindo o doloroso cortejo no funeral do PT.

A imagem dupla - épica, no lado A, trágica, no verso - me ocorreu pela via dos cinco sentidos e da emoção, mas firmou-se, analiticamente. Era isso mesmo. O argumento é simples: a maioria dos presentes era estudante. A UNE esteve lá, bem no centro da praça, no meio da festa, sob a forma de uma ausência fulgurante e um silêncio estridente, preenchidos pelo protagonismo emergente dos jovens indignados. O novo personagem coletivo nasceu sobre os despojos da entidade, descaracterizada pela cooptação dos governos petistas e pelo aparelhismo do PCdoB. E onde estavam tantos outros personagens coletivos de nossa dramaturgia política popular e democrática? Muitos deles trocaram a autonomia pelas benesses do poder, sem perceber que a cooptação esteriliza. O preço dos privilégios é a impotência.

Ao PT que venceu, o país deve muito. Os governos Lula, e mesmo Dilma, ficarão na história como marcos fundamentais na redução das desigualdades. Contudo, quais têm sido suas contribuições para o aprimoramento da democracia e para a mudança das relações entre Estado e sociedade, governos e movimentos sociais?

Pode-se ostentar a arrogância tecnocrática e abraçar Maluf, porque os fins sempre justificariam os meios? Os apologistas petistas do pragmatismo ilimitado não se deram conta de que os meios são os fins, quando a perspectiva adotada é a confiança da sociedade no Estado, em especial a credibilidade do instituto da representação. Hoje, tantos que acreditaram na dignidade da política vagam sem norte como zumbis da desilusão. E a juventude procura um caminho para chamar de seu. São dez anos de PT no poder: uma geração não o conheceu na oposição e não sabe o que é um grande partido de massas, não cooptado, comprometido com as causas populares e democráticas, entre elas e com destaque a reinvenção da representação política e a confiança na participação da sociedade como antídoto ao autoritarismo tecnocrático. Por mais que se façam críticas pertinentes à forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza.

No momento em que emerge o novo protagonismo, com compreensível mas perigosa repulsa por tudo o que de longe soe a partido, deparamo-nos com o vácuo oceânico produzido pelo esvaziamento do PT como agente político independente, esvaziamento por sua vez provocado pela sobreposição entre Estado, governo e partido.

O movimento pelo passe livre declarou à nação que o rei está nu, proclamou em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, exibindo o mais escandaloso desprezo pela opinião pública. O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças dêem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu - e aprofunda-se, celeremente - entre a institucionalidade política e o sentimento da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se.

E o futuro? O movimento omnibus tem diante de si os mais variados cenários, e outros a inventar. Seu destino provavelmente dependerá de sua capacidade de diferenciar a crítica política da crítica à política, e de não confundir a rejeição ao atual sistema político-eleitoral, e partidário, com uma recusa da própria democracia, em qualquer formato. Essas distinções provocarão divisões internas profundas e inconciliáveis, que já estão aflorando. Toda essa magnífica energia fluirá para o ralo do ceticismo, abrindo mais um ciclo de apatia? A indignação encontrará traduções autoritárias e ultraconservadoras? Múltiplos afluentes seguirão cursos inauditos, nos supreendendo com sua criatividade e mudando o país, no âmbito da democracia? As respostas não dependem só do movimento, mas também dos que não têm participado e das lideranças governamentais e parlamentares.

E as Polícias? O debate sobre a desmilitarização está posto. É urgente incluir na agenda a refundação do modelo policial brasileiro, para estender à segurança pública a transição democrática. Polícia é tema decisivo. Se o relacionamento entre a sociedade e o Estado está no epicentro do movimento, as polícias também estão. Afinal, o policial uniformizado na esquina é a face mais tangível do Estado para a maior parte da população. Não haverá democracia enquanto o Brasil for campeão da brutalidade policial contra negros e pobres.

4. Hora Zero no relógio popular (Zero Hora, 29 jun. 2013).

A sociedade brasileira tomou as ruas e sequestrou para si o título que lhe custara bilhões de reais e, por decisões autocráticas, a excluíra: o grande evento. Centenas de milhares de pessoas deslocaram o campo de futebol para o meio da rua e vestiram a camisa do país, assumindo inaudito protagonismo histórico. Resta ao intérprete calçar as sandálias da humildade e admitir sua ignorância e perplexidade ante o fenômeno radicalmente novo. O interesse público fora confiscado pela tecnocracia, aliada a empreiteiras e subserviente à tutela arrogante (e voraz) da Fifa. Os então chamados "grandes eventos" serviram de justificativa para lucros extraordinários e a festa da especulação imobiliária, sob a retórica do legado social, enquanto a mobilidade urbana tornava-se, crescentemente, uma contradição em termos. A massa rompeu expectativas e a tradição de apatia, e inventou um movimento que será, por suas lições e seus efeitos, o verdadeiro legado às gerações futuras. A narrativa passou a ser escrita, nas ruas e nas redes virtuais, por milhões de mãos e vozes, desejos e protestos, inscrevendo seus autores na cena global, em diálogo com outras praças, outras multidões, outras lutas. A sociedade virou o jogo.

Aplicar velhos esquemas cognitivos serve apenas para exorcizar o novo, domesticar a diferença e mascarar a insegurança intelectual, confirmando velhas crenças e categorias. O momento exige humildade do intérprete e o reconhecimento de que também as categorias tradicionais com que opera estão em cheque, desestabilizadas pela potência disruptiva e criadora do movimento social. Além disso, é necessário reconhecer que a disputa central agora é pelos significados do que está acontecendo, porque do consenso que se construir sobre o sentido dependerá o desdobramento do processo político. Projetando-se os modelos cognitivos convencionais sobre o que é radicalmente diferente só se vê o que o movimento não é: "não organizado, sem liderança ou centro, desprovido de ideologia e de objetivos, irracional, etc." Entretanto, ele existe. Como descrever sua positividade? Comecemos por ecoar sua polifonia.

A terra treme porque o país avançou e as desigualdades, embora ainda imensas, reduziram-se significativamente. As manifestações não são sintoma de declínio, mas afirmação de força e fé no futuro, ainda que pelo avesso, isto é, sob a forma de protesto indignado contra o que, contrastando com os avanços - e mesmo tendo sido por décadas naturalizado - agora tornou-se inaceitável. O pensador francês do século XIX, Tocqueville, nos ensinou que a miséria e a vulnerabilidade social só conduzem à reiteração da impotência. Rebelam-se os que têm a perder, conquistaram avanços, sentem-se potentes e sob ameaça. A sociedade brasileira aprendeu a valorizar a cidadania e despertou da inércia.

Os atores reunidos nas ruas, na maioria jovens, são os mais diversos, têm diferentes origens sociais, falam todas as línguas ideológicas e vocalizam as mais variadas denúncias e reivindicações. Seria artificial e contrário ao espírito das manifestações submeter o coro de contrários a uma univocidade ortopédica. Entretanto, uma certeza é consensual: a representação política ruiu. Não é de hoje, mas somente agora o escárnio das esquinas, a repulsa ao mundo político que se limitava às conversas cotidianas ganhou corpo e visibilidade, tanto quanto ganharam visibilidade e reconhecimento milhões de cidadãos antes unidos pelo ressentimento, sentindo-se diariamente desrespeitados pelas autoridades, pelas instituições, pelo transporte público, pelas condições da saúde e da educação. O colapso da representação vinha sendo coberto pela competência do executivo federal, por políticas públicas exitosas, pelo carisma de Lula. Na atual conjuntura, o executivo não é mais escudo protetor para a ilegitimidade do Parlamento, em razão de inúmeros tropeços: repique inflacionário, retrocesso na proteção ao meio ambiente, passividade ante assassinato de indígenas, alianças com impostores venais que tornaram "governabilidade" sinônimo de vale tudo, passividade ante chantagens obscurantistas e regressivas de religiosos fundamentalistas, e tantas hesitações e contradições de um governo claudicante, que recorre ao BNDES para selecionar vencedores, não tem capacidade de investimento, convive com uma infraestrutura sucateada, é insensível ao desafio da competitividade industrial e mantém-se fiel a um modelo econômico insustentável, voltado para o consumo e a proliferação epidêmica de automóveis. Observe-se que nesta lista de problemas há munição ampla o suficiente para atingir a todos, à direita e à esquerda. O colapso da representação política significa o divórcio entre o Estado e a sociedade.

Um fator determinante foi a cooptação do PT e de um grande número de sindicatos e movimentos sociais por parte do governo federal. A história é pródiga em exemplos de desastres provocados pela superposição entre Estado, governo e partido. Resultado: o PT perdeu a rua e a UNE, devorada pelo aparelhismo do PCdoB, foi a grande ausente. Erro dramático do PT e do governo federal: no começo, um mar de rosas, ruas vazias, aplausos das categorias, paz para governar. Agora, o vazio, a impotência, a impossibilidade para liderar, dirigir e até mesmo disputar. E o país diante da necessidade de reinventar a política.

E a violência nas ruas?

Imaginemos a seguinte descrição do despertar da sociedade brasileira:

O paciente coletivo respirava por instrumentos na UTI. Graças às melhorias sócio-econômicas das últimas duas décadas, recuperou a consciência e os movimentos do corpo, ergueu-se, descobriu que sua casa fora ocupada por políticos venais interessados na reprodução de seus mandatos, cúmplices de empreiteiras e do capital financeiro vinculado à especulação imobiliária, vândalos oficiais a serviço do modelo automotivo de desenvolvimento insustentável, arruaceiros do interesse público, baderneiros bem-comportados de paletó e gravata, desordeiros de colarinho branco. Furioso, o paciente, agora impaciente, espana os parasitas com o vigor redescoberto.

Creio que este relato traduza o sentimento que flui nas manifestações. O que parecia ser ordem, antes da onda de protestos, correspondia a transgressões continuadas à Constituição e aos princípios mais elementares da moralidade pública.

Consultemos, agora, imaginariamente, os sentimentos e as percepções difusas dos jovens mais pobres que têm convivido, diariamente, com a brutalidade policial. Tomo como exemplo acontecimentos desta semana, no complexo de favelas cariocas da Maré: policiais do Bope invadiram residências (derrubando portas e sem mandado judicial), quebraram utensílios domésticos, humilharam, agrediram e ameaçaram moradores dentro de suas casas. Na operação, morreram dez pessoas: um policial, sete considerados suspeitos de participação no tráfico de drogas e dois oficialmente tidos por inocentes. Contemplemos por um instante outros fatos recorrentes no Rio e em vários outros estados: chacinas são perpetradas por policiais, milicianos tiranizam comunidades, armas e drogas são apreendidas a ferro e fogo, em incursões bélicas que ferem e matam inocentes, mas são devolvidas em seguida, mediante negociações com traficantes locais ou facções rivais, à luz do dia, diante da comunidade. As autoridades prometem investigar com rigor - e não alteram os protocolos da ação policial. O Ministério Público é responsável pelo controle externo da atividade policial, mas tem sido omisso, com plena anuência da Justiça - ressalvadas as honrosas exceções, entre elas a saudosa juíza Patrícia Acioli, assassinada com 21 tiros por policiais.

Quantos profissionais das polícias, envolvidos em chacinas, no rastro dos ataques do PCC em São Paulo, em 2006, foram punidos? Quantos foram investigados e punidos no Rio, onde 9.231 mortes foram provocadas por ações policiais entre 2003 e 2012? Esses dados deveriam levar-nos a compreender a fonte da indignação furiosa de quem depreda - deixo de lado, evidentemente, os criminosos que se aproveitam da situação. Não se trata de justificar a violência, mas de entender suas raízes e, sobretudo, de explicar por que a massa considera hipócrita o foco da mídia na ação dos assim chamados "vândalos". Antes das manifestações, não havia ordem e normalidade, mas vandalismo continuado, praticado por aparelhos do Estado contra muitos, nas periferias, Brasil afora. Falta equidade no tratamento por parte do Estado e da mídia. A ordem tida como natural antes da eclosão das manifestações, não era menos destrutiva do que a desordem promovida por alguns manifestantes. Esse é o ponto - o qual, insisto, não justifica a violência, mas a torna inteligível. A violência cometida nas ruas por grupos sempre atuantes, embora francamente minoritários, têm sido o maior obstáculo ao sucesso do movimento. Quem pratica saques e quebra-quebras põe-se como inimigo da massa que se manifesta nas ruas e contribui para a estigmatização do movimento e seu esvaziamento. Essa prática coloca para qualquer polícia, mesmo a melhor do mundo e a mais democrática, um desafio trágico, um problema insolúvel. Uma polícia para a democracia tem o dever de garantir direitos. É este seu mandato constitucional. Há os direitos dos cidadãos à livre manifestação, e também aqueles que estão sendo violados por quem age com violência destrutiva. Está em jogo o interesse público seja na plena liberdade do movimento, seja na proteção ao patrimônio público. Quando manifestantes depredam, criam um dilema incontornável para o poder público e a polícia - e por isso o fazem: projetam seu ódio e buscam um cadáver, geram as condições para o surgimento do mártir, diante do qual as manifestações seriam empurradas para o abismo das retaliações recíprocas intermináveis. O que deve fazer uma polícia comprometida com a legalidade constitucional? Reduzir danos, atuar no limite superior da tolerância e inferior do uso da força, buscar o diálogo, apostar na compreensão da imensa maioria sobre os impasses. O que uma polícia que serve à cidadania, cumprindo o mandato constitucional democrático, não deve fazer? Aquilo que tem sido a rotina no Rio e tem ocorrido em outras cidades e estados: investir na vingança, provocar manifestantes, prender discricionariamente, agredir indivíduos desarmados e isolados, acuar grupos em vez de suscitar condições para que dispersem, atacar arbitrariamente, ostentar o sorriso de escárnio como bandeira de seu ressentimento, reafirmando pela prepotência a profundidade de sua própria insegurança e de seu descompromisso com a legalidade. Tampouco deve usar armas menos-letais como se fossem não-letais. Pior: como se fossem brinquedos inofensivos de uso ilimitado. De sua parte, cabe ao movimento, mesmo mantendo-se descentralizado e apartidário, organizar-se minimamente para inibir as práticas que, de fato, tentam desqualificá-lo, politicamente.

Duas questões me parecem decisivas: (1) a classe média descobriu a brutalidade policial, que os pobres e negros nunca ignoraram. Polícia tornou-se um dos temas chave, nas ruas. Por que a presidenta omitiu o debate em torno da mudança do modelo policial, que envolve a desmilitarização, e que vem sendo adiada desde a transição democrática? É urgente estender a transição à segurança pública. O silêncio oficial tem sido cúmplice de milhares de execuções extrajudiciais, de torturas, violações cotidianas, inclusive contra os próprios policiais. Até quando reinará a negligência? Nada mais desconectado das ruas e da realidade do que a proposta patética das oposições: "mais verbas para a segurança pública". Como alimentar essa máquina de morte, essa fonte de violações? Nenhum centavo deveria ser concedido antes que se refundassem as polícias. (2) A proposta presidencial sobre reforma política sem dúvida dialoga com o eixo dos protestos, isto é, focaliza o colapso da representação. Entretanto, só fará sentido se mostrar-se capaz de quebrar os mecanismos em curso. Isso não guarda relação clara para a maioria dos manifestantes com sistema eleitoral - distrital, simples ou misto, ou proporcional -, voto em lista, financiamento de campanha, etc. O que poderia conversar com as ruas seria uma proposição radical, que sepultasse a representação política como carreira e negócio. Eis um exemplo: para o parlamento, eleições a cada dois anos com apenas uma reeleição, candidaturas avulsas da sociedade seriam possíveis, salários dos deputados seriam iguais aos dos professores, cada um teria três assessores, nada de carro oficial, verba de gabinete ou aposentadoria por oito anos de trabalho, dinheiro para campanha apenas aquele doado por cidadãos (tendo 500 reais como teto - sobre os recursos deveria haver plena transparência com informação em tempo real via internet), nada de tempo na TV, que virou moeda (utilize a internet quem quiser e puder mobilizar sua rede). Eleitos seriam os mais votados, sem os coeficientes partidários e as coligações. Para o Senado, não haveria suplente, os mandatos seriam de quatro anos sem reeleição e as condições seriam as mesmas dos deputados. Para o executivo, apenas um mandato de cinco anos e regras específicas. Enfim, uma transformação realmente profunda poderia sensibilizar a maioria da sociedade e reconectá-la à representação.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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